Projeto 99: corrida a três

Ao longo da década de 60, uma interessante corrida tripartida dominou os bastidores da relojoaria — com três diferentes entidades envolvidas separadamente na pesquisa e no desenvolvimento do primeiro movimento cronográfico automático. Todas elas apresentaram o seu produto em 1969, no ano da aterragem na Lua e do lançamento do Concorde e do Boeing 747. Quem ganhou a competição? Depende do ponto de vista, e as três candidaturas apresentam argumentos válidos, mas foi o Project 99 que mais contribuiu para a popularização da novidade.

A popularização do relógio automático aconteceu sobretudo a partir da década de 50 e começou a ganhar grande relevância no início dos anos 60 — de tal modo que os relógios de corda manual passaram a ser considerados ultrapassados. Hoje em dia, e na sequência do renascimento da relojoaria tradicional após a crise do quartzo, encaram-se os movimentos de corda manual e corda automática como sendo equivalentes com princípios mecânicos diferentes, e a maior parte das obras-primas da relojoaria nas últimas duas décadas até assentam em calibres de corda manual. Mas, numa década de 60 em que o futurismo associado à conquista do Espaço começou a capturar o imaginário das pessoas, o que estava a dar era mesmo a novidade — e os relógios automáticos, desenvolvidos sobretudo pela Rolex há já algum tempo, eram considerados o último grito da tecnologia…

@onthedash.com
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O facto de a indústria relojoeira suíça não ter conseguido na altura resolver o problema da adição de complicações a um calibre automático teve repercussões diretas e provocou uma queda na venda dos cronógrafos: a presença do rotor dificultava a arquitetura do cronógrafo, afetando diretamente a fiabilidade e a espessura do movimento. A década da Segunda Guerra Mundial tinha representado uma fase de glória para o cronógrafo, mas, depois, o relógio automático tomou conta do mercado, porque já ninguém queria dar corda manualmente aos relógios. E o declínio na exportação de cronógrafos foi-se tornando tão evidente que a Federation de l’industrie horlogère (a associação profissional da relojoaria suíça) decidiu financiar a pequena associação composta pelas várias marcas especializadas no fabrico de cronógrafos, de modo a que fossem promovidas campanhas internacionais de publicidade que exaltassem os méritos dos cronógrafos tradicionais.

Willy Breitling era o presidente e Jack Heuer, o vice-presidente dessa pequena associação, que tinha um peso reduzido, porque grandes marcas como a Rolex e a Omega compravam a fornecedores exteriores os movimentos para os poucos cronógrafos que fabricavam — sendo que na altura os calibres cronográficos dominantes eram os Valjoux e Venus. A amizade entre ambos juntá-los-ia numa corrida com a Zenith e a Seiko para a conceção do primeiro cronógrafo automático, tal como os Estados Unidos e a União Soviética competiram pela conquista do Espaço ao longo da mesma década.

Willy Breitling, Charles Heuer e Jack Heuer.
Willy Breitling, Charles Heuer e Jack Heuer. 

Project 99

Quando a Büren apresentou um novo calibre ultraplano com microrrotor na feira de Basileia, em 1967, Jack e o seu pai, Charles, estudaram uma maneira de o utilizar em combinação com um módulo de cronógrafo fabricado pela Dubois-Dépraz, fornecedor habitual da Heuer (que, na altura, tinha a designação oficial de Heuer-Leonidas, após a fusão de 1964). Como o orçamento da Dubois-Dépraz atingiu na altura a astronómica soma de meio milhão de francos suíços, Jack contactou Willy Breitling para a criação de um consórcio destinado a partilhar custos — e todos os elementos envolvidos tiveram de jurar secretismo relativamente ao processo, batizado ‘Project 99’ por Charles ter formação militar e insistir num nome de código.

