O desafio dos smartwatches

EdT54 — Contava-se que o filósofo Immanuel Kant era tão metódico que os habitantes de Konigsberg acertavam o seu relógio quando ele passava, todos os dias, defronte das suas casas. Aos 31 anos, sem ter saído da sua cidade natal, Kant publicou a Teoria do Céu, um tratado sobre astronomia em que analisava a validade das leis de Newton. Hoje, os habitantes de Konigsberg dispensariam a pontualidade de Kant. As horas estão em todo o lado. Nos computadores, na televisão ou no pulso. E na sociedade digital, agora que um novo produto veio trocar as voltas e as horas aos seres humanos: o smartwatch.

Originalmente publicado na versão impressa da Espiral do Tempo 54.

Por Fernando Sobral

A Apple, dinâmica como sempre, colocou, no ano passado, o Apple Watch no centro de todas as atenções e discussões. Uma entrada de leão que deixou, no início, a indústria relojoeira suíça relativamente alarmada, até porque esta revolução digital surgiu no mesmo momento em que o franco suíço valorizou substancialmente e o mercado chinês congelou. Os mais pessimistas fizeram questão de recordar a crise da década de 80, quando o quartzo japonês fez tremer todas as certezas. Os otimistas viram uma nova oportunidade para a indústria tradicional suíça. Os pragmáticos pensaram: nem guerra, nem paz.

Smartwatches
Apple Watch © Apple Inc.

Passadas as primeiras ondas de choque, o Apple Watch ocupou o seu espaço como um relógio inteligente que necessita de estar conectado a um iPhone. Ou seja, funciona como um irmão de um smartphone. Sabe-se que a Apple costuma decifrar e formular as grandes tendências de consumo. Comprar um dos seus produtos também é uma declaração de identidade, tal como quando se compra um relógio. Ou um valor, como sabem os colecionadores que preferem os mais complexos relógios. O Apple Watch também mostra uma mensagem sobre quem o usa (é alguém que está na vanguarda da tecnologia). Já os relógios clássicos enviam outro tipo de imagem. Sendo diferente de um relógio normal, o Apple Watch também atinge um segmento mais acessível, apesar de a Apple produzir versões de aço, vendidos entre 500 e 1.000 dólares. Os analistas de Wall Street acreditam que a Apple venderá 24 milhões de relógios ‘inteligentes’ no ano fiscal de 2016. Mas a notícia da morte da indústria tradicional é manifestamente exagerada, como diria Mark Twain.

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TimeWalker Urban Speed UTC e-strap © Montblanc

Ninguém duvida de que a Apple criou um novo mercado. E vai implicar inovação, seja no setor ligado ao digital, seja na indústria tradicional. Até porque a tecnologia, aliada à miniaturização, vai avançar rapidamente, como reconhecia David Singleton, diretor de engenharia da Android Wear (Google), ao Wall Street Journal. Ninguém domina o futuro. Mas outras empresas, da Google à Huawei e à Samsung (com o novo Gear S2), também já entraram neste novo mercado. Novas alianças vão ser fundamentais neste mundo digital. Algo que a indústria suíça, no seu contra-ataque, já percebeu. Jérôme Lambert, CEO da Montblanc (que lançou as e-straps, que permitem a ligação aos smartphones), dizia à Espiral do Tempo, em janeiro, que os smartwatch são «uma oportunidade! Quando falamos de relógios inteligentes, falamos, antes de tudo, de relógios». Ou seja, a renovação de clientes também pode passar por aqui, abrindo-se novas janelas de oportunidade para a indústria suíça. Sabendo-se que as marcas mais vulneráveis ao assalto da Apple são as do nível mais baixo do mercado, como explicava Jon Cox, analista da Kepler Cheuvreux ao Financial Times, a Swatch marcou o seu território. Juntou-se à Visa para oferecer serviços de pagamento através dos seus relógios da linha Bellamy. Sinal de que os smartwatches são cada vez mais vistos como acessórios que precisam de plataformas. Além disso, esta agitação do mercado está a levar a uma nova vaga de inovação na indústria suíça. Porque, mais do que um problema para o mercado existente, o smartwatch permite ir à conquista de um novo território. A Apple trouxe, como é evidente, novos clientes ao mercado relojoeiro. Muitos dos mais jovens, adeptos do digital, poderão no futuro refinar o seu gosto e preferir relógios mecânicos ou complicações únicas. É algo que está em aberto. O surgimento do smartwatch permitiu também um olhar mais sólido sobre o mundo digital ou da Internet. A TAG Heuer, por exemplo, tem hoje 150 mil fãs na plataforma Weibo, a versão chinesa do Twitter.

Smartwatches
Swiss Alp Watch © H. Moser & Cie

A H. Moser & Cie, com o seu Swiss Alp Watch, percebeu perfeitamente o repto e, mesmo jogando num campeonato diferente, adaptou as táticas da Apple. Este modelo parece-se com o Apple Watch. É retangular e arredondado. Mas em vez de ter um ecrã tátil com uma infinidade de aplicações, tem um mostrador clássico, típico da marca. Parece, mas não é. Puro marketing. Mais: a H. Moser usou um vídeo de promoção ao estilo dos vídeos que a Apple faz. A TAG Heuer, respeitando a sua memória, também irrompeu neste novo mercado, aliando-se à Google e à Intel. E assim surgiu o TAG Heuer Connected. Jean-Claude Biver, o CEO da TAG Heuer, dizia ao Financial Times: «Parte do nosso logotipo diz ‘swiss avant-garde since 1860’ e se nós éramos avant-garde em 1860, temos o dever de continuar a ser avant-garde em 2015». Com capacidade de ligação aos sistemas Android e iOS, cortesia da plataforma Google Wear, coloca o ênfase em ter sido feito por uma marca de relógios e não de computadores.

Smartwaches:
TAG Heuer Connected © TAG Heuer

No centro parece estar a virtude: o Apple Watch veio desestabilizar o mercado. Mas não irrompeu para o destruir. Veio abrir janelas de oportunidade para a indústria tradicional, conquistando os jovens fascinados pelo digital. Uma nova revolução relojoeira parece estar em marcha. ET_simb

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