Design militar: meia-volta, volver!

A recuperação do design militar tem sido a palavra de ordem nos últimos anos. Muitas marcas que criaram modelos próprios para exércitos de todo o mundo regressaram à simplicidade e elegância desses relógios que estiveram nas trincheiras da I Guerra Mundial e tornaram os relógios de pulso uma companhia de todos os dias. E que agora renascem, com a tecnologia atual e, nalguns casos, com design mais moderno. Seja como for, a mensagem é simples: meia-volta, volver!

A evolução do relógio de bolso para o de pulso não foi um acaso nem uma moda. Tornou-se algo natural devido às guerras de finais do século XIX e início do século XX. E, nesse aspeto, a I Guerra Mundial foi o momento crucial para que o relógio de pulso se tornasse num equipamento militar estratégico e, depois, como é óbvio, num acessório de moda na sociedade civil. No meio de uma batalha, um relógio de pulso era mais fácil de usar do que um de bolso. Essa rapidez poderia valer uma vida. Ou muitas vidas. Na altura, os líderes militares procuravam relógios simples, mas confiáveis, que permitissem coordenar os ataques terrestres. E, no início da guerra aérea, era também necessário haver coordenação horária entre o avanço dos exércitos terrestres e as iniciativas dos pilotos de aviação. A pontualidade era tudo. Tal como a simplicidade do design. Alguns historiadores dizem que a ideia de que os soldados usassem pequenos relógios de pulso foi concebida durante a Primeira Guerra dos Bóeres, em finais do século XIX, nos territórios da atual África do Sul, ou mesmo pouco depois, pela marinha de guerra alemã. De qualquer maneira, a I Guerra Mundial mudaria para sempre não só o lugar do relógio de pulso na história militar, mas também a forma como era utilizado pelos civis. Milhões de homens, nas trincheiras, dependiam da pontualidade.

Louis Cartier criou o Tank, inspirado pelos tanques de guerra Renault que vira na frente ocidental quando era soldado. Hoje, tem 41 variações. Inspirado pelo mundo militar, é um objeto de luxo. Mesmo tendo evoluído em volume e proporção, na sua caixa retangular, o Tank nunca deixou de ter uma afinidade com a força de um tanque. © DR
Louis Cartier criou o Tank, inspirado pelos tanques de guerra Renault que vira na frente ocidental quando era soldado. Hoje, tem 41 variações. Inspirado pelo mundo militar, é um objeto de luxo. Mesmo tendo evoluído em volume e proporção, na sua caixa retangular, o Tank nunca deixou de ter uma afinidade com a força de um tanque. © DR

Não deixa de ser interessante relembrar que os relógios de pulso eram apenas utilizados pelas mulheres antes do século XX, sobretudo como adornos. Não interessava, naquela altura, a sua exatidão. O primeiro relógio de pulso terá sido feito para a condessa Koscowicz da Hungria pela Patek Philippe, em 1868. Para o homem, não há uma data precisa. A Girard-Perregaux terá fornecido os primeiros exemplares de relógios de pulso para a marinha imperial alemã em 1880, depois de um oficial se ter queixado de que era difícil usar um relógio de bolso quando se decidia um bombardeamento. Como resultado, a marca enviou alguns artesãos de Chaux-de-Fonds para Berlim para começar a produção de pequenos relógios com fivelas. A procura acabou por se estender a outras marcas e o design do início, simples e sóbrio, estava ao serviço da fiabilidade. Não havia, no entanto, uma produção em massa. Só que a guerra seria também uma fonte de inspiração. Por exemplo, Louis Cartier criou o Tank, inspirado pelos tanques de guerra Renault que vira na frente ocidental quando era soldado. Hoje, tem 41 variações. Inspirado pelo mundo militar, é um objeto de luxo. Mesmo tendo evoluído em volume e proporção, na sua caixa retangular, o Tank nunca deixou de ter uma afinidade com a força de um tanque. O seu protótipo foi apresentado um ano após o final do primeiro conflito mundial ao comandante das forças expedicionárias americanas, o general John J. Pershing. Mas já antes a Cartier se aventurara na conceção de um relógio que ajudasse os aviadores. Foi assim que nasceu a associação com o piloto brasileiro Santos-Dumont. Por essa altura outras marcas começavam a associar-se ao mundo militar. Em 1902, a Omega publicava um anúncio em que se via um oficial britânico de artilharia e que dizia que um relógio de pulso como o que ele usava fazia parte do equipamento militar obrigatório. As guerras em terra criaram mesmo um estilo definido, chamado «relógios de trincheira» (porque as batalhas eram travadas a partir de trincheiras escavadas no solo), com mostradores quase idênticos, números brancos num fundo preto (ou vice-versa) e um ponteiro luminescente. Ver rapidamente era crucial.

