No mais recente capítulo da nossa rubrica ‘Um Leitor, Uma História’, João Fernandes fala-nos dos seus relógios Jaeger-LeCoultre associados à iniciativa Reverso/Arte Portuguesa — quatro exemplares Reverso de elevado valor artístico e emocional com muitas histórias associadas… e a inconfundível assinatura de Júlio Pomar, Manuel Cargaleiro, Paula Rego e José de Guimarães. Na sua coleção falta apenas o Reverso com assinatura de Julião Sarmento.
—
Caro leitor, há partes desta história que são reais e há outras que não. Mas uma coisa é certa: os relógios de que vou falar são bem reais e são hoje tão meus como da pessoa que à época os colecionou. Dito isto, eu estava lá quando tudo aconteceu. Por isso, porque conheço tão bem o que se passou, resolvi contar esta história na primeira pessoa, recontando e reinterpretando o significado desses dias como se tivesse sido eu – mas com a preciosa ajuda de quem viveu cada momento. Foi um prazer viajar no tempo e escrever estas linhas. Algo que fiz com um enorme sentido de gratidão para com a Espiral do Tempo, pelo desafio e oportunidade.
Por João Fernandes
O novo milénio à espreita
Estamos no ano 2000. Portugal atravessa uma fase de prosperidade. Há uma certa eletricidade no ar, excitação. O sentimento de se assistir ao revelar do futuro no presente.
A minha ligação ao Reverso da Jaeger-LeCoultre começa algum tempo antes. Numa solarenga manhã de domingo, enquanto folheava uma revista, um artigo sobre a nova coleção de Reversos despertou a minha atenção. À época, enquanto entusiasta, saber todos os detalhes da história de um relógio não era tão simples como pegar no telemóvel e procurar na Internet. Lembro-me por isso que o artigo contava a história da origem do relógio em detalhe e que esta me cativou. Talvez o meu fraco por ligações às forças armadas tenha ajudado. Quem passou pelo Ultramar jamais o esquecerá.
O primeiro
Meses mais tarde, durante um passeio de fim-de-semana com a família pelo centro comercial Amoreiras, fui visitar a antiga joalharia Lazuli. Um hábito meu, já era cliente. Entrei, vi os Reversos que lá estavam e apaixonei-me por um Duoface 270.2.54, modelo que foi carinhosamente apelidado de Night & Day, palavras que se encontram no seu mostrador preto. Sempre fui algo impulsivo quando chega o momento de comprar, não me dando espaço para mudar de ideias. Saí da loja com o relógio no pulso, onde hoje se encontra enquanto escrevo estas palavras. Começou assim a minha incursão no mundo da Jaeger-LeCoultre, a relojoeira dos relojoeiros.
O Reverso é um relógio peculiar. A versão clássica continua a ter dimensões semelhantes às do modelo original de 1931. Num mundo em que aparentemente as casas, os carros e também os relógios têm de ser cada vez mais vistosos, o Reverso é um escape, um relógio que apenas fala para quem o usa. Não é a peça mais versátil, pede uma certa indumentária, requer um contexto próprio para se sentir em casa. Coisas da minha cabeça, talvez.
Arte portuguesa
Passados não muitos meses, em nova visita à joalharia Lazuli, fico a saber da colecção “Reverso/Arte Portuguesa” que estava em vésperas de ser lançada. Seriam quatro relógios (acabaram por ser cinco), quatro “telas” para quatro artistas portugueses de renome. Quatro obras de arte no que já é por si só uma obra de arte. Todos viriam acompanhados de uma serigrafia. Pedi para me contactarem quando recebessem o primeiro. Assim aconteceu.
Falar dos relógios desta coleção é falar, em primeiro plano, da arte que veste os seus versos.
Júlio Pomar fez as honras da coleção. No mostrador do Reverso Date em ouro rosa encontramos a assinatura do artista a acompanhar os ponteiros das horas e minutos, um submostrador circular dos pequenos segundos, a indicação da data através de um lindíssimo ponteiro vermelho, e o dia da semana numa janela colocada às 11 horas. A fonte usada na numeração é lindíssima, a minha preferida da coleção. No verso da caixa, a gravura de uma tartaruga e de uma lebre numa alusão ao conto de Esopo adaptado por La Fontaine. Uma mensagem de perseverança; de que podemos fazer do tempo nosso amigo.
