Tudor: o brotar da rosa

Era uma vez duas almas gémeas. O seu criador tinha-lhes destinado um futuro brilhante, em perfeita solidariedade, para seus benefícios mútuos. A primeira recebeu o símbolo da coroa, naturalmente, já que tinha sido a primeira a desbravar os escarpados caminhos da conquista relojoeira. A segunda foi galardoada com o símbolo da rosa. Afinal, não é a rosa a rainha das flores?

Reportagem originalmente publicada no número 63 da Espiral do Tempo (edição de verão 2018)

A evolução do logótipo da marca até aos dias de hoje © Tudor
A evolução do logótipo da marca até aos dias de hoje © Tudor

A rosa foi utilizada durante décadas pela marca suíça Tudor como referência ao emblema da poderosa família real inglesa do século XV, cujo rei, Henrique VIII, e a sua filha, rainha Isabel, moldaram notavelmente o Reino Unido que conhecemos hoje. Foi, provavelmente, a escolha do seu ‘criador’, Hans Wilsdorf, também fundador da marca da coroa: a Rolex. O nome deste alemão, nascido em 1881 na Baviera, aparece logo no primeiro pedido de registo da marca Tudor, datado de 17 de fevereiro de 1926. O pedido, da empresa relojoeira Veuve, de Philippe Hüther, afirma no texto atuar em nome da maison H. Wildorf, sedeada em Biena, na Suíça. O certo é que o próprio Hans Wilsdorf acabará por adquirir a marca em 1936, esperando até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1946, para oficializar a empresa Montres Tudor S.A.

Pedido de registo da marca Tudor, 17 de fevereiro de 1926 © Tudor
Pedido de registo da marca Tudor, 17 de fevereiro de 1926 © Tudor

O eterno emigrante

O percurso de Hans Wilsdorf suscita, no mínimo, curiosidade, senão mesmo admiração. Ainda adolescente, quando os pais falecem, é forçado a emigrar. Escolheu a Suíça, onde será recrutado, após os seus estudos, pela fábrica de relógios Cuno Korten, em La Chaux-de-Fonds. Não o sabia nessa altura, mas acabará por dedicar toda a sua vida à relojoaria.

Passados três anos, emigra novamente – para Londres. Terá 24 anos quando funda a sua própria companhia juntamente com o cunhado Alfred Davis: a Wilsdorf & Davis. Fruto da sua intuição, sorte ou visão empresarial, e num contexto onde se comprava principalmente relógios de bolso, decide lançar-se na produção de relógios de pulso com a ajuda da fábrica suíça Jean Aegler, em Bienne, um produtor de movimentos. Em 1914, é obrigado a deixar novamente o seu lar para fugir aos 33% de taxa sobre a importação imposta pelo governo inglês para financiar o seu envolvimento na Primeira Guerra Mundial. Leva com ele para Genebra a sua empresa, rebatizada Rolex, em 1908, estabelecendo a sede precisamente no 18 da Rue du Marché.

Publicidade conjunta das duas 'almas gémeas' © Tudor
Publicidade conjunta das duas ‘almas gémeas’ © Tudor

Almas gémeas

«Há alguns anos que venho a considerar a ideia de produzir um relógio que os nossos agentes possam vender a um preço mais modesto do que os nossos relógios Rolex, mas que, ao mesmo tempo, atinjam os níveis de confiança pelos quais os relógios Rolex se tornaram famosos». Esta citação do próprio Hans Wilsdorf aparece numa publicidade a preto-e-branco datada de 1952, e acompanhando o então novo modelo Tudor Oyster Prince. Vale a pena ler o texto todo de Hans Wilsdorf, não só pela forma enfática como o empresário publicita a nova marca, mas também, e sobretudo, pela confirmação da estreita relação de produção entre as almas gémeas Rolex e Tudor. Hans Wilsdorf determina então o curso das próximas décadas dos relógios Tudor: «Decidi que o Tudor Oyster Prince merece partilhar com a Rolex duas vantagens que não deixarei para mais nenhuma marca: a caixa estanque Oyster e o mecanismo com rotor automático Perpetual». A partir desse momento, os relógios Tudor passaram a utilizar caixa e bracelete Rolex, tendo, assim, como curiosidade o facto de apresentar o logótipo da Tudor nos seus mostradores e da Rolex, tanto na coroa, como no fundo da caixa. Uma situação perfeitamente aceite por ambas as marcas durante décadas, mais precisamente até ao início de 2010.

