É pela coroa do relógio que dominamos o tempo. Com ela viajamos para o futuro, para o passado e definimos o presente. Com a coroa entre os dedos sentimo-nos os reis do tempo. É possivelmente esta a razão pela qual sobreviveu até aos nossos dias.
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Todos sabemos que a coroa é útil e todos sabemos que pode ter uma dupla função: dar corda e acertar as horas. Antes da coroa existir levantavam-se os pesos com uma corda que ao descerem moviam o mecanismo. Tal como a mola substituiu os pesos, a coroa substituiu a corda. O processo de invenção da coroa começou em 1820 quando John Arnold criou uma forma de dar corda com chave. Dava-se corda num sítio e acertava-se as horas no outro. O mecanismo foi aperfeiçoado mais tarde, em 1832, por Breguet e a patente chegou pelas mãos de Louis Audemars em 1838. Em 1842, Adrien Philippe inventou um mecanismo revolucionário que permitia dar corda e acertar o relógio no mesmo sítio com recurso a uma coroa, sem necessidade de chave (Patente Francesa nº 1317, de 1845), que lhe valeu uma medalha na Exposição Industrial de 1844. Um exemplo deste relógio pode ser visto no catálogo da leiloeira Antiquorum – aqui. Charles-Antoine LeCoultre, em 1847, construiu um mecanismo equivalente ao qual chamou «Remontoir à Bascule».
Primeira tentativa: o futuro não usa coroa
Muito mais tarde, em 1951, a empresa Jaeger-LeCoultre anunciou a criação do primeiro relógio sem coroa ao qual deu o nome de Futurematic. Este nome resulta da união de duas palavras, Future + Automatic = Futurematic. Previa-se um futuro simples no qual o relógio cumpria a sua função praticamente sem necessidade de intervenção humana. Era considerado tão preciso que na altura o slogan escolhido foi: «the most accurate self-winding watch in the world». Tão preciso que dispensava coroa? Não. Na verdade, tinha uma coroa que embora não servisse para dar corda, servia para acertar as horas e estava bem escondida debaixo do relógio. O Futurematic é ainda assim um relógio extraordinário, dele fazem parte um conjunto de complicações incríveis que vamos conhecer mais à frente.
Segunda tentativa: o espaço também não usa coroa
Em 1960, 10 anos mais tarde, foi feita uma segunda tentativa para abolir a coroa. O princípio era exactamente o mesmo que foi usado para a criação do Futurematic – um relógio preciso não precisa de coroa. Estamos a falar da Bulova e o relógio é o incrível Accutron Spaceview. Tal como o Futurematic, este era também considerado o relógio mais preciso até à data. O nome do modelo vem da união de duas palavras, Accurate + Electronic = Accutron, o primeiro relógio eléctrico. Para se perceber a incrível contribuição deste relógio tem de se ter em conta que até à sua invenção a frequência de um mecanismo normal era de duas oscilações por segundo. O Accutron conseguiu a proeza de 360 oscilações por segundo, o que permitia que perdesse apenas dois segundos por dia. Com um movimento eléctrico e um atraso de segundos segundos por dia, dispensava a necessidade de uma coroa lateral, porém, tal como o Futurematic, o Accutron Spaceview tem um mecanismo por baixo para acertar as horas. Foi um relógio tão especial que deu origem a um dos slogans mais míticos da relojoaria: «It’s Not A Timepiece, It’s A Conversation Piece».
A inutilidade
Uma das dificuldades do Futurematic está na coroa escondida que não é prática. Acertar as horas neste relógio é um desafio para os dedos. O Accutron Spaceview resolveu este assunto com uma coroa em forma de manivela. Ainda assim não é útil ter uma coroa escondida, pois cada vez que queremos acertar as horas somos obrigados a retirar o relógio do pulso. Seguiram-se muitos modelos com coroa plana traseira como o Cartier Duoplan Bec d’Aigle, dos anos 60; o Voumard 2000 e o Patek Philippe, Ref. 3569, ambos dos anos 70, ou alguns mais recentes como o Freak da Ulysse Nardin, o Romain Gauthier HMS.
Esconder a coroa não tem utilidade prática aparente. É uma complicação inútil. Como um condutor precisa do volante para controlar o carro, o utilizador do relógio precisa da coroa para controlar o tempo. A marca de carros Saab inventou uma versão do seu Saab 9000 que em vez do tradicional e aborrecido volante, tinha um joystick. Não resultou. Ao contrário do que acontece com os automóveis, os relógios não têm de obedecer exclusivamente à utilidade, talvez por as nossas vidas não dependerem deles, como acontece com os carros. São sempre bem-vindas complicações sem utilidade alguma. A coroa plana traseira pode não ser útil mas é fantástica. Permite uma simetria perfeita nos relógios e lembra-nos constantemente que a criatividade não é refém da utilidade.
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[O autor escreve seguindo o antigo acordo ortográfico]