Os mais relevantes relógios desvelados recentemente apresentam algo em comum: oferecem um suplemento acústico e associam a arte da metalurgia à da engenharia micromecânica. Não é de agora: o advento dos primeiros relógios dignos desse nome foi rapidamente acompanhado por complicações sonoras — alarmes, repetições de minutos, pequenas e grandes sonneries que transformam qualquer pulso num campanário de igreja! Aqui fica a história de uma outra dimensão na medição do tempo que também teve raízes religiosas, mas com variantes especialmente lúdicas.
—
Versão completa da reportagem publicada no número 53 da Espiral do Tempo
Basta atentar nas obras-primas mais recentes da alta-relojoaria para se constatar que a dimensão acústica do tempo está em grande destaque entre as grandes divulgações do biénio 2014-2015. Desde o Vacheron Constantin Ref. 57260 de bolso ao Patek Philippe Grandmaster Chime, passando pelo A. Lange & Söhne Zeitwerk Minute Repeater e pelo Royal Oak Concept RD#1, todos eles se fazem ouvir! Os turbilhões são fascinantes, os calendários perpétuos apresentam pedaços de eternidade e os cronógrafos conseguem agarrar o tempo dentro do tempo — mas as complicações acústicas oferecem a qualquer relógio mecânico algo de suplementar, e não é de admirar que sejam as mais difíceis de concretizar tecnicamente, tornando-se facilmente objetos de culto e de coleção. Ciente disso, a organização do Grand Prix d’Horlogerie de Genève abriu mesmo uma nova categoria para celebrar e premiar as mais importantes criações acústicas anuais.
Entre as várias indicações sonoras, a mais simples é a do alarme — um som que geralmente apresenta um único timbre e que serve de aviso ou de despertador, podendo também estar associado a contagens crescentes ou decrescentes. Depois há as repetições, que ‘repetem’ de modo sonoro e a pedido do utilizador a indicação do tempo mediante o acionamento de um botão ou de uma alavanca que despoleta um mecanismo que faz soar vários timbres (geralmente, a hora surge num timbre mais grave, os quartos em tons graves e agudos, os minutos em tom agudo); existem atualmente a repetição de quartos, a repetição de dez minutos, a repetição de cinco minutos, a repetição de meios quartos e a repetição de minutos simples. Mas a mais sofisticada expressão das complicações acústicas encontra-se nas sonneries, que ‘batem’ as horas sem ser necessário que o utilizador intervenha e apresentam uma variedade de sons ainda mais impressionante; a chamada grande sonnerie repete as horas a cada quarto, ao passo que a pequena sonnerie só o faz à hora — mas, em ambos os casos e tal como nas repetições, também podem fazer soar o tempo a pedido em qualquer altura.
Complicações sonoras
O acrescento acústico representou a primeira complexidade mecânica adicional verdadeiramente útil nos relógios mecânicos, ainda no século XV e quando ainda não existiam sequer ponteiros dos minutos. O toque de alarme representava a solução para um problema que era imediato ou quase — desde uma ajuda à memória até ao ato de despertar.
A corporação de relojoeiros de Genebra solicitava candidatos capazes de produzir uma espécie de alarme a ser usado à volta do pescoço no século XVI e vários dos grandes mestres do século XVIII executaram notáveis mecanismos do género antes de passarem à maior complexidade sonora das repetições e sonneries. No final do século XVIII, muitas das pendulettes dos oficiais já tinham um sistema de alarme; na fase terminal do século XIX, os relojoeiros franceses Bapst e Falize utilizaram uma patente americana para fabricar um pequeno despertador e, com o advento dos relógios de pulso no início do século XX, tornou-se natural que a função de alarme se adaptasse à miniaturização dos mecanismos relojoeiros portáteis. O desenvolvimento histórico dos movimentos de alarme encontra-se devidamente escalpelizado num artigo que lhes é dedicado nesta edição da Espiral do Tempo.
Se o alarme mecânico implica um som emitido numa hora predefinida com o efeito de despertar ou recordar, a função e o objetivo das repetições e sonneries são distintos: o de anunciar mecanicamente o tempo de maneira sonora, processo que remonta à Idade Média e ao período em que o tempo laico na Europa e no Médio Oriente era praticamente regido pelo tempo religioso devido à necessidade de concretizar as rezas nos momentos certos. Os campanários das igrejas tornaram-se referências comunitárias, ao passo que relógios de parede ou mesa indicavam o tempo em ambientes mais fechados ou domésticos numa altura em que não existia eletricidade e muito menos indicadores luminescentes para se poder ver as horas a qualquer altura da noite sem ter de se acender uma vela. O mesmo era válido para as viagens noturnas nos primeiros tempos dos relógios portáteis, bastando puxar um cordão ou premir um botão para acionar uma versão acústica do tempo.
