Novos materiais: high-tech…tac!

Os materiais de nova geração parecem querer contrabalançar o pendor conservador da tradição do movimento mecânico na relojoaria de pulso. No exterior dos relógios, contando com a caixa e todos os seus componentes, o titânio, a cerâmica e o carbono têm ganho cada vez mais terreno no campo da alta-relojoaria.

Um olhar atento sobre a alta-relojoaria do final do século XX projetaria a ideia de estarmos perante um setor bastante tradicionalista e seguidor de boas práticas. As mesmas boas práticas que gerações de criadores relojoeiros tinham defendido como sendo os alicerces de uma indústria que se queria resiliente a mudanças inesperadas… as mesmas boas práticas que, anos antes, quase tinham ditado a extinção de todo um setor devido à sua incapacidade de reconhecer atempadamente mudanças fulcrais na evolução dos mercados em que atuava.

O Big Crown ProPilot X Calibre 115 é o Oris mais Oris de sempre, segundo a própria marca, e surge com caixa em titânio e movimento esqueletizado. Foi apresentado no passado mês de setembro. © Oris
O Big Crown ProPilot X Calibre 115 é o Oris mais Oris de sempre, segundo a própria marca, e surge com caixa em titânio e movimento esqueletizado. Foi apresentado no passado mês de setembro. © Oris

Olhando ainda mais para trás, é também possível verificar que a relojoaria era extremamente apegada aos materiais tradicionais como o latão niquelado, o aço carbono, o níquel, a prata, o ouro ou a platina, vindo a adotar o aço inoxidável apenas perto de duas décadas após a sua descoberta, em 1913, pelo metalúrgico britânico Harry Brearley. Um material que acabou por evoluir para uma liga mais fácil de moldar às exigentes formas das caixas dos relógios, e que ficou conhecida como StayBrite («fica brilhante», em alusão à resistência desta liga à oxidação). Este precursor do aço inoxidável como hoje o conhecemos terá sido, muito provavelmente, o primeiro material tecnologicamente evoluído adotado no campo da relojoaria, se desconsiderarmos o Invar e o Elinvar (ligas que apresentam coeficientes de dilatação térmica extremamente reduzidos), introduzidos nos movimentos mecânicos mais evoluídos do fim do século XIX e início do século XX.

O facto é que a relojoaria esteve sempre atenta aos desenvolvimentos da metalurgia, traçando um percurso paralelo à sua evolução. Razão por que se tornaria inevitável que o vigor tecnológico, verificado no início do século XXI, levasse a que diversos fabricantes iniciassem uma verdadeira corrida às mais variadas tecnologias high-tech, muitas delas derivadas, diretamente, da indústria aeroespacial. A sede de materiais inovadores, com o intuito de proteger o movimento e melhorar a performance e resistência do relógio como um todo, acabou por ser acompanhada, em igual medida, pela necessidade de dar uma imagem contemporânea aos produtos, em linha com as tendências de uma nova geração de consumidores, e na qual o marketing desempenhou, e desempenha ainda hoje, um papel fundamental.

Dificilmente se conseguiria abordar este tema de forma exaustiva sem ocupar, pelo menos, metade desta edição da Espiral do Tempo, mas não podemos deixar de referir que as últimas tendências apontam, maioritariamente, para soluções associadas à redução do peso e ao aumento da durabilidade da superfície dos materiais, pelo que o foco no titânio, na cerâmica e no carbono parece fazer sentido.

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Descoberto na Cornualha pelo mineralogista inglês William Justin Gregor, em 1791, e apenas produzido em quantidade, em 1910, pelo industrial americano Matthew Albert Hunter, a estreia do titânio como material aplicado na caixa de um relógio acontece apenas em 1970, pela mão da marca japonesa Citizen, quando esta apresentou ao público o seu X8-Chronometer. Influenciada diretamente pelo sucesso do programa espacial Apollo e pela aplicação do titânio nas cápsulas espaciais, a Citizen tinha já reconhecido a vantagem das propriedades antialérgicas e de resistência à corrosão deste metal, e das quais se destacavam o seu reduzido peso e elevada dureza. Anos mais tarde, o fabricante japonês viria a associar o seu tratamento de superfície Duratect às caixas de titânio, dando origem ao Super Titanium, cuja dureza é agora cinco vezes superior à do aço.