A Hamilton Watch Company, conhecida sobretudo pelos relógios de alta precisão destinados às estações de comboios de todos os Estados Unidos da América (EUA), acabou por se tornar o fornecedor oficial de relógios para o exército americano, um acordo que haveria de se estender à aviação militar. © DR
A Hamilton Watch Company, conhecida sobretudo pelos relógios de alta precisão destinados às estações de comboios de todos os Estados Unidos da América (EUA), acabou por se tornar o fornecedor oficial de relógios para o exército americano, um acordo que haveria de se estender à aviação militar. © DR

A Rolex (Wilsdorf & Davis, antes), ciente desta evolução, também começou a produzir relógios de pulso a partir de 1905. Do outro lado do Atlântico, a Hamilton Watch Company, conhecida sobretudo pelos relógios de alta precisão destinados às estações de comboios de todos os Estados Unidos da América (EUA), acabou por se tornar o fornecedor oficial de relógios para o exército americano, um acordo que haveria de se estender à aviação militar. O sucesso dos seus relógios Khaki para pilotos transbordou para o universo civil (foram produzidos mais de um milhão de exemplares após a I Guerra Mundial), porque todos queriam usar um relógio como o dos ases da aviação. O seu design muito simples manteve-se ao longo das décadas. A sua beleza também deriva dessa ligação eterna ao passado. O que importa é a fiabilidade e a depuração estética. 

Ao longo das décadas, outras marcas foram buscar inspiração ao mundo militar para criar linhas que ecoam batalhas e aventuras. A Bell & Ross tornou-se conhecida por criar relógios influenciados pelos instrumentos dos cockpits dos aviões. O fundador da marca, Carlos Rosillo, disse, há algum tempo, que «A beleza dos relógios que surgiram durante essa era tem a ver com a simplicidade. A I Guerra Mundial foi o início da aviação e os seus heróis eram pilotos». A inspiração para os relógios da Bell & Ross advém da homenagem a esses heróis. E a simplicidade paira nos seus modelos.

Blancpain Fifty Fathoms 5008-1130-B52A  © DR
Blancpain Fifty Fathoms 5008-1130-B52A © DR

A leitura do tempo tinha, sobretudo devido às necessidades militares, migrado do bolso para o pulso humano. Aquilo que era gozado pelos artistas das peças de Vaudeville e pelos atores de filmes mudos tornara-se uma coisa séria, como reconhecia o New York Times, em 1916. O telefone, que passara a ser vital na guerra, tornara obrigatório o uso de relógios pelos soldados, recordava. As ordens chegavam por telefone e as horas precisas para atacar estavam nos relógios. E usá-lo no pulso era a forma mais prática de cumprir essas diretivas do posto de comando. No final da guerra, as marcas de relógios passaram a desenhar relógios de pulso para homens, com a promessa de que eles, ao usá-los, se tornariam mais marciais e masculinos. O homem moderno usava um relógio de pulso. Como resultado, os relógios de bolso foram caindo em desuso, e, quando chegou a II Guerra Mundial, eram obsoletos.

Do exército passou-se para a marinha. Um exemplo é perfeito: as equipas de demolição submarinas da marinha de guerra americana foram formadas na década de 40 para ajudar os aliados a colocar tropas em territórios ocupados, que eram defendidos e minados. Para isso, eram necessários mergulhadores que fizessem o reconhecimento das praias antes dos desembarques, para marcar obstáculos, desarmar as minas e testar o terreno para confirmar se suportava os veículos de guerra. O maior problema era que, na marinha americana, os mergulhadores usavam fatos de borracha pesados. Fornecer-lhes oxigénio era complicado. Assim, para essas missões, tiverem de usar outros métodos. Só usavam calções, uma máscara, barbatanas e um relógio. Este era vital, porque quando estes mergulhadores eram largados de noite por um submarino ou uma canoa, sabiam que tinham de regressar a uma hora precisa para serem recolhidos. Nenhuma marca no mundo, para lá da Panerai, fazia relógios especiais destes, e assim os EUA tiveram de se virar para o mercado doméstico. O resultado foram os relógios Canteen, pequenos, de 31 mm de diâmetro. Muitos desses relógios foram feitos pela Hamilton, usando o seu calibre 978, modificado para esse efeito. Em finais da década de 50, a marinha de guerra ainda encomendava esses relógios.