Publicidade Tudor da década de 1970 alusiva ao modelo Oyster Prince Submariner © Tudor
Publicidade Tudor da década de 1970 alusiva ao modelo Oyster Prince Submariner © Tudor

Ato fundador: a série 79XX

O planeta musical do início dos anos 50 foi atingido por dois furacões, dois músicos que mudaram para sempre a forma de ouvir e até de dançar. Os dois emergiram em 1954, data de lançamento do Tudor Prince Submariner Referência 7922. Trata-se de Bill Halley & His Comets, com o seu sucesso universal «Rock around the clock», gravado a 12 de abril desse ano em Nova Iorque, e do ‘King’ (mais um!) Elvis Presley, que gravou, no dia 4 de janeiro de 1954, o seu primeiro disco, Casual Love, na mítica Memphis. Curiosamente, no mesmo ano de 1954, o ator americano Kirk Douglas participa no elenco do filme Vinte Mil Léguas Submarinas, interpretação no cinema do livro do escritor francês Júlio Verne.

Terão estes eventos, e certamente outros, inspirado Hans Wilsdorf? O certo é que o lançamento da linha Tudor Prince Submariner chega exatamente um ano após a apresentação da referência Rolex Submariner 6402, como mais um exemplo da estreita colaboração entre as duas empresas. O Tudor Oyster Prince Submariner nasce em 1954 com a referência 7922, inaugurando a série 79XX, que ficará em produção até 1969, e servirá de grande inspiração ao designer atual da marca Ander Ugarte.

As ambiciosas campanhas publicitárias orquestradas pelo próprio Hans Wilsdorf nos anos 50 testemunham os valores essenciais da marca, valores que perduram até a atualidade: robustez e precisão. Apresentam profissionais utilizando o seu Tudor em toda e qualquer situação extrema de trabalho de grande provação física. Essa mensagem serviu de pedra angular para as décadas seguintes. Os Oyster Prince Submariner tornaram-se, assim, nos modelos preferidos da US Navy a partir de 1964 e da marinha francesa desde 1974. Muito se podia escrever ainda sobre tão rico passado.

Campanha publicitária Tudor, 1952 © Tudor
Campanha publicitária Tudor, 1952 © Tudor

Ambições redobradas

 2010 revelou ser um ano de afirmação para uma marca que tenha passado por algumas dificuldades comerciais nas duas décadas anteriores. As ambições traçadas pela direção da altura eram claras: expandir geograficamente a distribuição Tudor, baseando-se numa nova coleção inspirada pelas suas coleções históricas. «Não acreditei, nem acredito em copiar 100% um modelo antigo», reage Ander Ugarte, responsável pelo design da marca há mais de uma década. «Prefiro reinterpretar esses modelos. Acredito que tenhamos trazido algo de novo na relojoaria ao introduzir novos materiais (demorámos perto de dois anos para acertar no bronze perfeito) e nos tecidos das nossas braceletes, produzidos em França, por uma empresa centenária especializada na técnica Jacquard».

Protótipo em resina de um Tudor Black Bay © Hubert de Haro / Espiral do Tempo
Protótipo em resina de um Tudor Black Bay © Hubert de Haro / Espiral do Tempo

Na nossa visita à sede da marca em Genebra, este responsável apresentou vários protótipos em resina, frutos de uma impressão 3D. «A impressão 3D em resina permite-nos estudar variações de dimensões, volumetria e até de design de ponteiros. No estudo do Black Bay Bronze, realizamos protótipos com tamanhos de caixa de 41, 42, 43, 44 e 45 mm». A proximidade com os seus colegas prototipistas acelera o processo de design, reduzindo drasticamente o tempo entre o indispensável primeiro esboço a lápis e a primeira representação 3D. Não é de estranhar que a Tudor tenha granjeado de um crescente capital de simpatia na comunicação social e nos profissionais do mercado a partir da feira de Basileia de 2010. Nessa altura, o primeiro passo desta nova estratégia foi dado com as reinterpretações dos Oysterdate referência 7031/0, datados dos anos 70, e mais conhecidos pelos colecionadores por Montecarlo.

Heritage Black Bay (2012) e Heritage Black Bay (2016) © Tudor
Heritage Black Bay (2012) e Heritage Black Bay (2016) © Tudor

Smiley face… or not?