O Big Crown ProPilot X Calibre 115 é o Oris mais Oris de sempre, segundo a própria marca, e surge com caixa em titânio e movimento esqueletizado. Foi apresentado no passado mês de setembro. © Oris
O Big Crown ProPilot X Calibre 115 é o Oris mais Oris de sempre, segundo a própria marca, e surge com caixa em titânio e movimento esqueletizado. Foi apresentado no passado mês de setembro. © Oris

Mas o titânio, como material leve e resistente empregado nas caixas de relógios, ganha apenas uma expressão relevante em 1980. Nesse ano, o arrojo criativo do professor Ferdinand A. Porsche traduziu-se no lançamento de um modelo inovador com caixa e pulseira em titânio, naquela que viria a ser a primeira verdadeira incursão no campo de uma estética alternativa associada ao uso intensivo do titânio.

Identificado como uma excelente opção para modelos desportivos ou com complicações acústicas, apenas em 2001, com o lançamento do RM 001 da Richard Mille, voltaria a ver-se a conjugação deste metal com o arrojo estético e desportivo que ele normalmente acarretava. Para esta marca, eminentemente tecnológica, o titânio viria a tornar-se um material perfeitamente tradicional.

Mais recentemente, coube à Panerai, numa edição dedicada ao explorador Mike Horn, o lançamento de um modelo da linha Submersible cuja caixa, tampa, aro e proteção de coroa são constituídos por Eco-Titanium, uma versão reciclada deste metal que tem origem no que agora se apelida de «tecnologias de base sustentável».

O Panerai Submersible Marina Militare Carbotech™. A caixa com 47 mm, é feita de carbotech, um material baseado em fibra de carbono e introduzido no mundo da alta-relojoaria pela marca italiana.  © Panerai
O Panerai Submersible Marina Militare Carbotech™. A caixa com 47 mm, é feita de carbotech, um material baseado em fibra de carbono e introduzido no mundo da alta-relojoaria pela marca italiana. © Panerai

As caraterísticas notáveis do titânio acabaram por seduzir, também, François-Paul Journe, que não hesitou em usar o argumento da leveza e resistência do material para o aplicar na linha feminina Élegante. A casa, sediada em Genebra, optou pelo titânio de grau 5 com tratamento de superfície à base de Titalyt®, um procedimento no qual o titânio é submetido a um método de oxidação por plasma, que melhora substancialmente a dureza e a resistência do material ao desgaste e à corrosão.

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O fabricante de relógios que, ao longo dos anos, mais usou a cerâmica, de forma consistente, na construção das caixas dos seus modelos é, inequivocamente, a Rado. A marca suíça apostou sempre de forma pioneira neste material, tendo alcançado um nível de sofisticação assinalável. Inicialmente confinada à cor negra ou branca, a utilização de um processo patenteado veio permitir à marca suíça forjar este material também em outras cores. Partindo de uma base branca levada ao forno a temperaturas extremamente altas -— com gases ativados a 20.000 °C para elevar a temperatura da cerâmica aos 900 °C — o processo altera a composição química da superfície sem alterar a sua estrutura, de modo a que as propriedades da cerâmica não sejam afetadas.

Tal como a Rado, a Chanel apostou na cerâmica para algumas das suas mais icónicas criações, tendo sido pioneira ao elevar este material ao estatuto de material de luxo, através da coleção J12. Nas imagens, encontra alguns dos novos J12 apresentados este ano, com caixa e bracelete em cerâmica branca e preta e linhas redesenhadas. © Chanel
Tal como a Rado, a Chanel apostou na cerâmica para algumas das suas mais icónicas criações, tendo sido pioneira ao elevar este material ao estatuto de material de luxo, através da coleção J12. Nas imagens, encontra alguns dos novos J12 apresentados este ano, com caixa e bracelete em cerâmica branca e preta e linhas redesenhadas. © Chanel

E também a Richard Mille não hesita em colocar a sua impressão digital na cerâmica. A Y-TZP — Zircónia Tetragonal Policristalina — é uma cerâmica extremamente negra com acabamento mate bastante agradável ao toque. A sua baixa densidade de 6 g por cm3, combina resistência com um baixo coeficiente de condutibilidade térmica, permitindo dar à sua superfície diversos tipos de acabamento, entre os quais se incluem, inesperadamente, ângulos polidos à mão.