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O projeto foi facilitado porque Jack Heuer e Willy Breitling eram amigos e as respetivas marcas que lideravam complementavam-se — a Heuer estava mais estabelecida nos desportos motorizados e a Breitling, na aviação, e, além disso, dominavam em mercados distintos. O desenvolvimento do movimento fez com que o posicionamento natural da coroa fosse à esquerda, o que levou o consórcio a encarar essa singularidade de aparência estranha como um trunfo de comunicação: sendo automático, o utilizador não precisaria de usar a coroa estando o relógio no pulso. Na construção modular, a parte do cronógrafo desenvolvida pela Dubois-Dépraz assentava num sistema de alavancas e cames, em vez de na clássica roda de colunas (o módulo ficou conhecido como 8510). Gerald Dubois, da Dubois-Dépraz, assumiu a liderança técnica e supervisionou o desenvolvimento do módulo; Hans Kocher, que tinha desenvolvido o microrrotor da Buren, tornou-se responsável pelo movimento de base. Os diretores técnicos da Heuer e da Breitling também foram nomeados e as duas marcas trataram de desenhar novas caixas e novos mostradores para o mecanismo que passou a ser conhecido por Chronomatic, sendo responsáveis pela montagem.

O primeiro Chronomatic Autavia @onthedash.com
O primeiro Chronomatic Autavia @onthedash.com

Os primeiros protótipos surgiram no verão de 1968, ano em que a Hamilton se juntou ao projeto na sequência da aquisição da Büren. A aplicação para a patente deu-se a 1 de agosto (a atribuição oficial surgiria a 1 de dezembro de 1970) e, no outono, houve a distribuição de 100 peças pelos membros do grupo: 40 para a Heuer-Leonidas, 40 para a Breitling, dez para a Buren-Hamilton e dez para a Dubois-Dépraz. Perante o anúncio feito pela Zenith no mês de janeiro seguinte, o grupo decidiu não reagir por considerar que ainda estava longe da produção em série e por se tratar de uma companhia relativamente pequena, sem peso nos Estados Unidos — pelo que anunciaram a 3 de março, antes da feira de Basileia e em conferências de imprensa simultâneas em Genebra e Nova Iorque, que estavam a apresentar o primeiro cronógrafo automático do mundo.

Entre os vários modelos apresentados pelas marcas do consórcio, houve um que se destacou claramente pelo seu formato singular e combinação cromática: o Monaco (lançado juntamente com novas versões dos existentes Autavia e Carrera), que se tornou no primeiro cronógrafo quadrado resistente à água.

TAG Heuer Monaco Calibre 11 Automatic Chronograph © TAG Heuer
TAG Heuer Monaco Calibre 11 Automatic Chronograph © TAG Heuer

El Primero

A Zenith começou a pesquisa para a criação de um cronógrafo automático em 1962, apontando o lançamento para 1965 — ano do seu centenário. Entretanto, uma suspensão no projeto empurrou a apresentação para mais tarde; só em dezembro de 1968 conseguiu ter os primeiros protótipos do movimento desenvolvido (de construção integrada, roda de colunas e elevada frequência de 36 000 alternâncias/hora) e planificou a apresentação oficial para o mês de abril, na feira de Basileia.

Mas, com tanta gente e tantas empresas fornecedoras envolvidas nos diversos projetos, os rumores foram circulando e, atendendo à informação de que o consórcio rival anunciaria o seu cronógrafo automático antes mesmo do certame de Basileia, a Zenith antecipou-se com o anúncio de 10 de janeiro numa conferência de imprensa confinada à imprensa local que contou com a presença de um exemplar funcional; Zenith promoveu o cronógrafo como sendo o primeiro automático e batizou-o com o sugestivo nome El Primero (em esperanto), embora só chegassem ao mercado no mês de outubro — fazendo com que o El Primero fosse o terceiro da corrida a ser distribuído aos clientes.

Para a lenda, fica o herói Charles Vermot. Na sequência da decisão de parar a produção dos relógios mecânicos em 1975 por se considerar que se haviam tornado obsoletos perante os relógios de quartzo, o grupo que entretanto comprara a Zenith ordenou a destruição de stocks e máquinas. O responsável do ateliê 4 escreveu aos novos donos americanos: «Não sou contra o progresso, mas constato que há sempre recuos. Enganam-se se acham que o cronógrafo mecânico automático vai deixar de existir. Um dia, a empresa beneficiará das modas que o mundo sempre teve». Pediu autorização para manter um pequeno gabinete com a maquinaria de produção do El Primero, mas o seu apelo foi recusado. Sob pena de despedimento, Charles Vermot guarda e esconde tudo o que pode. Não só teve razão, como salvou o El Primero… e a própria Zenith, que atualmente é sister company da TAG Heuer no grupo LVMH.

