Charles-Philippe d’Orléans: Era uma vez…

Numa edição que tem como tema o tempo associado a conceitos de hedonismo e de ócio, pareceu-nos pertinente falar com alguém com uma visão muito própria do tempo — como não pode deixar de ter quem pertence a uma família com séculos de história registada, que atravessou tempos de riso e de cólera, uma família de príncipes e de reis. Charles-Philippe d’Orléans detesta que o tempo lhe fuja das mãos, é um apaixonado pela bela relojoaria e transborda simpatia, num português bastante estimável. Ficámos a saber, entre outras coisas, que para este petit-fils de França, europeu dos sete costados e cidadão do mundo, o tempo nunca foi tão democrático quanto é hoje.

[English Version]

Tem uma relação próxima com o universo relojoeiro, mas, há uns anos, envolveu-se a sério com uma marca, no caso a Jaeger-LeCoultre (JLC). Pode contar-nos esse episódio?
É uma história muito engraçada. Desde muito jovem que estou envolvido em ações de solidariedade, e, certa vez, fui com a minha mulher a África, nomeadamente à Etiópia e à Somália, com as Nações Unidas. Fui ajudar num projeto que pretendia viabilizar o acesso a água potável a mais de 50.000 refugiados. Era um projeto gigantesco e tudo foi uma enorme aventura, na qual quase morríamos. Foi muito complicado, muito duro, e no dia seguinte ao nosso regresso a Portugal houve um grande jantar de gala no Mosteiro dos Jerónimos — de smoking e tudo — oferecido pela JLC na sequência do restauro do relógio do Arco da Rua Augusta. A minha mulher e eu, que tínhamos sido convidados, não queríamos ir, porque, depois de termos visto o drama dos campos de refugiados, gente na maior miséria imaginável, e sendo tudo muito recente, não estávamos com disposição para ir a um jantar formal que, naquele momento e naquele contexto, nos parecia superficial.

Quem organizava o evento, no entanto, era um amigo, que insistiu muito para que nós fossemos — e acabámos por ir e conhecer lá um senhor que se chama Jerôme Lambert, que, na altura, era o CEO da JLC e que hoje é CEO do Grupo Richemont. Além de ser um grande gestor, é alguém muito humano, com valores e com sensibilidade. Para ele não é tudo Excel. No jantar, a Diana estava sentada junto a ele e eu à sua frente. Claro, tudo aquilo era um choque cultural e social para nós, e então o coração falou… Contámos o que tínhamos acabado de viver e, no final do jantar, o Jerôme Lambert perguntou-me quanto custava o tal projeto. Eu disse. Era muito dinheiro, era meio milhão de euros, e ele disse de imediato: «nós pagamos, a JLC financia esse projeto. Ele tem tudo a ver com os nossos valores, insere-se na história da JLC e está dentro daquilo que queremos transmitir. Além disso é uma ação ligada à água, e a água, em geral, é um elemento essencial na política solidária da JLC». Foi muito espontâneo, muito rápido, e, de facto, foi graças à JLC que conseguimos garantir o acesso a água potável a 50.000 pessoas — o que é muita gente. Foi uma história bonita com a JLC e toda a sua equipa.

Lembra-se de quando foi a primeira vez que se fixou num relógio, ou quando começou a dar mais importância ao objeto que à sua funcionalidade? 
(risos) Vai parecer contraditório, mas, quando eu era jovem, tinha uma paixão pela Swatch. Tinha uma coleção enorme, de cerca de 80 relógios. Até poupava dinheiro para comprar o próximo relógio. Na altura, era algo diferente, moderno, colorido… e foi essa a minha primeira relação séria com relógios, digamos assim. Depois, quando ingressei na vida profissional, comecei a comprar outro tipo de relógios, e hoje tenho muito bons relógios. Tenho um Chopard Mille Miglia Classic Chronograph, um extraordinário Audemars Piguet Jules Audemars Cabinet n.º 1 Tourbillon; um Jaeger-LeCoultre Reverso Classic Large Duoface; um Badollet Crystalball Bamboo… Enfim, é uma pequena coleção, mas muito afetiva, porque cada relógio tem a sua história. Por exemplo, o Audemars Piguet foi um presente de casamento do rei de Marrocos, e é um símbolo extraordinário da minha relação pessoal com essa família real e esse país – que vai além da relação histórica que existe entre as nossas famílias. O Chopard também tem um grande valor sentimental, porque me foi oferecido pela minha mulher num aniversário do nosso casamento. Enfim, cada um com a sua história sentimental e simbólica, que vai além do valor comercial.