No período da II Guerra Mundial, os italianos iam muito à frente neste setor. As relações da Panerai com o Ministério da Defesa italiano existiam desde o início do século XX, quando a marca iniciara as suas experiências com materiais luminescentes. O objetivo era ver melhor no escuro. Essa possibilidade era garantida através de uma mistura de sulfureto de zinco e brometo de rádio, a que se chamaria depois Radiomir. Na I Guerra Mundial, os instrumentos de precisão da Panerai faziam parte do arsenal militar italiano e, nas décadas seguintes, essa ligação reforçou-se. Giuseppe Panerai criou os famosos relógios Radiomir e Luminor, que, após 1938, começaram a equipar os diferentes setores da marinha de guerra italiana. O Luminor, onde a substância luminescente é feita a partir do trítio, acabou por substituir o Radiomir a partir de 1949. Surgiram também os modelos Mare Nostrum, feitos para oficiais de convés. Mas, em 1956, a pedido da marinha egípcia, a Panerai ainda criará um relógio Radiomir exclusivamente para ela. Hoje, a marca continua a produzir, com sucesso, linhas baseadas nestes modelos militares.

Da esquerda para a direita: IWC PILOT TIMEZONER CHRONOGRAPH EDITION 80 YEARS FLIGHT TO NEW YORK (limitado a 80 exemplares), PANERAI RADIOMIR GMT 45MM PAM998, THE BREITLING NAVITIMER REF. 806 1959 RE-EDITION (limitado a 1959 exemplares) © DR
Da esquerda para a direita: IWC Pilot Timezoner Chronograph Edition 80 Years Flight to New York (limitado a 80 exemplares), Panerai Radiomir GMT 45MM PAM998, The Breitling Navitimer Ref. 806 1959 Re-Edition (limitado a 1959 exemplares) © DR

O pós-guerra era um período de conflitos, entre os receios de uma guerra nuclear, a guerra dos franceses na Indochina. Os UDT da marinha americana foram reorganizados e criaram-se os Seal. Estes foram equipados com as novas espingardas M16 e com novos relógios de mergulho. Numa época de «comprar americano», a maioria dos contratos tinha de ir para as maiores empresas americanas — Elgin, Hamilton e Waltham. Mas o pedido inicial foi de apenas 1000 relógios, algo que não era rentável. Uma empresa americana julgou ter a solução. Allen Tornek era o importador americano da Rayville Watch Company de Villeret, Suíça, que fazia relógios sob o nome Blancpain. Mas era difícil: era preciso fazer um relógio amagnético, em que nenhuma parte poderia ser influenciada pelo magnetismo. Requeria um aço especial que seria importado da Suécia, com uma composição diferente do aço usado então. Demorou a Tornek dois anos para fornecer os primeiros relógios. Não traziam o nome Blancpain no mostrador e este era luminoso. Não eram de radium nem de tritium, mas de promethium-147, sendo assim mais brilhantes. E duravam mais.

Tal como a marinha, a aviação tem sido sempre uma fonte de inspiração para o mundo da relojoaria. A coleção Top Gun da IWC, por exemplo, é a herdeira de uma tradição muito antiga. Desde a década de 40, os relógios Aviador da fábrica de Schaffhausen serviam a bordo de aviões de navegação como os designados relógios B. Só os mais certos medidores de tempo eram suficientemente bons para os observadores. Na navegação, o importante era permitir a leitura fácil dos segundos e minutos. As horas eram apenas representadas de uma forma pequena no anel central. Foi aí que os designers da IWC se inspiraram para apresentarem também separadamente os círculos das horas e dos minutos nos mostradores do Grande Relógio Aviador Top Gun Miramar e no Aviador Cronógrafo Top Gun Miramar. Miramar não é um nome surgido por acaso: é uma homenagem ao lugar da Califórnia onde nasceu o mito dos pilotos de elite. E assim a ideia foi criar, pela primeira vez, uma linha de relógios segundo o desenho militar. As cores vão beber influências à camuflagem. A Zenith também presta atenção ao mundo da aviação. Os aviões de caça fascinam os seres humanos. As suas capacidades parecem não ter fim. Mas, por isso mesmo, estão sujeitos a variações de pressão e a vibrações contínuas que levam a que os seus instrumentos de bordo tenham de ser robustos. Foi aí que o Zenith Stratos Flyback Striking 10th foi buscar inspiração. Herdeiro do modelo Rainbow Flyback desenvolvido para a Força Aérea Francesa em 1997, inclui o movimento de cronógrafo automático El Primero com as funções Striking 10th e Flyback. A Longines, que foi uma das marcas que desenvolveu relógios simples para o exército britânico durante a II Guerra Mundial, lançou, no último ano, o Longines Heritage Military, inspirado no relógio usado pelos pilotos da RAF. O diâmetro (38,5 mm) é maior do que o original (32,5 mm), por uma razão comercial, mas, de resto, o design assemelha-se, com os ponteiros em forma de espadas.