Precursores históricos
Os mestres ingleses do século XVII foram os grandes fomentadores das complicações acústicas numa fase de supremacia da relojoaria britânica — e foi mesmo necessária a arbitragem do rei James II de Inglaterra para determinar, em 1687, o inventor do mecanismo que fazia soar as horas e os quartos: a escolha recaiu sobre Daniel Quare, em detrimento de Edward Barlow numa parceria com Thomas Tompion. Em 1710, Samuel Watson adicionou um sistema de indicação dos minutos desde o último quarto de hora e Thomas Mudge chegou à repetição de minutos com um sistema de grande precisão por volta de 1750. E, ao mesmo tempo que Georg Christoph Lichtenberg afirmava que «um homem cultivado repete a história do mundo quando faz o seu relógio repetir o tempo», dava-se o aperfeiçoamento do inevitável Abraham-Louis Breguet — que, cerca de 1780, introduziu a repetição a meios quartos e aperfeiçoou a miniaturização do sistema: um pequeno martelo dava, num único timbre que acompanhava a curvatura do relógio, um golpe para as horas, dois para os quartos e um outro para os meios quartos; outros exemplares do genial Breguet chegariam a ter cinco martelos. E os elementos que compunham o mecanismo de repetição estavam reunidos num movimento autónomo dotado de tambor de corda, molas e rodagens. Em alguns modelos do século XVIII, já havia versões de caráter pessoal, que impediam que o som incomodasse outros ouvidos.
A evolução fez passar o sistema de sinos para o de gongos em fio de aço temperado na platina, permitindo reduzir a espessura do relógio. O som podia ser simples (um só timbre ou gongo) ou denominado carrilhão/catedral quando expresso em diversas notas. E as melodias eram mesmo encomendadas a músicos consagrados consoante solicitação da manufatura ou do próprio cliente.
Apesar do seu princípio de funcionamento simples, o mecanismo de repetição sempre foi dos mais complexos da arte relojoeira. A velocidade do acionamento tem de ser controlada por um sistema de escape centrifugador. E o mecanismo implica à partida uma grande variedade de dispositivos de segurança para impedir erros e estragos, como o fecho da sonnerie no momento de acerto das horas, temporização regular e evitar que à passagem de uma nova hora o mecanismo indique três quartos de hora e 14 minutos. O mecanismo chamado ‘tudo ou nada’, que simplesmente não tocava quando acionado indevidamente, já existia em 1720.
No final do século XIX, as invenções de Heinrich Göbel e Thomas Edison iluminaram o mundo e a eletricidade parecia condenar ao desaparecimento esses relógios portáteis com complicações acústicas — que na altura se podiam usar no bolso ou à volta do pescoço e até mesmo no pulso: a Audemars Piguet terá concebido a primeira repetição minutos de pulso para Louis Brandt em 1892. Por volta de 1910, começaram a surgir mais versões de pulso, só que o preço exorbitante e a fragilidade impediram uma maior divulgação — até porque a sua função deixou de ser propriamente uma necessidade, a não ser para invisuais (mas mesmo esses, na Europa, podiam saber as horas a partir dos campanários que se faziam ouvir ao longe). As repetições só eram fabricadas para corresponder a encomendas específicas e apenas pelas mais reputadas casas, como a Audemars Piguet, Haas Neveux, C. H. Meylan, Patek Philippe ou Vacheron Constantin. Os relógios com repetição que não eram feitos por encomenda demoravam por vezes anos a ser vendidos, na maior parte dos casos transferindo o movimento para outra caixa mais da preferência do freguês.
Entre os modelos mais acessíveis, na década de 30 surgiu o Diva Repeater, um robusto modelo retangular com uma repetição de quartos que teve uma tiragem de 1500 exemplares. A Angelus apresentou, em 1957, o Tinkler, modelo automático com repetição de quartos, mas não se venderam mais de cem. Mais bem-sucedido foi o Kelek com repetição de cinco minutos, assente num módulo da Dubois-Dépraz. E foi somente a partir da segunda metade da década de 80, acompanhando o renascimento da relojoaria mecânica como reação ao domínio do quartzo, que as complicações acústicas recuperaram o seu prestígio. A Frédéric Piguet e a Blancpain apresentaram novos calibres ultraplanos, e tanto companhias como a Audemars Piguet, a Patek Philippe e a Vacheron Constantin ou fornecedores como a Lemania seguiram pela mesma via.