Badollet no pulso de Charles Philippe d'Orleans © Susana Gasalho / Espiral do Tempo
Badollet no pulso de Charles Philippe d’Orleans © Susana Gasalho / Espiral do Tempo

Tem no pulso uma marca que só profundos conhecedores sabem que existe. Uma marca muito específica, especializada em turbilhões.
Sim, mas, primeiro, acho que devo lembrar que um dos mais importantes mecenas de sempre da relojoaria em geral foi um antepassado meu, o rei Luís XIV de França, que era fascinado por relógios — naquele tempo, pelos relógios de mesa ou de parede, com que ele encheu Versailles. Dito isto, tenho, de facto, uma paixão por Badollet, porque dou muito valor à sua excecionalidade e aos seus pormenores, mais do que ao valor comercial. Não é uma marca muito conhecida do grande público. É uma marca para connaisseurs, que nasceu em Genebra, em 1635, e é uma das mais antigas marcas que existem — que me faz pensar em valores, em tradição. Muito poucas pessoas os têm, porque é uma marca exclusiva que produz apenas algumas dezenas de relógios por ano. É muito reservada, mas fazem algo de que eu gosto: produzem pouco, mas bem feito. Pouco, mas feito com amor. Pouco, mas feito com valores e com paixão. É uma manufatura que está em pleno coração de Genebra, composta por pessoas que trabalham dezenas de horas numa peça, que dão horas e horas das suas vidas para construir e montar o objeto que nós vamos ter no pulso. Esta é a transmissão de valores de que gosto e que valorizo.

Charles Philippe d'Orleans no Hotel Palácio Estoril © Susana Gasalho / Espiral do Tempo
Charles Philippe d’Orleans no Hotel Palácio Estoril © Susana Gasalho / Espiral do Tempo

De alguma forma, é o tempo que os relojoeiros dedicam à construção e montagem desse objeto que lhe atribui o valor, como diria o Saint-Exupéry.
Sim, mas voltamos ao mesmo: não é o valor comercial que é importante, mas sim o valor que advém da sua excecionalidade e da sua delicadeza. Tem modelos com pedras de meteoritos, coisas realmente únicas. Este chama-se Bamboo, e é inspirado pelo gosto de um dos herdeiros do fundador da marca, apaixonado por carros. A estrutura do relógio, visível através do fundo, é inspirada nas caixas dos motores dos primeiros Maserati. Muita gente pode comprar um Rolex ou um Patek Philippe, entre outros, mas nem todos podem comprar um Badollet — porque há poucos.

É isso o luxo, que tem muito que ver com raridade, seja a raridade de um objeto, de um momento ou de uma experiência, não é?
O luxo está muito associado à raridade, à discrição e à elegância. Estes são relógios excecionalmente bonitos e cheios de detalhes, com designs modernos, que é uma coisa de que eu também gosto na marca – uma marca com tanta história fazer relógios tão contemporâneos, mas discretos. Não têm extravagâncias com muito brilho, digamos.

