Pedro entra na loja pela mão do pai. Contrariado, choraminga. Foi deixar a bicicleta, ainda com rodinhas, a reparar. Salvador Esteves tranquiliza-o, vai ser como uma consulta de médico. Não tarda nada, já estará a pedalar com os amigos. Dez horas da manhã. A Salva Biclas, nas traseiras do mercado de Benfica (Lisboa), ainda agora abriu e já está numa roda-viva. A cultura do ciclismo voltou em força. Connosco, a nova edição do Oris: os Divers Sixty-Five ‘Cotton Candy’. Melhor receção ao pequeno Pedro, só se o dono da loja tivesse algodão-doce para lhe dar.
Artigo originalmente publicado no número 80 da Espiral do Tempo (outono 2022)
Ao som de um best of de Bob Marley, somos apresentados aos cantos do reduzido espaço, que se divide em dois: a oficina e o mostruário de bicicletas recicladas para venda. Nas paredes, várias relíquias à vista, como pedaleiras em pé de igualdade com peças de relojoaria, carretos, selins, capacetes, buzinas. Há até um relógio de guiador Campagnolo que se equipara a um «Rolex dos ciclistas».
Salvador, 60 anos, fundou a oficina no número 9 da rua Olivério Serpa, em Lisboa, há seis anos. De boina e avental, com um look rétro, recebe os clientes com todo o tempo do mundo. Que ninguém se atreva a chegar ali cheio de pressa, fica a ressalva. O ‘repara duas rodas’ gosta muito de falar, e percebe-se que é por isso que a sua clientela, desde ciclistas profissionais a amadores, lhe é fiel.
A maioria vai fazer a revisão da bicicleta, afinar as mudanças, os travões, ver se há folgas, pôr óleo na corrente, verificar se os pneus estão carecas. E não saem sem uma explicação pormenorizada de tudo. «As pessoas falam das bicicletas como se fossem um objeto de outro planeta, quando é tão tudo básico. Não sabem sequer montar uma roda.»
Chamar à Salva Bicas uma oficina é redutor. Ali, além de se recuperar, arranjar e vender bicicletas, há sempre tempo para conversar e aprender. Aliás, é sobretudo isso que se pretende: visitar o espaço é um pretexto para o convívio.
O mote da loja é «Ponha a sua bicicleta a andar», em concordância com o que Salvador sempre fez. Em Camarate, no bairro onde nasceu, era ele que reparava as bicicletas de todos. Sempre gostou de parafusos e ferramentas, era um mundo que o fascinava. Arranjava as bicicletas dos vizinhos a troco de o deixarem dar uma voltinha. Salvador não tinha uma, até que um dia, numa excursão a Espanha para comprar caramelos, tanto pediu e chorou que conseguiu convencer o pai. Teria uns seis anos, entrou numa loja e viu uma bicicleta de rapariga, dobrável e bege. Foi com essa que veio para Portugal. «Fiquei tão feliz, mesmo sendo de rapariga.»
Andava na escola na Portela. Como era sempre a descer, levava os amigos à pendura. Bem encavalitados, cabiam uns quantos. Clientes entram, clientes saem, e recorda-se da vez em que o pai lhe comprou uns Sanjo, «brancos, lindos». Esqueceu-se de que os tinha calçados e pôs o pé a travar a roda. Conclusão: queimou a sola, os ténis ficaram todos rotos. Quem nunca? «Levei cá uma sova!» A partir daí, o entusiasmo foi crescendo. Nas férias, viajava sozinho para a Europa, vagueava pelas ruas, via oficinas de bicicletas e oferecia-se para ser ajudante. Trabalhava gratuitamente uma a duas semanas e depois partia para outro destino.
Concluído o secundário, formou-se em fotojornalismo, trabalhou em várias revistas, e começou a fazer passeios de bicicletas antigas. Na altura desta conversa, tinha acabado de regressar do canal do Midi, em França. Em outubro, seguir-se-á o Passo do Stelvio, em Itália, a pedalar uma vintage L’Eroica. Vai vestido com camisolas que são réplicas das usadas pelos ciclistas do antigamente, que estão expostas na loja. O passeio é de um dia, mas, nestas alturas, há muitas feiras de bicicletas a acontecer, «uma coisa louca». E por isso, enfatiza, é notório que o ciclismo gera economia, e gostava de que o governo se apercebesse disso e apostasse mais na mobilidade.
