Personalização de relógios: sonhos reais

Alguns relógios inspiram sonhos. Outros são verdadeiros sonhos. Não admira: a história da indústria relojoeira confunde-se com a dos sonhos que podem ser concretizados. O escritor libanês Khalil Gibran sabia isso, quando dizia: «Confia nos sonhos, porque neles está escondida a porta para a eternidade». Alguns relógios, únicos, são a concretização de quem os encomendou ou de quem os adquiriu. E a alta-relojoaria, ao longo dos anos, concretizou, de forma requintada, muitos desses sonhos. Nasceram assim relógios excecionais para clientes com gostos particulares. Que queriam tornar possível o que todos julgavam impossível de realizar. Muitos deles sobreviveram ao tempo e permanecem obras de arte disputadas por quem os deseja ter para prazer pessoal. Há sonhos que nasceram de sonhos alheios. E os leilões permitem a transferência desses objetos mágicos para mãos ávidas de ter máquinas perfeitas.

Alguns homens viveram à volta dos seus sonhos. Henry Graves Jr. foi um deles. Era um homem que os podia concretizar quase todos. Era, à época, um dos homens mais ricos dos Estados Unidos. Nascido no seio de uma família de banqueiros, passou a vida a acumular uma fortuna ainda maior do que aquela que lhe foi legada, investindo ativamente no setor bancário e nos caminhos de ferro. Colecionava dinheiro, mas também objetos de valor. Queria ter objetos únicos. Ou seja, adquiria arte, casas de férias, barcos e relógios caros, que se distinguiam e eram exclusivos. O seu barco favorito era o Eagle, onde a sua filha Gwendolen o encontrou num fim de tarde de 1936. Graves estava com ar taciturno. Olhava para um grande relógio de bolso e disse: «a notoriedade traz má sorte». Gwendolen sabia que aquele não era um relógio qualquer. Era a última expressão da vontade de Graves em colecionar relógios, especialmente os da Patek Philippe. Esse relógio, diga-se, foi vendido em 1999, num leilão da Sotheby’s por 11 milhões de dólares. Não admira: esse objeto mágico de arte é visto como o maior sonho jamais concretizado em termos de relojoaria. Graves começara a comprar relógios da Patek em 1903 e, a partir de 1910, entusiasmado, passou a encomendar produtos específicos. Muitos tinham o brasão da família. Mas ele queria mais. O seu sonho maior era a alquimia perfeita: desejava ter o relógio mais complexo do mundo, com todas as complicações que pudesse albergar. Com tudo o que pudesse ser um valor acrescentado às horas, aos minutos e aos segundos que os relógios normais têm. E ser um exemplar único, só dele. Em 1925, começou a ter reuniões secretas com a Patek. Queria um relógio que fosse «impossível criar», nas suas próprias palavras. Iniciava-se, então, uma odisseia de oito anos, que motivou artesãos da Patek, mas também cientistas e engenheiros.

O Graves Supercomplication da Patek Philippe foi leiloado pela Sothebys no leilão Important Watches em 2014, onde foi vendido por 23.237.000 francos suíços.© Sothebys
O Graves Supercomplication da Patek Philippe foi leiloado pela Sothebys no leilão Important Watches em 2014, onde foi vendido por 23.237.000 francos suíços.© Sothebys

Criar o relógio com mais complicações do Planeta era o objetivo. Subir os Himalaias seria mais fácil. Três anos de pesquisas e cinco para construir o «impossível» foi o tempo necessário para concretizar o sonho de Graves. O resultado foi um relógio com duas faces, uma de cada lado, e 24 complicações, que ostentou o recorde de relógio mais complicado durante mais de meio século. A obra de arte ficou conhecida como a «Graves Supercomplication», mas, surpreendentemente, nunca trouxe ao seu proprietário os prazeres que almejava. Foi entregue em 1933, mas, desde então, a inveja e a má sorte passaram a circundar Graves. Em 1936, viviam-se os tempos da Grande Depressão e as pessoas desempregadas e sem meios passaram a encontrar nele um motivo de ódio. Como podia ele gastar uma fortuna nesses luxos, quando à sua volta reinava a miséria? Graves compreendeu: o relógio que fora um sonho, tornara-se um pesadelo. Esteve tentado a vender o relógio e até mesmo a atirá-lo à água, a partir do convés do barco. Só a sua filha, naquele fim de tarde, o impediu de o fazer. Desde esse dia, foi ela que ficou com o relógio. Passou para mãos fora da família e, em 1999, foi vendido a um anónimo. Os sonhos nunca acabam. Transformam-se.