Noutro modelo, neste caso o RM 01 Le Mans Classic, o fabricante utiliza uma outra variante da cerâmica. O ATZ é um óxido de alumínio misturado com dióxido de zircónio numa concentração de dez a 20%, o que torna a base de cerâmica branca brilhante e extremamente resistente.

Mas as propriedades fascinantes da cerâmica acabam por ser, também, uma mais-valia quando combinadas com alguns metais. É o caso do ouro, que a Omega conseguiu, com sucesso, fundir com a cerâmica de maneira a obter um material que batizou de Ceragold. A técnica usada para fabricar esta liga permite o crescimento e a ligação do ouro de 18 kt à cerâmica, sendo usada para criar aros de cerâmica com uma numeração em ouro bastante suave ao toque. O modelo Seamaster Planet Ocean Ceragold é um exemplo recente da aplicação desta técnica.

Tal como a Rado, a Chanel apostou na cerâmica para algumas das suas mais icónicas criações, tendo sido pioneira ao elevar este material ao estatuto de material de luxo, através da coleção J12. Nas imagens, encontra alguns dos novos J12 apresentados este ano, com caixa e bracelete em cerâmica branca e preta e linhas redesenhadas. © Chanel
Tal como a Rado, a Chanel apostou na cerâmica para algumas das suas mais icónicas criações, tendo sido pioneira ao elevar este material ao estatuto de material de luxo, através da coleção J12. Nas imagens, encontra alguns dos novos J12 apresentados este ano, com caixa e bracelete em cerâmica branca e preta e linhas redesenhadas. © Chanel

A IWC seguiu este mesmo princípio, mas aplicou-o ao titânio, estreando-o em série na linha Pilot. Apelidado de Ceratanium, o material alia, logicamente, a leveza e dureza do titânio à natural resistência à abrasão da cerâmica. Caixa, fivela, coroa e botões do cronógrafo são trabalhados, primeiro, a partir de uma liga de titânio de elevada pureza  polidos ou acetinados logo antes de irem a cozer num forno de alta temperatura. Ao longo deste processo, a camada superficial transforma-se em cerâmica, enquanto o interior continua a ser de titânio. O Ceratanium obtido a partir deste método possui uma dureza de 1.300 HV e é 33% mais leve do que o aço.

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O carbono é um material cada vez mais acessível que continua a marcar pontos em diversas áreas tecnológicas, incluindo na alta-relojoaria. A Panerai introduziu o material em 2015 sob o nome Carbotech, uma versão com fibras reforçadas que associou a um fundo em titânio e cujo acabamento, granulado, encaixa exemplarmente na estética robusta dos seus modelos.

Em 2004, Audemars Piguet tornou-se a primeira manufatura a utilizar fibras de carbono em alta-relojoaria e também a única a utilizar esse material de modo funcional para lá de meros interesses estéticos. © Nuno Correia/ Espiral do Tempo
Em 2004, Audemars Piguet tornou-se a primeira manufatura a utilizar fibras de carbono em alta-relojoaria e também a única a utilizar esse material de modo funcional para lá de meros interesses estéticos.
© Nuno Correia/ Espiral do Tempo

Já habituada à leveza que a fibra de carbono adiciona aos seus relógios, a Richard Mille quis explorar ainda mais as propriedades associadas à resistência deste material. Para o efeito, passou a utilizar um polímero especial, injetado com nanotubos de carbono que conferem ao material uma dureza extrema, 200 vezes superior à do aço. Estas estruturas cilíndricas em miniatura são capazes de absorver impactos mais elevados do que a fibra de carbono tradicional, em parte devido à sua estrutura e excelente relação volume/superfície. Cada nanotubo é aproximadamente 50.000 vezes menos espesso do que um cabelo humano, apesar de poder medir vários milímetros de comprimento. A sua aplicação na caixa monobloco do RM 27-01, usado pelo tenista Rafael Nadal, veio provar tanto o seu propósito como a sua eficácia.

No entanto, a experiência da Richard Mille com a fibra de carbono remonta, já, a 2012, quando a marca resolveu explorar as propriedades do NTPT (North Thin Ply Technology), um laminado que melhora significativamente as propriedades mecânicas dos componentes e permite uma grande liberdade no posicionamento otimizado de cada microfibra, consoante a utilização a que este laminado se destina.

