Walter Lange (1924-2017): os mitos são eternos

Em Genebra, Dresden e Glashütte — À chegada do Salon International de la Haute Horlogerie 2017, a mais indesejada das notícias: Walter Lange tinha morrido durante o sono, aos 92 anos. Aqui fica a recordação de um homem que não só ajudou a mudar a face da alta-relojoaria como também permitiu o reflorescimento económico de toda uma região.

Walter Lange
Walter Lange, a sua partida durante o sono, aos 92 anos, deixou o mundo relojoeiro mais pobre com a sua ausência, embora muito mais rico com a herança deixada. © Espiral do Tempo / Miguel seabra

O dia já não tinha começado da melhor maneira: um acidente provocou atrasos significativos no sistema de transportes desde o centro de Genebra até à Palexpo. E depois calhou que a primeira apresentação que constava na agenda da equipa de reportagem da Espiral do Tempo era da Lange & Söhne. Quando chegámos ao espaço da marca no Salão Internacional da Alta-Relojoaria, em vez das familiares caras sorridentes fomos recebidos por semblantes pesarosos num ambiente compreensivelmente funesto: Walter Lange tinha deixado de ser uma lenda viva para passar à posteridade como um dos mitos da indústria relojoeira.

Walter Lange
Walter Lange na inauguração da nova manufatura da A. Lange & Söhne, em agosto de 2015. © A. Lange & Söhne

Na véspera, no tradicional cocktail da marca que encerra o primeiro dia de cada edição do SIHH, o CEO Wilhelm Schmid havia centrado o discurso face aos presentes no facto de ser a primeira edição do certame sem a presença de Walter Lange. Uma queda tinha-o atirado para o hospital e, mesmo com 92 anos, esperava-se a sua recuperação. Mas não; morreria durante o sono, horas depois. A sua partida deixou o mundo relojoeiro mais pobre com a sua ausência, embora muito mais rico com a herança deixada sob a forma de uma das mais extraordinárias marcas relojoeiras do planeta — e uma biografia verdadeiramente notável.

Walter Lange
© Espiral do Tempo / Miguel Seabra

Bisneto de Ferdinand Adolph Lange, responsável pela criação de um pólo relojoeiro nos arredores de Dresden no início do século XIX, Walter Lange foi baleado numa perna e viu as instalações da manufatura construída pelos seus ancestrais serem destruídas pelas forças aéreas aliadas no último dia da Segunda Guerra Mundial — quando o armistício já estava decidido, fazendo com que o tapete de bombas largado sobre a região parecesse tão cruel quanto criminoso. Tentou recuperar o negócio de família, mas o advento do regime comunista na Alemanha de leste significou a expropriação da Lange & Söhne e a sua inclusão anónima numa cooperativa estatal de marcas de Glashütte denominada Glashütte Uhren Betrieb e destinado a fazer relógios baratos para o povo. Walter Lange conseguiu escapar para a parte ocidental do país e continuar ligado à indústria relojoeira em Pforzheim; logo que o Muro de Berlim caiu, regressou a casa com a ressurreição da marca em mente.

Walter Lange
Walter Lange e Wilhelm Schmid na inauguração da nova manufatura da A. Lange & Söhne, em agosto de 2015. © A. Lange & Söhne

A reunificação da Alemanha permitiu a Walter Lange não só recuperar o património familiar como transformá-lo numa das mais prestigiadas manufaturas graças a fabulosas criações que se tornaram ícones da cultura relojoeira contemporânea. A ressurreição ficou publicamente concretizada com a apresentação dos primeiros relógios da nova era a 14 de Outubro de 1994 — saldada pela emblemática fotografia com o mentor Günter Blümlein, o ‘sucessor’ Walter Lange e o diretor Hartmut Knothe ao lado dos primeiros quatro modelos Lange & Söhne da nova geração: o Lange 1, o Arkade, o Saxonia e o Tourbillon Pour Le Mérite. Com a janela da data a indicar 25; nesse tempo da proto-internet, foi privilegiada a imagem que sairia na imprensa tradicional do dia seguinte… e é por isso que todos os relógios Lange & Söhne são fotografados com a data a indicar o dia 25. Desse quarteto original, o Lange 1 rapidamente se tornou no ex-libris da marca — com o seu surpreendente mostrador descentrado mas extraordinariamente equilibrado, a revolucionária janela sobredimensionada para a data, todo o trabalho decorativo de gravação dita de Glashütte no mecanismo e um conjunto de valências dignas da mais fina relojoaria.

Manufactura A. Lange & Söhne
Emblemática fotografia: na Primeira conferência de imprensa da A. Lange & Söhne após o seu regresso, Günter Blümlein, Walter Lange (ao centro) e Hartmut Knothe ao lado dos primeiros quatro modelos da nova geração. © A. Lange & Söhne

Depois vieram muitos outros relógios que rapidamente se tornariam icónicos (desde o Datograph ao Zeitwerk), enquanto Walter Lange se tornava numa lenda viva. Estive pela primeira vez com ele em Lisboa, no ano 2000, quando a Torres Joalheiros anunciou que passaria a ser agente da marca em Lisboa — e desde então reencontrei-o frequentemente em visitas periódicas de reportagem sobre a Lange & Söhne em Dresden/Glashütte ou no SIHH, tendo partilhado muitas refeições com ele. Aconteceu no passado mês de dezembro, aquando do tradicional evento pré-SIHH anualmente promovido pela marca. E muito possivelmente aconteceria ontem à noite no habitual jantar dos amigos da Lange & Söhne no La Réserve, tal como há um ano. Mas acabou por estar presente de outra maneira no espírito de todos os que o conheciam — para além de Wilhelm Schmid ter feito o seu elogio fúnebre e de eu ter colocado uma estrela com o seu nome no quadro à entrada.

© Espiral do Tempo / Miguel seabra
© Espiral do Tempo / Miguel Seabra

Hoje em dia, Glashütte e Dresden constituem um polo relojoeiro florescente com marcas capazes de pedir meças à alta-relojoaria suíça — num processo liderado, evidentemente, pela Lange & Söhne. Walter Lange recebeu as chaves da cidade de Glashütte logo em 1995 e em 1998 foi condecorado com a Ordem de Mérito do estado da Saxónia. 20 anos depois, a Lange & Söhne recolheu inúmeros prémios internacionais e deslumbra cada vez mais pela sua superlativa qualidade. De todas as vezes que nos cruzámos, nunca tive uma conversa demasiado extensa com Walter Lange: o seu inglês era algo precário, o meu alemão não era suficientemente bom — mas sempre reconheceu em mim paixão pela sua manufatura e gostava sempre de ver o que eu tinha no pulso. E, até ao final da sua vida, Walter Lange sempre quis apanhar as etapas de pesquisa e desenvolvimento, dando a sua opinião tanto a Wilhelm Schmid como a Ton de Haas e Tino Bobe, os responsáveis pela criação de novos calibres e produtos. O seu relógio do dia-a-dia? O Tourbillon Pour Le Mérite com mecanismo de fuso e corrente apresentado em 1994, aquando do renascimento da marca. ET_simb

Walter Lange
O falecimento de Walter Lange assinalado no SIHH 2017. © Espiral do Tempo / Miguel Seabra

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