Lumen essência

Edição impressa | Se hoje pouco nos surpreende o facto de podermos ler na obscuridade o tempo no mostrador de um Panerai, de um Rolex Submariner, com o seu Chromalight azulado, ou na transparência de um Lange 1 Lumen, é porque a tecnologia que lhes está associada evoluiu ao longo de mais de 100 anos. Durante este período, a radioluminescência deu lugar à fotoluminescência, baseada, hoje, de forma esmagadora, na Super-LumiNova®.

Originalmente publicado na edição 50 da Espiral do Tempo.

A Super-LumiNova® está hoje amplamente disseminada pela maioria dos mostradores de relógios desportivos produzidos dentro e fora da Suíça. A evolução deste material luminescente tem acompanhado o desenvolvimento da relojoaria, tanto técnica como esteticamente, aplicando-se hoje sobre ponteiros, números ou marcadores, não se restringindo apenas ao ainda dominante tom esverdeado. A paleta de cores à disposição das manufaturas inclui agora um espetro alargado, onde se incluem tonalidades que imitam bem o passado. Designações como vintage tritium ou vintage radium fazem agora parte de uma coleção de cores que reproduzem os tons envelhecidos visíveis em relógios produzidos na primeira metade do século XX e que se tornaram obrigatórias nos chamados relógios de inspiração neovintage. A história da evolução da luminescência associada à relojoaria ajuda-nos, assim, a perceber como a indústria chegou ao status quo atual, e, provavelmente, o que o futuro lhe reserva neste domínio.

Por volta de finais do século XIX, cientistas franceses descobriram que certas rochas da crosta terrestre eram mais do que apenas pedaços frios e inertes de metal ou mineral. Algumas apresentavam uma atividade notável, emitindo, nomeadamente, radiação. O físico e prémio Nobel francês Antoine Henri Becquerel tinha descoberto que o urânio emitia partículas atómicas que podiam atravessar folhas de metal dando origem a uma série de manchas claras sobre filme fotográfico. A descoberta foi imediatamente explorada pelo casal Pierre e Marie Curie que, passado pouco tempo, anunciava a descoberta dos elementos químicos polónio (Po) e rádio (Ra), este último inspirado no próprio nome da radiação. O casal Curie interessou-se especificamente pelo rádio e pelo brilho deste elemento, cujas propriedades rapidamente o transformaram numa espécie de substância milagrosa capaz de curar ou reduzir tumores, entre uma miríade de outras propriedades benéficas para a saúde.

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Radiomir 1940 Equation of Time 8 Days Acciaio; © Officine Panerai


O advento da radioluminescência

Os primeiros a terem a ideia de aplicar este material à relojoaria seriam os franceses Ernest e Camille Lipman, proprietários da manufatura francesa LIP, em Besançon. Os dois irmãos tinham ouvido falar, em 1902, da descoberta do rádio por Marie Curie, a quem pediram um fornecimento de fluido de zinco ativado com rádio, capaz de emitir um brilho constante. A LIP passou de imediato a produzir e a vender com grande sucesso relógios de mesa e despertadores com mostradores luminescentes.

O espoletar da Primeira Guerra Mundial revelou uma necessidade que não se tinha antecipado, quando os soldados enviados para as trincheiras lamacentas verificaram que os relógios de bolso eram manifestamente inadequados às necessidades do campo de batalha moderno. Ou caíam facilmente do bolso ou revelavam-se inúteis assim que o sol se punha e a escuridão da noite se instalava. As principais marcas relojoeiras fornecedoras da máquina de guerra responderam a este problema começando a prender os relógios ao pulso e a procurar uma forma de fazer os mostradores brilharem no escuro.

Apenas poucos anos antes da Guerra, e a par dos franceses, também os alemães tinham já desenvolvido uma tinta autoluminescente. Esta tinta brilhava devido a uma interessante mistura de químicos, em que sais de rádio eram misturados com átomos de zinco. Quando ambos se juntavam, as partículas emitidas pelo rádio induziam os átomos de zinco a vibrar, o que libertava energia visível na forma de uma pálida luz esverdeada. Apenas o suficiente para que, de noite, ela pudesse tornar um qualquer instrumento legível.

Quando finalmente, a 11 de novembro de 1918, o armistício foi assinado na floresta de Compiègne, os relógios de pulso com mostradores luminosos tinham-se transformado num acessório indispensável.