Zenith / Movado El Primero e o calibre 11, dito Chronomatic - O resultado do projeto 99.
Zenith / Movado El Primero e o calibre 11, dito Chronomatic – O resultado do projeto 99.

No sol nascente

Entretanto, no Extremo Oriente, a Seiko também perseguia o mesmo desiderato — o de fabricar um cronógrafo automático, embora os registos oficiais não sejam tão claros como os dos dois principais concorrentes suíços relativamente aos timings. A própria marca foi extremamente discreta e, na feira de Basileia de 1969, não foi feita nenhuma apresentação oficial nem mencionado o respetivo projeto quando o então presidente Itiro Hattori visitou Jack Heuer e lhe deu os parabéns pelo Chronomatic.

Em algumas obras autorizadas, como a história da Seiko publicada em 2003 (A Journey in Time), também não é mencionado o primeiro movimento cronográfico da marca. Fontes da Seiko revelam que, em maio de 1969, foi apresentada a referência 6139 para o mercado japonês e alguns exemplares têm gravada a indicação de março de 1969; a distribuição internacional terá começado a ser feita no final do ano, a um preço que era quase metade do da concorrência suíça.

A memória de Jack

Entre os líderes do Project 99, Jack Heuer (entrevista exclusiva à Espiral do tempo aqui) assumiu, claro, protagonismo e é hoje um dos sobreviventes que pode recordar o que se passou na altura. E contou-nos: «Estávamos um pouco à frente da Zenith, mas não muito — uns três ou quatro meses. Tínhamos testado os protótipos durante algum tempo e havia uma centena de mecanismos distribuídos por vários modelos do consórcio em Basileia… enquanto a Zenith tinha apenas um ou dois protótipos. Eles fizeram um comunicado de imprensa a dizer que foram os primeiros e chamaram ao novo mecanismo cronográfico El Primero; não entrámos em disputa em relação a quem foi realmente o primeiro — e cada parte diz que foi a primeira. O irónico da situação é que, atualmente, existem relógios TAG Heuer com o Calibre 36, que é o mecanismo baseado no El Primero da Zenith. Agora, há milhares de cronógrafos automáticos que se vendem por ano, principalmente baseados em calibres Valjoux ou modulares, mas, na altura, não havia absolutamente nada! O cronógrafo automático foi a minha maior contribuição para a indústria relojoeira, além de ter permitido a divulgação da marca e de também ter estado na base da sua associação ao mundo automóvel».

Jack Heuer © TAG Heuer
Jack Heuer © TAG Heuer

Essa ligação é quase umbilical: «Gastámos muito dinheiro a desenvolver o primeiro cronógrafo automático. Tínhamos o produto que o mercado mundial queria, mas não tínhamos dinheiro para o anunciar porque o nosso budget de publicidade era muito reduzido. Que fazer? Um amigo sugeriu-me que patrocinasse o piloto suíço Jo Siffert e eu achei logo que era uma excelente solução, porque a Formula 1 já se estendia à escala planetária e cobria todos os nossos mercados. Envolvemo-nos na Formula 1 e foi assim que pusemos a marca em órbita: tornou-se chique ter um Heuer e as pessoas colavam autocolantes nos carros só para mostrar que tinham uma ligação qualquer connosco ou que tinham um relógio da marca».

E o vencedor é…

No final, quem ganhou mesmo foi o cronógrafo — que se mantém como a variante de relógio mais popular, com o seu charme desportivo e até uma certa veia poética: numa era em que o tempo voa, permite-nos agarrar um momento da eternidade e congelá-lo para sempre graças à mais divulgada complicação da relojoaria tradicional.

Indispensável para uns e mero exercício de estilo para outros, o cronógrafo é um símbolo da era moderna e tem escrito os progressos do homem nos últimos dois séculos… e escrever o tempo é transcrever a história do mundo.

Nota da redação: A história do projeto 99 é das mais curiosas e ricas da relojoaria dos tempos modernos. Não podemos deixar de referir o excelente trabalho elaborado e disponibilizado pelo site onthedash.com acerca desta tema.

Artigo originalmente publicado no número 60 da Espiral do Tempo.

 

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