O Graves Supercomplication da Patek Philippe foi leiloado pela Sothebys no leilão Important Watches em 2014, onde foi vendido por 23.237.000 francos suíços.© Sothebys
O Graves Supercomplication da Patek Philippe foi leiloado pela Sothebys no leilão Important Watches em 2014, onde foi vendido por 23.237.000 francos suíços.© Sothebys

Muitos outros tiveram sonhos semelhantes. James Ward Packard nunca conheceu Henry Graves Jr., mas estes dois colecionadores extraordinários tiveram um papel importantíssimo na relojoaria do século XX, ao desafiarem a Patek Phillipe a criar os modelos mais complicados do mundo. A paixão por ter relógios únicos e personalizados era motivada pela ambição, pelo elitismo e pelo desejo. Packard e Graves eram homens diferentes. Packard era um engenheiro e criou história na indústria automóvel. Entre 1900 e 1927 encomendou 13 relógios à Patek para que fossem únicos e pouco habituais. Outros relógios foram feitos pela Patek a pedido, como o que foi entregue ao rei Farouk, o penúltimo soberano egípcio, e que foi vendido há uns anos, num leilão, por pouco mais de 700 mil euros. Mas muitas outras marcas desenvolveram, ao longo dos últimos séculos, modelos feitos de propósito para reconfortarem o desejo de reis, políticos e empresários.

O famoso e complicado relógio de bolso concebido por Breguet para a rainha Marie Antoinette. © Breguet
O famoso e complicado relógio de bolso concebido por Breguet para a rainha Marie Antoinette. © Breguet

Abram Louis Breguet, o fundador da marca, foi cortejado no século XVIII pelos mais abastados e poderosos do seu tempo. Todos queriam desfrutar das suas qualidades de inventor. Os seus relógios eram sinónimos de beleza, cultura e luxo. E, claro, de exclusividade. A sua lista de clientes era de ouro. Maria Antonieta (que os comprava Breguet para seu uso pessoal), ter-lhe-á encomendado um, o No. 160, que incluía todas as complicações conhecidas na época. Ela nunca teve o prazer de o ter nas suas mãos, porque só foi completado 34 anos após a sua morte. A irmã mais nova de Napoleão I, Caroline Murat, encomendou 34 peças a Breguet, incluindo o primeiro relógio de pulso, em 1810. Outros clientes recorreram à marca, como o grande escritor russo Alexander Pushkin, Napoleão Bonaparte, o sultão turco Selim III, Honoré de Balzac, o czar Alexandre I, Gioachino Rossini ou, mais tarde, Winston Churchill. Outras marcas apostaram no gosto particular dos imperadores chineses para lhes fazerem chegar relógios musicais únicos ou autómatos, alguns feitos pela Jaquet-Droz.

O famoso e complicado relógio de bolso concebido por Breguet para a rainha Marie Antoinette. © Breguet
O famoso e complicado relógio de bolso concebido por Breguet para a rainha Marie Antoinette. © Breguet

Afinal, ter algo único no mundo da uniformização continua um desafio que fascina quem dispõe de meios para o fazer. A alta-relojoaria tem, desde há muito, concretizado estes desejos. Ainda recentemente, numa entrevista ao Financial Times, Johann Rupert, acionista maioritário do grupo Richemont, dizia: «Se fumares Marlboro, projetas uma imagem de ti próprio – sou o cowboy, sou independente. E eu vi isso nos produtos de luxo». É a imagem, a distinção, o gosto refinado e a exclusividade que movem muitos compradores. Refira-se que muitos artesãos também assinam os seus movimentos. Autenticando as suas obras de arte. Isso, mais do que uma assinatura, é uma forma de indicar a raridade de um relógio, a sua origem, de forma discreta. Por exemplo, nos calibres Virtuoso II da Bovet, pode ler, em francês arcaico: «Faictes de mains de maistres. Pour servir ponctuels gentilshommes. Ce par quoi attestons longue valeur.» Algumas peças da Vacheron Constantin têm as iniciais AP, ou Anita Porchet, porque o seu talento único foi reconhecido pela marca. Não admira: desde 1755 que a Vacheron Constantin se especializou em fazer relógios de acordo com a vontade dos compradores.

Vacheron Constantin Les Cabinotiers © Vacheron Constantin
Vacheron Constantin Les Cabinotiers © Vacheron Constantin

Os mestres relojoeiros desta manufactura dedicam longas horas de trabalho para determinar o design perfeito de um relógio e selecionar as suas funções e os seus componentes. Todas as opções para concretizar os desejos do cliente são possíveis. Não é algo de hoje. Em 1860, o czar Alexandre II encomendou uma peça única destinada ao seu filho, o grão-duque Vladimir Alexandrovich. E, no início do século XX, Sir Bhupinder Singh, marajá de Patiala, figurava entre os ilustres clientes que tinham o hábito de fazer encomendas especiais. Atualmente, a Oficina Cabinotiers da Vacheron Constantin perpetua esta tradição, fundada no diálogo e na criação.