As meninas do rádio

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‘Meninas do rádio’, na U.S. Radium Corporation

A empresa norte-americana U.S. Radium Corporation foi, a partir de 1917, a principal responsável pela produção desta tinta radioativa a que tinha dado o nome de ‘undark’. Dava emprego a centenas de raparigas, que aplicavam a substância sobre os mostradores dos relógios. Este processo era levado a cabo recorrendo a uma técnica que exigia ‘afiar’ a extremidade do pincel com os lábios, de maneira a se poder cobrir com precisão os minúsculos números e marcadores dos mostradores. Cada jovem trabalhadora, quase sempre na casa dos 20 anos, tinha de pintar pelo menos 250 mostradores por dia ao longo de uma semana de cinco dias. Os riscos deste procedimento eram-lhes totalmente alheios, até que um dia começaram misteriosamente a adoecer. Os dentes caíam, os maxilares apodreciam e as primeiras não tardaram a morrer. Lentamente, os cientistas começaram a perceber as caraterísticas prejudiciais do rádio e a particularidade de emitir radiação beta e gama. Felizmente, nem todas as trabalhadoras acabaram da mesma maneira. Em 2004, Mae Kaene foi, aos 107 anos, a última rapariga do rádio a desaparecer. Tinha começado a trabalhar em 1924 na fábrica da Waterbury, no Connecticut, mas, por se recusar a afiar o pincel com os lábios, acabou por deixar este trabalho apenas ao fim de alguns dias. Uma decisão que acabou por lhe salvar a vida.


Trítio

Com o final da Segunda Guerra Mundial, o rádio começou lentamente a ser substituído pelo trítio, um isótopo do hidrogénio com fraca atividade radioativa. Quando o rádio se decompõe em hélio, o trítio que emite não contem raios gama perigosos, apenas eletrões de fraca energia.

Durante muitos anos, o material aplicado nos mostradores era uma mistura de pó de sulfeto de zinco e tinta de poliestireno cheia de trítio, capaz de manter as suas propriedades durante 12,3 anos. Os mostradores que utilizavam este material tinham inscritos sobre o mostrador a letra ‘T’, indicativa da presença de trítio. Mas o medo de tudo o que era radioativo levou a uma certa histeria, mesmo no que respeitava às propriedades relativamente inofensivas do trítio. Esta situação deu azo a que o seu uso acabasse por ser vedado a qualquer utilização pela maioria das nações, exceto se fosse para uso militar.

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Rolex Deepsea Sea-Dweller, Chromalight. © Rolex


O advento da fotoluminescência

Descoberta na década de 60 do século XX, durante pesquisas para a aplicação em lâmpadas fluorescentes de baixo consumo e tubos de raios catódicos, a Super-LumiNova tornou-se a substância não radioativa mais comummente utilizada na relojoaria contemporânea. Composta por aluminato de estrôncio dotado de európio e disprósio, a substância deixa-se carregar pelos raios solares, e quaisquer superfícies de um relógio, sejam números, ponteiros ou marcadores, mantêm-se visíveis durante toda a noite, perdendo gradualmente em força.

Após a sua descoberta, os pigmentos luminosos à base de aluminato de estrôncio começaram a ser produzidos pela empresa Suíça RC Tritec AG, com o nome SuperLite. Foram aplicados pela primeira vez em 1993, e com grande sucesso, em relógios da marca Swatch. No entanto, os japoneses da Nemoto conseguiram registar a patente deste mesmo material, dando hipótese à Seiko, nesse mesmo ano, de lançar relógios com marcadores luminescentes LumiBrite.

Apesar da concorrência, a RC Tritec AG e a Nemoto decidiram unir-se em 1998, dando origem a uma joint venture denominada LumiNova AG Schweiz. A nova empresa passou a obter a matéria-prima diretamente da Nemoto para posteriormente a refinar e colorir na sede em Teufel, na Suíça, de acordo com os pedidos específicos de cada cliente, maioritariamente entre verde, azul e verde azulado. A partir desse momento, o material passou a denominar-se Super-LumiNova®.

A atual Super-LumiNova®, aplicada na esmagadora maioria dos relógios desportivos, tem já a aptidão de se carregar em poucos minutos através de luz fluorescente sem necessidade de se expor à luz do dia. A capacidade de se manter iluminada alcança agora perto de 12 horas de duração.

Apesar do enorme sucesso da Super-LumiNova, o rádio do passado era um material extremamente eficaz que continua a não ter substituto à altura. Uma boa razão para que a afamada indústria relojoeira suíça mantenha o seu esforço de inovação em prol da descoberta de novos materiais capazes de iluminar os mostradores do futuro. ET_simb

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Lange 1 Lumen © A. Lange & Söhne

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