O caso das grandes e pequenas sonneries implica uma dimensão musical superior à das repetições. No lendário relógio de bolso encomendado por James Packard à Patek Philippe, a melodia foi escolhida a partir da ópera Jocelyn, de Benjamin Godard; e no também lendário Calibre 89 da mesma manufatura genebrina, a música foi escrita pelo diretor da Orquestra Sinfónica da Suíça Romande, com os quatro gongos a proporcionarem uma melodia de 12 notas. Mas a transferência das grandes e pequenas sonneries para o pulso só surgiu no final do século XX.
A era contemporânea
Em 1992, houve uma apresentação na feira de Basileia que abalou a alta-relojoaria: no espaço da Academia Relojoeira de Criadores Independentes (AHCI), o mestre Philippe Dufour apresentou o primeiro relógio de pulso dotado de uma grande sonnerie. Batia as horas e os quartos à passagem através de dois gongos e era também dotado de uma repetição de minutos acionada a pedido. As mais prestigiadas marcas quiseram logo que o mestre da Vallée de Joux iniciasse uma produção restrita — a ser vendida com o nome dessas marcas no mostrador. Demoraria algum tempo até essa prática de ‘contratação’ se generalizar.
François-Paul Journe, outro genial relojoeiro, considera a grande sonnerie ‘o Evereste das complicações’, e sabe do que fala: são muito poucos os mestres que conseguem atingir esse cume relojoeiro, e, no início da presente década, apenas ele, o já mencionado Philippe Dufour, a Bulgari (através dos ateliers herdados com a aquisição da Gérald Genta e da Daniel Roth), a Audemars Piguet (graças aos especialistas da Renaud & Papi), a Franck Muller (através dos primos Golay) e a Jaeger-LeCoultre apresentavam uma produção regular de grandes sonneries. A Patek Philippe só veio depois, com o modelo híbrido bolso/pulso Grandmaster Chime, apresentado no final de 2014, após ter sido desenvolvido por Philippe Barat ao longo de sete anos.
Energia e som
As dificuldades da escalada para o topo do Evereste relojoeiro são de vária ordem: o primeiro problema de monta é o do fornecimento da energia necessária para fazer soar a complicação — e é necessária uma grande dose de energia para despoletar os martelos que fazem soar os gongos na medida certa; e muito mais energia quando existem outras complicações combinadas (a Grand Complication que a A. Lange & Söhne apresentou no início de 2014 inclui também um cronógrafo rattrapante e um calendário perpétuo). Só por si, a função grande sonnerie precisa de uma enorme quantidade de energia para um único dia: 24 horas representam 96 toques (a título de comparação, um calendário perpétuo aciona tudo somente uma vez por dia com a mudança de data). Como é fácil de constatar, requer bem mais energia do que nas repetições de minutos, que só se fazem soar quando o utilizador aciona o mecanismo.
O outro grande desafio técnico tem a ver com a propagação do som, que tem de se fazer ouvir através de uma caixa que também tem de ser suficientemente selada para evitar a humidade e o pó, tão nocivos a qualquer mecanismo relojoeiro. Claro que um relógio com repetição ou sonnerie não precisa de ser estanque para mergulho, mas deve ser resistente a uma queda acidental no lavatório ou à chuva. Independentemente desse hermetismo, o som tem de ressoar a uma frequência capaz de vibrar para além do movimento, da caixa e do ar até ser escutada pelo utilizador — e, dependendo do utilizador, pode ser preciso fazer uma afinação ao gosto do freguês e de acordo sua própria capacidade auditiva.
Geralmente, o gongo é fabricado em aço temperado, mas — ao longo do tempo e graças aos progressos da metalurgia — foram testados vários outros materiais no sentido de se conseguir um som mais amplo. Ultimamente, tem-se usado a safira para um som mais cristalino, a cerâmica para um timbre mais profundo. E nas caixas em platina chegou-se mesmo a substituir os 5% habituais de cobre por uma quantidade idêntica de tungsténio para se aumentar a ressonância.
Depois, há a questão dos diferentes timbres. Dois gongos bastam para a repetição minutos — a título de exemplo, a indicação de cinco horas, três quartos e mais dois minutos é proporcionada pela combinação ‘dong, dong, dong, dong, dong’, depois ‘ding-dong, ding-dong, ding-dong’ e ainda ‘ding, ding’. A primeira geração de grandes sonneries também assentava em somente duas tonalidades. O toque Westminster, que serve de referência, usa três gongos; no Calibre 89 de bolso terminado em 1989, a Patek Philippe tem quatro gongos; o Ref 138285 da Patek Philippe vendido em 1910 tinha um carrilhão de cinco gongos. No caso dos relógios de pulso, onde a miniaturização é superior e a agitação no pulso naturalmente maior, há sempre uma escolha a fazer: mais peças implicam sempre mais problemas; uma complicação relojoeira acústica não tem de ser uma caixa de música.