O lançamento na feira de Basileia do primeiro modelo da coleção Black Bay consolidou as novas ambições da marca do escudo (a rosa deixou de figurar nos mostradores Tudor em 1969, para ceder o lugar ao robusto escudo). A reinterpretação dos Oyster Prince Submariner, série 79XX, convenceram os últimos céticos. As inscrições originais ‘rotor’ e ‘Self-winding’ às 6 horas no mostrador mantiveram a sua disposição curva, mais conhecida por smiley face – qualquer coisa como ‘cara com sorriso’. A marca tinha, de facto, muitas razões para sorrir: o público e os profissionais aclamaram a reutilização do ponteiro de horas em snowflake, ou em forma de floco de neve, inspirado diretamente dos Tudor Prince Oysterdate Submariner 7021 de 1969. A fusão dos códigos estéticos dos dois modelos mais emblemáticos das décadas dos 50 e 60, o Prince Oyster Submariner 7922 e Prince Oysterdate Submariner 7021, lançaram as bases para vários anos de sucesso da linha Black Bay, com variadíssimas interpretações de cores e matérias.

Tudor Monte Carlo. © Hubert de Haro
Tudor Monte Carlo. © Hubert de Haro

Uma vez satisfeitos os códigos estéticos nesta nova ‘vintagemania’, a Tudor aproveitou este excelente momento comercial para apresentar, em 2015, o seu próprio mecanismo manufaturado MT5602 com certificado COSC. Infelizmente, não nos foi possível assistir à montagem deste novo movimento durante a nossa visita – já que, segundo os responsáveis da marca, o local de produção exata é «mantido em segredo». Quanto aos modelos cronógrafos da coleção Heritage, passaram a usar também mecanismos próprios Tudor, com base no calibre BR01 da Breitling. A parceria tecnológica entre as marcas Tudor e Breitling prevê ainda a cedência dos MT5602 para a Breitling, permitindo assim a ambas ganhar escala e volume nas suas produções respetivas. Uma estratégia pragmática de dois ‘underdogs’ da relojoaria mecânica num escalão de preço público que oscila entre os 2.500 e os 5.000 euros.

Black Bay Bronze (2016), Heritage Black Bay Chrono (2017) e Black Bay Fifty-Eight (2018) © Tudor
Black Bay Bronze (2016), Heritage Black Bay Chrono (2017) e Black Bay Fifty-Eight (2018) © Tudor

Über-vintage?

Na edição deste ano do maior certame mundial de relojoaria, o ano 2018 veio sublinhar a importância da década dos 50 na casa Tudor, talvez de uma forma ligeiramente excessiva (perdoem-me este paradoxo). A equipa do designer Ander Ugarte optou por lançar um Black Bay Fifty-Eight praticamente idêntico ao original referência 7924 de 1957: coroa de rosca sobredimensionada (que valeu ao original a alcunha ‘Big Crown’), ponteiro das horas em ‘floco de neve (ou snowflake), luneta rotativa unidirecional com indicações rigorosamente idênticas, estanqueidade de 200 metros ou ainda pulseira metálica ‘rivetada’, isto é com ‘cabeças’ pequenas a sobressair nas laterais dos elos, a remeter para a pulseira Rolex referência 6636 do modelo original. E como se este exercício de über-vintage não chegasse, levou naturalmente a equipa a escolher o tamanho original de 39 mm.

Tudor Heritage Black Bay
Tudor Heritage Black Bay. © Tudor

Os recentes excelentes resultados da marca na Ásia, nomeadamente com a coleção clássica 1926, justificam amplamente esta última escolha, porém pouca consensual nesta feira de Basileia. A marca da rosa lança ainda um Black Bay GMT com luneta dois tons azul e vermelho Bourgogne, mais conhecida por Pepsi, precisamente no mesmo ano em que a ‘alma gémea’ Rolex apresenta também um tipo similar de luneta (com cerâmica Rolex, ou seja, Cerachrom, e não em alumínio como na Tudor) no lançamento de mais uma versão do seu modelo icónico GMT-Master II. Um piscar de olho mais sentido à alma gémea da coroa.

Tudor Heritage Black Bay Bronze. © Hubert de Haro
Tudor Heritage Black Bay Bronze. © Hubert de Haro

O caminho percorrido pela Montres Tudor SA, desde o comunicado em jeito de manifesto do seu fundador Hans Wilsdorf, em 1952, até aos dias de hoje suscita e continuará certamente a suscitar a admiração dos curiosos e amantes da bela relojoaria. «A Tudor não se esgota na linha Black Bay. Entendemos oferecer a melhor qualidade para o melhor preço nas outras coleções clássicas e elegantes», afirma Ander Ugarte, na nossa despedida às instalações genebrina da marca. Hans Wilsdorf teria ficado orgulhoso. O ADN dos relógios Tudor, moldado há mais de meio século, continua bem vivo, conquistando anos após anos um universo mais abrangente de compradores, desde os fanáticos do vintage até às novas gerações à procura de um relógio fiável e preciso, comercializado com um preço justo. Um caso de sucesso que corre o sério risco de fazer escola.

Mais informações em: www.tudorwatch.com

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