Esta foi a experiência que levou à criação de um outro modelo que marcou um ponto de viragem para a marca, no que diz respeito à pesquisa de materiais. O RM 50-03 McLaren F1, apresentado no Salon Internacional de la Haute Horlogerie Genève (SIHH), em 2017, é o cronógrafo com turbilhão mais leve do mundo (38 g), e o primeiro exemplo da aplicação do Grafeno num relógio. Este novíssimo material, com uma condutividade térmica extremamente elevada, tem sido objeto de bastante discussão desde que foi sintetizado, em 2004, por Andre Geimand e Konstantin Novoselov, da Universidade de Manchester. Uma descoberta que lhe valeu o prémio Nobel da Física, em 2010. Visto como potencialmente revolucionário no campo do armazenamento de energia, no caso da relojoaria este material destaca-se pela resistência à quebra 200 vezes superior à do aço, apesar de ser seis vezes mais leve. As caixas fabricadas neste material são obtidas através da injeção de Grafeno na resina, na qual as fibras de carbono são embebidas de maneira a torná-lo mais leve e mais resistente.

O Laureato Absolute Carbon Glass da Girard-Perregaux. © Girard-Perregaux
© Girard-Perregaux
O Laureato Absolute Carbon Glass da Girard-Perregaux. © Girard-Perregaux
O Laureato Absolute Carbon Glass da Girard-Perregaux. © Girard-Perregaux

Já a demanda por soluções que confiram leveza e resistência às caixas dos seus relógios levou a venerável Girard-Perregaux a optar por um material 100 vezes mais rígido do que o aço, impermeável e com uma densidade tão baixa que é quase possível fazê-lo flutuar. Apelidada de Carbon Glass, às suas propriedades surpreendentes associa-se, também, uma aparência estética fora do comum, derivada das fibras de vidro azuis incorporadas durante o processo de injeção a alta temperatura usado na construção das caixas do Laureato Absolute Carbon Glass.

No universo da Ulysse Nardin, a aplicação do carbono assume a designação Carbonium. Construído à base de fibras de carbono usadas na indústria aeroespacial, e duas vezes mais leve do que o alumínio, o Carbonium tem um impacto ambiental significativamente mais reduzido do que outros compósitos de carbono. Além deste aspeto, a aparência estética acaba por beneficiar de um agradável efeito marmoreado criado pelas fibras, e que pode ser combinado com pigmentos de cor ou metais preciosos.

O ouro, apesar de continuar a ser muito utilizado, é neste momento proposto em diversas ligas avançadas. A Chopard, no entanto, mantém-se fiel à sua utilização mais tradicional, tendo anunciado que, a partir de julho de 2018, passaria a usar ouro 100% ético em todas as suas peças de joalharia e relojoaria. © Chopard
O ouro, apesar de continuar a ser muito utilizado, é neste momento proposto em diversas ligas avançadas. A Chopard, no entanto, mantém-se fiel à sua utilização mais tradicional, tendo anunciado que, a partir de julho de 2018, passaria a usar ouro 100% ético em todas as suas peças de joalharia e relojoaria. © Chopard

O titânio, a cerâmica e o carbono não esgotam, de forma alguma, a aplicação de materiais e métodos high-tech na alta-relojoaria. O ouro, por exemplo, é neste momento proposto em ligas avançadas, com nomes como Honey Gold, Sedna Gold, Magic Gold, Everose ou Rolesor, e a platina também tem no Rolesium um representante. No campo dos aros dos modelos mais desportivos, o Liquidmetal e o Cerachrom apresentam qualidades inquestionáveis. É uma lista interminável de materiais, uns mais inovadores do que outros, que acrescentam ao léxico relojoeiro termos como Cobalt Micromelt® (da Roger Dubuis), BMG-TECH™ (da Panerai) ou ainda Zalium (da Harry Winston).

O L.U.C Flying T Twin, um dos lançamentos de 2019 da Chopard. O primeiro flying tourbilhão da marca apresenta uma caixa em ouro rosa com o certificado Fairmined. © Chopard
O L.U.C Flying T Twin, um dos lançamentos de 2019 da Chopard. O primeiro flying turbilhão da marca apresenta uma caixa em ouro rosa com o certificado Fairmined. © Chopard

E isto sem considerar as inovações aplicadas aos próprios movimentos mecânicos, cuja revolução é claramente liderada pelas propriedades termicamente neutras e amagnéticas do silício. Mas isso é matéria para um outro capítulo da saga high-tech… taque!

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