A loja está mais focada na reciclagem de antiguidades, mas também aceita modelos novos. Salvador lamenta que Portugal, apesar de líder europeu na produção de bicicletas, tenha abandonado a cultura das duas rodas com a entrada na União Europeia. Cidadão consciente e interveniente ativo em prol da mobilidade, queixa-se igualmente do mau estado das ciclovias. Depois, observa a falta de civismo dos automobilistas. «Estão sempre a queixar-se, mas deviam perceber que quanto mais ciclovias houver, menos ciclistas estão na estrada.»
Nunca Salvador teve tanto trabalho como durante o confinamento. Haverá poucos portugueses que não têm uma bicicleta arrumada a um canto. Fechados em casa, quiseram pô-las a andar. Famílias inteiras começaram a pedalar.
Agora, as crianças são o novo nicho de mercado. Os pais estão sensibilizados para o combate ao desperdício e estão a apostar em comprar bicicletas reusadas. Mas há outra razão: os filhos crescem rapidamente e dar 200 euros por uma bicicleta nova não é mesma coisa que despender 70 euros por uma usada, restaurada e com garantia.
Quando era pequeno, tanto importava a Salvador que a bicicleta fosse nova ou usada. «É muito importante que os pais ensinem os filhos a andar, porque amanhã estes irão lembrar-se e repetir.» É uma questão de preservar o legado aliado à reutilização e à questão ambiental.
«Se quer ter patos no seu jardim, tem de criar um lago. Esta frase, que não é minha, aplica-se à cultura do ciclismo, ao civismo; as pessoas têm de ser educadas para as boas práticas.»
Salvador Esteves
Não há nada que deixe este apaixonado por ciclismo mais contente do que ver as pessoas a saírem da loja a sorrir. O que ali ganha é suficiente para fazer face às despesas. Não está rico, mas dá para viver.
Por entre travões, rodas, pedais, câmaras de ar, correntes, Salvador vai fazendo a revisão a uma Cannondale. Encosta-da à parede, no exterior da loja, uma bicicleta inglesa, antiga e enferrujada. É uma raridade dos anos 50. Está pronta para ser fotografada e toda desmontada. De seguida, será decapada e, depois, levará a pintura ou cromagem. Por último, os retoques finais. Possivelmente, conta-nos, esta até poderá ter sido fabricada na casa Sangal, no ‘vale das bicicletas’, em Aveiro. Na sala contígua à oficina, encontramos as clássicas de selo nacional Yé-Yé, Esmaltina, e Mayal, ao lado de Bianchi, Raleigh, Olympia, Legano, Willier, Kalkhoff, Orbea e Vitus.
Afixado na fachada, uma placa da Federação Portuguesa de Cicloturismo. Salvador foi condecorado por promover a mobilidade na cidade de Lisboa. Também recebeu o selo Eurovelo da Rota Costa Atlântica, uma rede europeia de rotas cicláveis que liga a região norueguesa de Nordkap, passando por países como Inglaterra, Irlanda, França, Espanha, num total de 9.000 km, até Portugal. O traçado em território nacional percorre toda a Costa Atlântica portuguesa, desde Vila Real de Santo António até Caminha. Quem estiver a viajar, sabe que, quando chegar a Lisboa, terá sempre a Salva Biclas em estado de prontidão permanente para qualquer imprevisto. Ou até apenas para dois dedos de conversa.
O seu sonho é abrir uma loja em Bordéus (França). Sempre que visita a cidade, fica fascinado com «tanta gente gira a andar de bicicleta, as francesas, o pão, o vinho». E acredita que se concretizará. Até a sua mulher já está a contar com isso.
As bicicletas não têm apenas uma vida. Não são de usar e descartar. Salvador quer completar o ciclo e está a fazer por isso.
Salva Biclas
Rua Olivério Serpa, Loja 9Q, 1500-471 Lisboa
Instagram: @salvabiclas