A Piaget tem trabalhado com engenheiros acústicos de Besançon, a Chopard com cientistas, a Breguet desenvolveu uma membrana metálica de vidro para fazer ressoar melhor o som, e a Jaeger-LeCoultre orgulha-se do seu típico ‘som gongo de cristal’ assente numa peça numa liga especial que é termicamente colada ao vidro para a utilizar como superfície de ressonância. Entretanto, mudou o perfil habitual dos seus gongos para uma maior superfície de batimento e redesenhou os martelos no Master Ultra-Thin Minute Repeater Flying Tourbillon.
Segurança e proteção
Num puzzle tridimensional com centenas de peças (a maior parte delas com acabamentos à mão) em ação num universo quase microscópico, qualquer nota dissonante arruína o produto final. E os ajustes de som não são fáceis, sobretudo na grande sonnerie — que só pode ser testada ao longo de um ciclo de 12 horas, enquanto a repetição minutos é de acionamento e ouve-se a pedido. A mais recente preocupação das marcas tem consistido em silenciar ao máximo o tradicional ruído das engrenagens entre toques.
Outra grande dificuldade prende-se com a segurança: o utilizador tem de saber quando pode ajustar o relógio sem correr o risco de danificar o mecanismo acústico. A Audemars Piguet começou por incluir um indicador da tensão de corda e tem dedicado grande atenção ao problema da segurança em colaboração com o seu atelier de mecanismos de vanguarda Renaud & Papi.
François-Paul Journe desenvolveu várias grandes sonneries na década de 90 para outras marcas e quando desenvolveu o seu Sonnerie Souveraine aplicou dez patentes para proteger os sistemas de segurança e simplificação — alegando que até uma criança de oito anos o poderia manusear. Tanto o movimento de base (horas, minutos, segundos) como toda a parte acústica são alimentados por um único tambor de corda de grandes dimensões — capaz de fornecer energia suficiente para 24 horas sempre a fazer soar as horas (e quartos, e minutos) até bloquear a sonnerie se não for fornecida mais corda, ou 60 horas no modo pequena sonnerie, ou cinco dias em silêncio. O primeiro exemplar do Sonnerie Souveraine veio para um colecionador em Portugal, por meio milhão de euros.
As preocupações com a segurança são também bem patentes na ultracomplicação da Franck Muller — o Aeternitas Mega 4, desenvolvido pelo mesmo Pierre-Michel Golay, que já tinha estado na génese da grande sonnerie de Gérald Genta na década de 90. Passa o repertório clássico do carrilhão Westminster através de quatro gongos, no meio de dezenas de outras complicações.
Na Jaeger-LeCoultre, David Candaux estudou até à exaustão os grandes mestres da Vallée de Joux para o advento do Jaeger-LeCoultre Hybris Mechanica à Grande Sonnerie de 2009, com 26 complicações e uma ‘torre infernal’ que funciona como cérebro da sonnerie: um conjunto de cames controla a coreografia musical — no caso, o toque Westminster —, e são utilizados metais ‘normais’ (aço, prata, bronze) para que possa ser reparável num futuro distante caso haja a necessidade de fabricar peças de substituição.
Últimos desenvolvimentos
Nos últimos anos, o investimento das marcas de alta-relojoaria no domínio das grandes complicações acústicas não só originou a nova categoria no Grand Prix d’Horlogerie de Genève — também tem vindo a ser expresso por uma variedade de novas soluções. A Louis Vuitton lançou um modelo de repetição minutos para viajantes que mostra a hora num fuso horário e faz soar o tempo no outro; o Ammiraglio del Tempo da Bulgari não tem qualquer botão ou alavanca visível — o mecanismo de repetição é acionado através de uma das asas da correia. E a Piaget, a Vacheron Constantin e a Jaeger-LeCoultre têm batido recordes de espessura mínima.
No início deste ano, a Audemars Piguet apresentava o seu protótipo Royal Oak Concept RD#1 numa sala especificamente montada para comprovar as suas virtudes acústicas. Na mais recente edição de Baselworld, Christophe Claret — que ganhou fama a fazer complicações acústicas várias para as melhores marcas até lançar a sua própria marca — apresentou o Allegro à imprensa ao atirá-lo espetacularmente para um recipiente com água. Mas, para além do mediático fogo de vista, há muito trabalho a ser desenvolvido silenciosamente nos bastidores: tal como sucede com qualquer alpinista que se aventure nos Himalaias, a ascensão ao Evereste da relojoaria exige uma preparação excecional — e o preço estratosférico tem de ser justificado.
Para qualquer marca que se preze, a bandeira no topo do mundo é o funcionamento imaculado da dimensão acústica do tempo.
—
Save