Não existindo Reversos banais, bastam poucos segundos com o Reverso Júlio Pomar no pulso para se perceber o quão este é especial. É certo que o mercado está cada vez mais inundado de edições limitadas, o que já era verdade à época, mas não é todos os dias que uma das relojoeiras mais conceituadas do mundo aponta desta forma o holofote para o nosso Portugal. Senti o peso da oportunidade e decidi agarrá-la. Adquirir o primeiro relógio da coleção acabou por gerar um ‘efeito bola de neve’, já que a partir daí fiz por o poder ter na companhia das peças seguintes da série.
Em 2001, foi a vez de Manuel Cargaleiro. No mostrador preto do Reverso Or Deco em ouro branco encontramos a assinatura do artista, acompanhada de uns ponteiros largos que dão uma certa leveza de espírito a esta face. No verso, uma belíssima pintura carregada de simbolismo. Destaco a espiral, que é do tempo, tal como a revista (e que também nasceu em 2001… coincidência?). Uma alusão ao carácter infinito do tempo.
Um ano volvido e estamos em 2002. É a vez de Paula Rego nos brindar com mais uma peça, desta vez um Reverso Grande Taille em ouro rosa. Não vale a pena tentar disfarçar, é o meu relógio favorito da coleção. O mostrador é idêntico ao da peça anterior, mas com o contraste invertido e uns ponteiros finos. No seu verso, a gravura de uma mulher e de um pelicano. Paula Rego dá todo um simbolismo a esta gravura, mas é por demais evidente que estamos perante uma mulher que se encontra em total controlo da situação
Esse controlo parte da sua vulnerabilidade: de olhos fechados, abre a boca convidando a ave a entrar. Tive desde cedo em mulheres as figuras centrais da minha vida, e talvez daí venha o meu fascínio e ligação a esta peça. A vulnerabilidade, que é muitas vezes tida como um traço feminino, é uma das derradeiras marcas de um líder.
Finalmente, em 2003, foi a vez de José de Guimarães. A Jaeger-LeCoultre decidiu ‘abanar’ um pouco a coleção e presenteou-nos com um Reverso Gran’Sport, o único relógio da série Reverso/Arte Portuguesa com caixa em aço, por imposição do artista, um ativista pela arte democrática (e pela democracia!).
É também o único relógio que tem a rubrica do autor na caixa e não no mostrador. Teve ainda direito a uma correia feita especialmente para ele. O mostrador branco é também ele distinto dos demais desta coleção. É o único com ponteiro dos segundos no eixo central, e em que foi usada uma fonte com serifa na numeração. A data encontra-se às 6 horas. É para mim o relógio que mais revela sobre a sua idade. Os Reverso Gran’Sport transportam-me sempre para a relojoaria dos anos 90, com tudo o que isso trás de bom e de mau. No verso da caixa, a pintura de uma serpente azul (de felicidade e esperança), símbolo da eternidade em várias culturas africanas.
Tudo indicava que a coleção se encontrava fechada quando em 2010 sai então mais um relógio, desta vez com a arte de Julião Sarmento. Não o tenho. A vida é feita de escolhas e os relógios, sendo uma paixão, não vêm primeiro. Quem sabe um dia…
Ter os quatro primeiros relógios da série Arte Portuguesa na minha coleção pessoal é um orgulho e um privilégio. As serigrafias que acompanharam os relógios encontram-se espalhadas pelas paredes da minha casa e relembram-me diariamente destes factos. Faço no entanto questão de usar os meus relógios e estes não são exceção. Gosto de lhes mostrar a luz do dia, de os partilhar com outros apaixonados pela arte relojoeira e pelas artes plásticas. Por onde passam dão azo a animadas conversas sobre a marca, sobre o modelo, sobre o seu verso, e sobre a vida e obra do artista.
Concluindo
No verso de um Reverso haverá sempre uma página em branco à espera de ser preenchida, seja com uma simples dedicatória ou uma magnânima obra de arte. Uma pequena janela de pulso com vista para o imaginário. Volvidos 20 anos do lançamento do primeiro relógio, a arte portuguesa está de saúde e recomenda-se. Alguém que o diga à Jaeger-LeCoultre! Pode ser que esta nos agracie com nova série num futuro próximo. Sonhar não custa!
Sobre o leitor convidado:
João Fernandes
Engenheiro e apaixonado pelo engenho. Lisboeta desde 1987, mas com raízes transmontanas. Apreciador do antigo, da relojoaria aos automóveis, de histórias a bons vinhos. Não deixa nenhum dos seus relógios sem uso por demasiado tempo.
Instagram: @a_full_hour
Siga as histórias dos nossos leitores: #umleitorumahistoria #espiraldotempo
—