o l.u.C Perpetual t Spirit of ‘la Santa Muerte’ é uma peça única lançada recentemente pela Chopard no âmbito do dia dos Mortos, celebração típica do México que ocorreu no passado dia 2 de novembro. © Chopard
o l.u.C Perpetual t Spirit of ‘la Santa Muerte’ é uma peça única lançada recentemente pela Chopard no âmbito do dia dos Mortos, celebração típica do México que ocorreu no passado dia 2 de novembro.
© Chopard

Nesse aspeto, o surpreendente modelo Vladimir é o símbolo maior desta combinação de complicações únicas e de arte pura, que a marca produz. Este nome, de origem eslava, é uma derivação de «Volodimir», termo antigo que significa «domínio da paz» ou «paz para todos». Este relógio é uma das peças mais complicadas do mundo. A Oficina Cabinotiers da Vacheron Constantin encarregou-se de transformar o desejo de um cliente numa realidade. E o sonho ficou. O Vladimir é equipado com um movimento mecânico à corda manual único que anima 17 complicações. Este movimento ostenta o Selo de Genebra e compõe-se de 891 componentes, todos com acabamento e decoração executados à mão pelos relojoeiros e artesãos da Vacheron Constantin.

O L.U.C Perpetual T Spirit of ‘La Santa Muerte’ é uma peça única lançada recentemente pela Chopard no âmbito do Dia dos Mortos, celebração típica do México que ocorreu no passado dia 2 de novembro. © Chopard
O L.U.C Perpetual T Spirit of ‘La Santa Muerte’ é uma peça única lançada recentemente pela Chopard no âmbito do Dia dos Mortos, celebração típica do México que ocorreu no passado dia 2 de novembro. © Chopard

Esta é uma missão especial que tem a ver com a história: a Oficina Cabinotiers recupera o espírito da Genebra do século XVIII. Nessa época, os mais eminentes membros das cortes europeias vinham fazer os seus pedidos diretamente aos cabinotiers, como eram conhecidos os artesãos relojoeiros mais requintados de Genebra. Para retirar o máximo proveito da luz zenital, eles instalavam as suas oficinas no último andar dos edifícios. Esses locais eram pequenos e com pouca luz, mas os artesãos ali instalados adquiriram uma sólida reputação, graças à qualidade excecional do seu trabalho perfeito. Essas oficinas passaram a ser denominadas de cabinets – pequenas salas de trabalho ou gabinetes, em francês – e, por simpatia, os profissionais que as ocupavam eram os cabinotiers. Na Cabinotiers, não existe nem catálogo nem coleções, mas um ouvido atento que escuta os desejos secretos de quem compra. E que tem a tentação da exclusividade e da personalização.

O verso do Jaeger-LeCoultre Reverso Tribute Enamel decorado com «A Grande Onda de Kanagawa» de Katsushika Hokusai é um dos possíveis exemplos de personalização que a caixa reversível permite. © Jaeger-LeCoultre
O verso do Jaeger-LeCoultre Reverso Tribute Enamel decorado com «A Grande Onda de Kanagawa» de Katsushika Hokusai é um dos possíveis exemplos de personalização que a caixa reversível permite. © Jaeger-LeCoultre

Esta tendência estende-se a outras marcas. Por exemplo, a parte posterior de um Reverso da Jaeger-LeCoultre é um convite à personalização. Armas familiares, monogramas, datas, tudo ali pode caber. Os artesãos da marca podem fazer isso, gravando esses pormenores no aço. Podem também reproduzir a pintura preferida, uma foto ou uma carta de amor. Horas de trabalho intermináveis depois, um relógio personalizado torna-se uma realidade. Também no que toca às braceletes, os artesãos da Jaeger-LeCoultre executam trabalhos únicos com materiais, cores ou detalhes infinitos. O pêndulo Atmos, por exemplo, também oferece possibilidades de personalização únicos. A Parmigiani Fleurier permite também a possibilidade de personalizar o exterior do seu Bugatti Type 390, a relação da marca relojoeira com a de automóveis. As modificações que o cliente pode pedir permitem um valor acrescentado ao produto. E, na Internet, são já muitos os sites que permitem tudo: desde criar um relógio desde a raiz até personalizar o que têm. Basta procurar.

No mundo dos leilões, é possível adquirir os sonhos de outros. Foi isso que sucedeu a alguns dos relógios mais caros neste mercado onde é possível garantir obras únicas. O The Grogan, feito em 1925 pela Patek Philippe, foi adquirido, em 2006, por 1.945.040 dólares. O relógio de ouro dourado mais caro do mundo é o Patek 1527, de 1943, vendido pela Christie’s por 5,7 milhões de dólares. E, claro, há o Henry Grave’s Supercomplication, o sonho que nasceu dentro de um sonho. Mas até estes se podem comprar e vender.

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