Manufaturas Montblanc: uma marca, dois sistemas

Hoje recordamos parte de uma reportagem sobre a visita a ambos os centros de produção relojoeira da Montblanc, em Le Locle e em Villeret que nos revelou duas formas distintas de fazer alta-relojoaria, dois sistemas de produzir e de olhar o objeto extraordinário que um relógio pode ser. Estávamos em 2013.


Reportagem completa publicada no número 44 da Espiral do Tempo (2013)


O Monte Branco, a mais alta montanha da Europa ocidental, situa-se na fronteira entre Itália e França, e foi lá, no lado francês, em Chamonix, que se realizaram os primeiros jogos olímpicos de inverno, em 1924. Mas é alemã a marca de instrumentos de escrita que colocou o nome Montblanc, até hoje, nos píncaros do luxo.

Um homem a trabalhar numa bancada de relojoeiro na Manufatura Montblanc, em Le Locle
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Quando a Montblanc decidiu lançar-se na aventura de ascender ao cume da relojoaria, com a determinação que usualmente associamos ao espírito alemão, os aficionados e consumidores, bem como a própria indústria – naturalmente conservadora – ignoraram olimpicamente o facto. Após meros 17 anos, muito poucos para uma indústria centenária, torna-se cada vez mais difícil fazê-lo.

Todas as marcas que produzem alta-relojoaria têm identidades muito próprias, cimentadas em décadas, ou mesmo séculos, de atividade, ou em criativos-relojoeiros geniais – isto numa indústria onde o peso da tradição, a par com o da inovação, é determinante. 

A Montblanc começou por produzir relógios a partir de um pequeno centro de produção em Le Locle, adquirindo, mais tarde, a centenária manufatura Minerva (o nome da deusa romana da sabedoria, das artes e da defesa na guerra), criando, assim, dois centros de produção que são duas formas diferentes de olhar, e de produzir, a alta-relojoaria. 

Um homem a trabalhar numa bancada de relojoeiro na Manufatura Montblanc, em Le Locle
Manufatura Montblanc, em Le Locle | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Le Locle, high-tech

Le Locle é uma pequena localidade adjacente a La Chaux-de-Fonds que é, há séculos, um dos principais centros de produção relojoeira suíça. Situada num vale (outrora) perdido entre montanhas, alberga as unidades de produção de várias marcas de relógios, bem como muitas das empresas que produzem o equipamento de que aquela indústria necessita. Depois de uma série de fogos que a reduziram a cinzas, no século XVIII, La-Chaux-de-Fonds foi reconstruída de uma forma original e muito própria da mentalidade protestante reinante, como uma modelar ‘cidade-fábrica’ – como Karl Marx a ela se refere no seu Das Kapital. A ideia terá sido a criação do que atualmente chamamos clusters – algo ainda hoje ambicionado em Portugal e que a indústria suíça de relojoaria concretizou há século e meio. Património mundial da UNESCO, reconhecida, justamente, pelo seu urbanismo original, nela nasceram pessoas como Le Corbusier, Blaise Cendrars ou Louis Chevrolet. 

Um homem a trabalhar numa bancada de relojoeiro na Manufatura Montblanc, em Le Locle
Manufatura Montblanc, em Le Locle | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

O palacete da Montblanc Montre data de 1906 e é um belo exemplar de arte nova, bem preservado na estrutura e nos detalhes decorativos, mas alterado de forma a incorporar a produção relojoeira ‘regular’ da Montblanc: as suas linhas Nicolas Rieussec, Star, Star 4810, Timewalker, Sport e Profile. A visita revela-nos a mais moderna tecnologia de que a indústria dispõe e uma gestão eficiente dos recursos e dos processos. O ambiente tecnológico que se sente em cada sala, com pessoas de bata branca, imaculada, e microscópios, robôs e outros equipamentos que se assemelham ao que imaginamos existir em qualquer laboratório da indústria farmacêutica é, no entanto, contradito pela própria estrutura do edifício, com salas de pequena dimensão que temos como sendo próprias – e são-no – de uma casa de habitação e não de uma unidade fabril. Talvez esta aparente contradição, que não será casual, ajude ao ambiente familiar que se sente existir entre os membros da equipa. 

Pormenores da visita à Manufatura Montblanc, em Le Locle
Manufatura Montblanc, em Le Locle | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Villeret, cápsula do tempo

Villeret é, também, uma espécie de santuário da alta-relojoaria, mas de outra índole. A tradição aqui é mais do que uma palavra de marketing, é um culto e uma realidade que se sente serem epidérmicas, e que já raramente se encontra. Villeret tem pouco mais que uma dúzia de casas, apenas, das quais se destaca o edifício da antiga, histórica e respeitadíssima manufatura Minerva, fundada em 1858, e a casa do seu fundador, mesmo ao lado. Depois de várias vicissitudes, a Minerva foi adquirida pela Montblanc, em 2006, num golpe de génio, para produzir, exclusivamente, a sua linha Villeret. Aqui tudo é diferente de Le Locle, menos o ambiente familiar. De facto, será ainda mais desenvolvido, porque as pessoas trabalham aqui, juntas, há mais tempo, já que muitas aqui trabalham desde antes da aquisição. 