Badollet de Charles Philippe d'Orleans © Susana Gasalho / Espiral do Tempo
Badollet de Charles Philippe d’Orleans © Susana Gasalho / Espiral do Tempo

É uma pessoa muito ocupada, que viaja muito, e tem uma equipa que o ajuda a gerir o seu tempo. Como se organiza, e que diferenças existem nessa gestão quando está em França, em Espanha, em Portugal, ou noutro sítio?
Sou extremamente metódico. Tenho uma carreira de 12 anos no exército francês, onde tudo é cronometrado e superrigoroso, o que contrasta com a minha mulher — mas acho que faz parte do seu charme (risos). Eu gosto de uma gestão extremamente rigorosa do meu dia a dia. Por isso, gosto de relógios em que a precisão do ponteiro dos segundos é exata.

Efetivamente, quando se viaja muito, percebe-se que a noção do tempo não é a mesma nos diferentes países. A gestão do dia não é a mesma em Espanha ou na Suécia. Há fatores determinantes, como a cultura, a tradição, a história, o clima, a luz etc. Eu tenho uma obsessão pelo tempo que passa: não gosto do tempo que passa, não gosto de que ele passe, e, por isso, quero aproveitar cada segundo, para que não o sinta passar ou para que passe de forma positiva. Numa carreira profissional intensa e com muitas viagens e muitos horários, a gestão do tempo é essencial para aproveitar o tempo e para não perder tempo.

Como é uma semana típica sua?
Aquilo que me faz viajar mais é o trabalho que faço para a fundação de teor ambientalista do Príncipe Alberto II do Mónaco. Faz-me viajar uma ou duas vezes por semana: por vezes, para perto; outras, para o outro lado do mundo. Para o Japão, por exemplo, onde também há uma relação interessante com o tempo. Tento gerir o trabalho de forma harmoniosa para não ter implicações negativas na família. Isto é muito importante. «Family first», e eu gosto muito de passar tempo com a família.

Badollet de Charles Philippe d'Orleans © Susana Gasalho / Espiral do Tempo
Badollet de Charles Philippe d’Orleans © Susana Gasalho / Espiral do Tempo

Onde é que se sente mais confortável com a forma como o tempo corre? Em Portugal, França, Espanha…?
Em Portugal. Não sei se rende mais, mas a vida é bastante menos stressante, e eu acho que aproveito mais o tempo, ou seja, a vida, em Portugal. Acho que a relação dos portugueses com o tempo é diferente. A forma como as diferentes culturas ou civilizações vivem o tempo é curiosa. Em Paris, perde-se muito tempo em trânsito ou em esperas, e é muito stressante. Em Portugal, dantes, perdia muito tempo a esperar pelo início das reuniões, porque os portugueses tendem a chegar tarde. Acho, no entanto, que isso está a mudar um pouco. Pelo menos relativamente a mim (risos).

Falou do tempo no Japão. Percebi que lhe deixou marcas.
Sim, há hoje uma cultura do instantâneo, do imediato, a cultura americana, onde tudo tem de ser feito rapidamente, o business tem de ser rápido, as relações têm de ser construídas rapidamente. No Japão, senti que temos todo o tempo do mundo. Se uma coisa não for feita hoje, é feita na próxima semana ou no próximo mês. Pode ser stressante para homens de negócios americanos, mas é uma maneira de estar muito interessante.
Com os japoneses, as reuniões são longas e os negócios demoram muito tempo a ser concluídos. São uma civilização milenar. O imperador, por exemplo, abdicou com quase 90 anos. Os jardins do país são inspiradores, e há toda uma ‘zénitude’, ou seja, uma atitude zen. O tempo, para os japoneses, não é para passar, é para usufruir. Sinto que não se sentem obrigados, nem têm a ânsia de provar o que quer que seja a ninguém. Como os chineses. Têm a história deles, é uma história antiga, sabem que a têm, sabem que já cá andam há muito tempo e que cá vão continuar durante muito tempo.

Um sítio onde se sente a dimensão do tempo de outra forma, nem parecido com o asiático, nem com o ocidental, é África.
Sim, é verdade. Sou apaixonado por África. Lá, o tempo para mesmo. (risos) Talvez demasiado. Lá, não é só o tempo ou a hora que param, tudo é subjetivo. É extraordinário.