A IWC tem lançado diversos modelos de inspiração que evocam St. Antoine de Saint-Exupéry, o escritor e aviador francês conhecido por contos como O Principezinho. © DR
A IWC tem lançado diversos modelos de inspiração que evocam St. Antoine de Saint-Exupéry, o escritor e aviador francês conhecido por contos como O Principezinho. © DR

Muitos destes relógios seguem especificações militares, tendo em consideração condições de tempo ou de altitude extremas, que facilmente destroem um relógio normal. Foi a pensar nisso que muitas marcas foram continuando a produzir relógios de caraterísticas militares, tendo em conta as necessidades dos exércitos. Mas que, depois, ganham vida, na sociedade civil. Da resistência ao GPS, muitos relógios atuais têm dispositivos que tocam as esferas militares e civis. E o seu design adapta-se a isso. Pense-se no Bell & Ross Aviation BR01, no recente Breitling Super Avenger 48, com caixa de 48 mm, e a sua versão Night Mission, ou no Oris Big Crown ProPilot Day Date. Este ano, a Blancpain recuperou dois clássicos militares baseados em designs emblemáticos da década de 50. Em 1952, a recém-formada unidade de mergulhadores franceses procurava um relógio que se adaptasse a missões militares debaixo de água. A marca suíça foi convidada, devido à sua grande experiência. A peça, designada Fifty Fathoms, foi rapidamente adotada pelas Forças Armadas de outras nações, incluindo a Bundesmarine alemã, que integrava uma relação com o especialista de equipamentos de mergulho Barracuda. Assim, este ano apareceu uma edição especial a comemorar este modelo. O Fifty Fathoms Barracuda apresenta-se com correia de borracha, como a que o original oferecia. Tem também ponteiros fluorescentes brancos, que reforçam o seu design distinto. A marca também apresentou outro modelo com um design clássico: o Blancpain Air Command, baseado num protótipo de entre dezenas que a marca fez para os militares americanos. A Tudor também apostou neste rétro militar com o Black Bay P01, que hoje parece tão pouco usual como terá parecido há 50 anos, quando foi proposto à US Navy. Daí o fascínio que exerce. Na altura, a marca fornecia relógios para as marinhas francesas, americanas e canadenses. A fiabilidade do movimento dos relógios era a razão dessa escolha. Já a Ulysse Nardin tinha uma relação ainda mais antiga com a marinha de guerra americana, que recuperou para fazer o Marine Torpiller Military US Navy. Essa ligação recua até 1905, quando o Observatório Naval de Washington organizou um concurso para relógios que seriam usados em torpedeiros. A Ulysse Nardin ganhou o concurso durante vários anos. Neste caso, os ponteiros são azuis idênticos aos do modelo original, e o número 24 pintado a vermelho no indicador da reserva de marcha recorda que só restam 24 horas para que a função se esgote.

A simplicidade é sempre a marca distintiva destes relógios ligados ao imaginário militar. Depois da extrema complexidade de muitos modelos nos últimos anos, as marcas viram-se para modelos que, com uma grande elegância, representam a sua funcionalidade. Para alguém que controlava um torpedeiro ou um tanque, ou mesmo um piloto de aviões, questões como a equação do tempo ou as fases da Lua não são as mais prementes. Este regresso à simplicidade, à depuração do design militar, não é um acaso. É o reflexo destes tempos modernos. Mais simples. Menos complexos.

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