Manufatura Montblanc, em Villeret. Dois homens a trabalhar numa bancada de relojoeiro
Manufatura Montblanc, em Villeret | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Onde antes estávamos num ambiente, marcadamente, de produção, estamos hoje num ambiente de artistas e artesãos; onde antes tínhamos uma equipa eminentemente jovem, temos hoje sobretudo pessoas além da meia-idade e ‘muitos quilómetros’ de alta-relojoaria; onde antes tínhamos uma habitação transformada em fábrica, temos hoje uma fábrica centenária que mudou em quase nada; onde antes tínhamos um perfeito controlo dos tempos de produção, temos hoje vagar; onde antes tínhamos eficiência, temos hoje cultura. Para quem compreende o que é a alta-relojoaria e admira a genialidade humana capaz de conceber instrumentos com umas poucas dezenas de milímetros que acolhem centenas de ínfimas peças que, mecanicamente, dão uma série de medições do tempo, ou várias outras funções, é empolgante recuar no tempo e ver como se atinge a perfeição relojoeira, à mão, como aqui se faz. 

Manufatura Montblanc, em Villeret
Manufatura Montblanc, em Villeret | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Em Villeret, em vez das salas asséticas de Le Locle, encontramos os ateliers de antanho, muitos deles praticamente inalterados, onde certas peças são polidas por mãos com décadas de experiência, durante horas, com um pedaço de caule de genciana – e não por um robô –, onde as espirais são produzidas, uma a uma, para depois se colocarem na roda do balanço, executando, só para este efeito, 21 operações manuais, ou onde a ponte do turbilhão demora uma semana a ser polida e decorada. E encontramos, também, uma verdadeira oficina de micromecânica, onde a maioria do equipamento é dos anos 50 do século passado, com os cheiros característicos do metal, dos óleos que lubrificam as máquinas que cortam as placas de metal para fazer as caixas dos relógios ou as minúsculas peças, num autêntico regresso ao passado. 

Manufatura Montblanc, em Villeret
Manufatura Montblanc, em Villeret | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

O detalhe e o gosto pelo trabalho e pela tradição, não apenas no aspeto técnico, mas também no estético, vai ao ponto de aqui não se produzirem relógios automáticos, apenas de corda manual. A circunstância, inevitável, de o rotor tapar parte significativa da visibilidade do mecanismo nos relógios automáticos, inviabiliza qualquer cedência. E é por isso que todos os Montblanc Villeret permitem olhar o mecanismo, seja através de uma tampa, patenteada, no fundo do relógio, que, quando aberta, revela o mecanismo em todo o seu esplendor – uma referência, e homenagem, aos relógios de bolso e às suas caixas ‘officier’ –, seja, nos modelos de tamanho médio, diretamente através do fundo em vidro de safira.

Montblanc Villeret 1858 TimeWriter Metamorphosis e Montblanc Villeret 1858 Vintage Chronographe
Montblanc Villeret 1858 TimeWriter Metamorphosis e Montblanc Villeret 1858 Vintage Chronographe. Relógios em destaque na altura em que fizemos a nossa visita | © Montblanc

Outra coisa que os modelos saídos daqui têm em comum é a assinatura do Mestre Demetrio Cabbidu – diretor técnico da Minerva e um dos mestres relojoeiros mais respeitados na indústria, fiel depositário da tradição relojoeira praticada pela manufatura Minerva – em quase todos os modelos, menos nos que têm o fundo em vidro de safira por evidente falta de espaço. «Numa analogia da moda, Villeret é alta costura, criações extraordinárias limitadas pela natureza e pela circunstância de ser artesanal, e depois temos o prêt-a-porter onde fazemos bela relojoaria do sec. XXI. São dois segmentos de mercado diferentes mas complementares.».

Manufatura Montblanc, em Villeret
Manufatura Montblanc, em Villeret | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

A inovação, no entanto, não está afastada da tradição, em Villeret. Aqui foi desenvolvido o Institut Minerva de Recherche en Haute Horlogerie, que guarda toda a herança da casa, mas que, paralelamente, dá a oportunidade a jovens talentos de desenvolverem as suas ideias e enriquecerem a arte relojoeira de uma forma inovadora, como foi o caso do Metamorphosis.

Se em Le Locle encontrámos a tecnologia state of the art e uma gestão atenta à otimização do tempo e dos recursos, em Villeret, na antiga manufatura Minerva, os relógios são feitos exatamente como em meados do século passado – com o mesmo equipamento, o mesmo savoir-faire, o mesmo vagar. A preocupação com a precisão de cada relógio é igual, mas o valor relojoeiro, naturalmente, difere. 


NOTA
Coincidente com a visita da Espiral do Tempo, foi a entrada em funções de Jerôme Lambert como CEO da Montblanc, depois de 11 anos à frente da Jaeger-LeCoultre, também pertencente ao grupo Richemont. Na altura era ainda cedo para saber o impacto que esta transferência poderia ter na estrutura e na ambição relojoeiras da Montblanc, mas uma coisa parecia já evidente e ainda parece, tantos anos depois: a solidez da Montblanc, enquanto marca relojoeira, a singularidade do seu trajeto e a qualidade dos seus produtos. E por aqui continuamos a acompanhar o seu percurso.

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