Em Genebra, Dresden e Glashütte — À chegada do Salon International de la Haute Horlogerie 2017, a mais indesejada das notícias: Walter Lange tinha morrido durante o sono, aos 92 anos. Aqui fica a recordação de um homem que não só ajudou a mudar a face da alta-relojoaria como também permitiu o reflorescimento económico de toda uma região.
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O dia já não tinha começado da melhor maneira: um acidente provocou atrasos significativos no sistema de transportes desde o centro de Genebra até à Palexpo. E depois calhou que a primeira apresentação que constava na agenda da equipa de reportagem da Espiral do Tempo era da Lange & Söhne. Quando chegámos ao espaço da marca no Salão Internacional da Alta-Relojoaria, em vez das familiares caras sorridentes fomos recebidos por semblantes pesarosos num ambiente compreensivelmente funesto: Walter Lange tinha deixado de ser uma lenda viva para passar à posteridade como um dos mitos da indústria relojoeira.
Na véspera, no tradicional cocktail da marca que encerra o primeiro dia de cada edição do SIHH, o CEO Wilhelm Schmid havia centrado o discurso face aos presentes no facto de ser a primeira edição do certame sem a presença de Walter Lange. Uma queda tinha-o atirado para o hospital e, mesmo com 92 anos, esperava-se a sua recuperação. Mas não; morreria durante o sono, horas depois. A sua partida deixou o mundo relojoeiro mais pobre com a sua ausência, embora muito mais rico com a herança deixada sob a forma de uma das mais extraordinárias marcas relojoeiras do planeta — e uma biografia verdadeiramente notável.
Bisneto de Ferdinand Adolph Lange, responsável pela criação de um pólo relojoeiro nos arredores de Dresden no início do século XIX, Walter Lange foi baleado numa perna e viu as instalações da manufatura construída pelos seus ancestrais serem destruídas pelas forças aéreas aliadas no último dia da Segunda Guerra Mundial — quando o armistício já estava decidido, fazendo com que o tapete de bombas largado sobre a região parecesse tão cruel quanto criminoso. Tentou recuperar o negócio de família, mas o advento do regime comunista na Alemanha de leste significou a expropriação da Lange & Söhne e a sua inclusão anónima numa cooperativa estatal de marcas de Glashütte denominada Glashütte Uhren Betrieb e destinado a fazer relógios baratos para o povo. Walter Lange conseguiu escapar para a parte ocidental do país e continuar ligado à indústria relojoeira em Pforzheim; logo que o Muro de Berlim caiu, regressou a casa com a ressurreição da marca em mente.
A reunificação da Alemanha permitiu a Walter Lange não só recuperar o património familiar como transformá-lo numa das mais prestigiadas manufaturas graças a fabulosas criações que se tornaram ícones da cultura relojoeira contemporânea. A ressurreição ficou publicamente concretizada com a apresentação dos primeiros relógios da nova era a 14 de Outubro de 1994 — saldada pela emblemática fotografia com o mentor Günter Blümlein, o ‘sucessor’ Walter Lange e o diretor Hartmut Knothe ao lado dos primeiros quatro modelos Lange & Söhne da nova geração: o Lange 1, o Arkade, o Saxonia e o Tourbillon Pour Le Mérite. Com a janela da data a indicar 25; nesse tempo da proto-internet, foi privilegiada a imagem que sairia na imprensa tradicional do dia seguinte… e é por isso que todos os relógios Lange & Söhne são fotografados com a data a indicar o dia 25. Desse quarteto original, o Lange 1 rapidamente se tornou no ex-libris da marca — com o seu surpreendente mostrador descentrado mas extraordinariamente equilibrado, a revolucionária janela sobredimensionada para a data, todo o trabalho decorativo de gravação dita de Glashütte no mecanismo e um conjunto de valências dignas da mais fina relojoaria.
Depois vieram muitos outros relógios que rapidamente se tornariam icónicos (desde o Datograph ao Zeitwerk), enquanto Walter Lange se tornava numa lenda viva. Estive pela primeira vez com ele em Lisboa, no ano 2000, quando a Torres Joalheiros anunciou que passaria a ser agente da marca em Lisboa — e desde então reencontrei-o frequentemente em visitas periódicas de reportagem sobre a Lange & Söhne em Dresden/Glashütte ou no SIHH, tendo partilhado muitas refeições com ele. Aconteceu no passado mês de dezembro, aquando do tradicional evento pré-SIHH anualmente promovido pela marca. E muito possivelmente aconteceria ontem à noite no habitual jantar dos amigos da Lange & Söhne no La Réserve, tal como há um ano. Mas acabou por estar presente de outra maneira no espírito de todos os que o conheciam — para além de Wilhelm Schmid ter feito o seu elogio fúnebre e de eu ter colocado uma estrela com o seu nome no quadro à entrada.
Hoje em dia, Glashütte e Dresden constituem um polo relojoeiro florescente com marcas capazes de pedir meças à alta-relojoaria suíça — num processo liderado, evidentemente, pela Lange & Söhne. Walter Lange recebeu as chaves da cidade de Glashütte logo em 1995 e em 1998 foi condecorado com a Ordem de Mérito do estado da Saxónia. 20 anos depois, a Lange & Söhne recolheu inúmeros prémios internacionais e deslumbra cada vez mais pela sua superlativa qualidade. De todas as vezes que nos cruzámos, nunca tive uma conversa demasiado extensa com Walter Lange: o seu inglês era algo precário, o meu alemão não era suficientemente bom — mas sempre reconheceu em mim paixão pela sua manufatura e gostava sempre de ver o que eu tinha no pulso. E, até ao final da sua vida, Walter Lange sempre quis apanhar as etapas de pesquisa e desenvolvimento, dando a sua opinião tanto a Wilhelm Schmid como a Ton de Haas e Tino Bobe, os responsáveis pela criação de novos calibres e produtos. O seu relógio do dia-a-dia? O Tourbillon Pour Le Mérite com mecanismo de fuso e corrente apresentado em 1994, aquando do renascimento da marca.
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