A dolce vita é um conceito que lhe é próximo?
É ter tempo para aproveitar o tempo. É não fazer nada, sabendo que está tudo a ser feito. É o fare niente, é a elegância, é o glamour, é estar bem consigo mesmo no local em que estiver. Não é estar num sítio especial, não é um postal, porque cada um tem a sua própria noção de dolce vita.

Em que medida esta noção variou, ao longo do tempo, na aristocracia europeia? A forma como quem carrega uma linhagem secular vê o tempo tem de ser diferente da nossa, mas também deve ser diferente daquela dos vossos antepassados, presumo.
Exatamente. Num mesmo país, havia duas culturas diferentes em relação ao tempo. Uns tinham de sobreviver e de lutar para construir a sua família, e outros, os da corte e da alta aristocracia, basicamente, consideravam o tempo um presente com o qual brincavam. Isto mudou muito, para melhor ou pior — dependendo dos pontos de vista (risos), — mas a relação com o tempo nas famílias reais europeias e nas famílias comuns é, hoje, a mesma, acho eu. Hoje, as coisas têm de ser feitas, esperam-se respostas e não se dão respostas em seis meses. Em qualquer cargo na sociedade, seja o de um empregado, de um gestor ou de um rei, todos temos a exigência de responder — e não é para depois, é para já.

Charles Philippe d'Orleans no Hotel Palácio Estoril © Susana Gasalho / Espiral do Tempo
Charles Philippe d’Orleans no Hotel Palácio Estoril © Susana Gasalho / Espiral do Tempo

Na sua opinião, qual dos seus antepassados melhor usufruiu do tempo?
Luís IX, S. Luís, rei de França, que foi canonizado e que fazia algo extraordinário: aproveitava o tempo sentando-se debaixo de uma árvore a ouvia as queixas de todos, os cidadãos do povo, os artesãos, comerciantes, soldados ou a nobreza, e fazia justiça debaixo dessa árvore. É uma forma de relação não só com o tempo, mas também com a natureza.

E o mais folião dos seus antepassados, foi Luís XIV?
(risos) Esse era louco. Mas acho que tinha o mesmo problema que eu tenho com o tempo, não gostar que ele passe.

Em que momento da sua vida acha que usufruiu melhor do tempo?
(pausa) Talvez quando estive no exército francês, por causa da camaradagem e do sentimento de ser útil. Estive em África, na Bósnia, em vários conflitos, nos quais França esteve envolvida, e é duro ver o sofrimento humano que a guerra causa. Acho que foi a altura em que mais aproveitei para aprender, para compreender, para ouvir e para ajudar.

E hoje? O que mais gosta de fazer com o seu tempo?
Aproveitá-lo. Eu tenho a sorte de fazer um trabalho que me dá muito prazer. Sou daquelas pessoas que acorda de manhã com um sorriso e com alegria, abro o cortinado, vejo o sol e penso que um grande dia está para chegar e outro grande dia lhe seguirá. Pode ser estar com a família, trabalhar — para quem goste de trabalhar — ou ir ao mar, pelo qual eu tenho uma grande paixão. Posso passar o dia inteiro no mar sem ter a noção de ter perdido tempo.

Há alguma coisa para a qual gostava de ter tempo, mas não tem?
Não há, porque dedico o tempo necessário às coisas de que gosto. Não tenho arrependimentos, não posso dizer que gostava de passar mais tempo com a minha mulher, ou filha, ou mãe. Não. Faço uma gestão que me permite estar com todos.

A Espiral do Tempo agradece a disponibilidade do espaço para a entrevista a Carlos Piçarra e ao Hotel Palácio Estoril.

Entrevista originalmente publicada no número 67 da Espiral do Tempo (edição verão 2019).

Outras leituras