Relógios que fazem pensar

Há relógios que, pela respetiva genialidade mecânica, nos fazem encarar a vida com outros olhos. São relógios filosóficos, mas também com um quê de zen e com uma saudável dose de loucura, e que nos fazem lembrar que, por vezes, devemos esquecer o tempo ou, pelo menos, o tempo como nós o entendemos – por mais confuso ou paradoxal que isto nos possa parecer. No meio de tanta variedade, há um aspeto comum a todos esses relógios: a genialidade mecânica ou conceptual que guardam dentro de si.

Por Cesarina Sousa e Miguel Seabra

Na sequência dos famigerados ataques do 11 de setembro, o mundo transformou-se, subitamente, num local muito sombrio. Na altura, Franck Muller terá sentido a necessidade de combater esse pessimismo generalizado, através de criações relojoeiras exuberantes e surpreendentes que queriam mostrar um lado mais positivo do tempo. Aliás, o movimento Crazy Hours, criado com esse propósito, terá sido idealizado em sequência de uma viagem às ilhas Maurícias, durante a qual o mestre relojoeiro helvético se apercebeu de que todas as suas férias eram demasiado pontuadas por regras. Resolveu, então, dar asas à sua imaginação e criar um relógio que contrariasse a inexorabilidade do tempo…

Típico deste mestre, esse devaneio. Franck Muller ganhou fama ao afirmar-se como anticonformista no que ao funcionamento da indústria relojoeira suíça dizia respeito, e, quando começou a fazer relojoaria, optou por fazer coisas que, na altura, não se faziam — apenas porque tinha vontade de fazê-las e porque ninguém as queria ou conseguia levar a cabo. A verdade é que, através deste modo de pensar, o mestre genebrino abriu alas para que toda uma geração de relojoeiros se pudesse exprimir sem medos. Desbravou novos caminhos nos formatos, nos tamanhos, nas cores e também na maneira de encarar o tempo. Nascido em 2003, o Crazy Hours veio dar um toque de irreverência ao quotidiano e estabelecer uma nova filosofia do tempo que, hoje em dia, pode ser vista em várias marcas de alta-relojoaria sob a assinatura «complicações poéticas» – muito associadas à Van Cleef & Arpels, por exemplo –, mas que o próprio Franck Muller define de outra forma: «no Crazy Hours, quebrámos os códigos do tempo. Por exemplo, quando vê o ponteiro a indicar as 3 h, imagina que está no trabalho, ao passo que se o colocar de forma diferente no mostrador, a sua perceção muda. Entra na categoria dos relógios filosóficos», referiu Muller, em entrevista exclusiva à Espiral do Tempo (Espiral do Tempo n.º 61/inverno de 2017). Criando um caos aparente nos mostradores, o Crazy Hours veio romper com a tradicional perceção circular do tempo e estabelecer uma nova filosofia, ao proclamar a sua independência em relação à ordem estabelecida pelo ponteiro das horas. E foi, assim, com um truque traquinas tornado possível pela técnica relojoeira, que o Crazy Hours demonstrou a sua independência face à norma estabelecida.

Mas tal como o mestre das complicações teve a ousadia de jogar com esta noção de tempo, também outras marcas e outros mestres o têm feito, cada um à sua maneira. E a verdade é que, diante de todas essas criativas abordagens, cada relógio criado torna-se um autêntico desafio para o modo como habitualmente olhamos para a passagem do tempo – seja porque nos pretendem transmitir uma mensagem inspiradora, para que apreciemos melhor a vida, seja porque pretendem, apenas, destacar-se enquanto genialidades mecânicas que nos afastam da noção circular de tempo que nos foi sendo imposta pelos meandros da história. As complicações criadas por Jean-Marc Wiederrecht no atelier Agenhor, por exemplo, contam histórias de forma mecânica, suspendem a indicação das horas no mostrador ou reinventam a forma de encarar os ponteiros. Noutros casos, a ousadia leva-nos para um entendimento mais lúdico, e os relógios transformam-se em verdadeiros jogos de pulso. Noutros casos ainda, há relógios que, mesmo sem complicações associadas, nos levam a respirar mais fundo só pelo princípio de funcionamento por que se regem. E é preciso ter em conta que não nos referimos a uma componente artesanal ligada às artes, mas antes a um aspeto absolutamente mecânico ou conceptual, requintado e quase genial, que nos faz pensar e que não está ao alcance de qualquer um. A seleção que fizemos para as próximas páginas representa um conjunto de relógios que ilustra isto mesmo…

Franck Muller

Cintrée Curvex Crazy Hours 
Ref. 8880CH/ACBRV
Corda manual | Aço | 39,6 x 55,4 mm | € 24.580

© Paulo Pires / Espiral do Tempo
© Paulo Pires / Espiral do Tempo

O Crazy Hours, da Franck Muller, denota uma loucura em relação à inexorabilidade do tempo, que é bem mais racional do que a aparente aleatoriedade que salta à vista: ao invés de o ponteiro das horas seguir o seu curso normal no mostrador (a habitual rotação que acompanha a numeração sucessiva da 1 h às 12 h), salta cinco ‘casas’ da 1 h para as 2 h (que estão localizadas onde habitualmente estão as 6 h), depois mais cinco ‘casas’ das 2 h para as 3 h (onde tradicionalmente estão as 11 h), e assim por diante. A ideia original deste conceito tem a sua graça, uma vez que pretende levar as pessoas a dissociarem as horas de certos momentos do seu dia. No ano passado, a Franck Muller celebrou os 15 anos deste peculiar instrumento do tempo que nos faz olhar para as horas de outra forma, um autêntico desafio para a mente e para os olhos, com o lançamento de diversos modelos novos (entre os quais o modelo que elegemos) e de uma exposição comemorativa que esteve patente em vários agentes oficiais do nosso país.

Jaeger-LeCoultre

Atmos Réédition 1934
Ref. Q5175102
Corda manual | Cristal de vidro | 349 x 161 x 275 mm | € 26.900

© Jaeger-LeCoultre
© Jaeger-LeCoultre

O Atmos, da Jaeger-LeCoultre, foi originalmente criado em 1928, e é conhecido por ser o presente que a Suíça costumava oferecer aos seus convidados oficiais. Mas, não contando com estes pormenores, o que torna este objeto verdadeiramente excecional é o seu princípio de funcionamento — um relógio cujo mecanismo vive ao sabor das mais reduzidas variações térmicas, tornando-o uma espécie de ‘ser vivo’. Na imagem, pode ver-se uma reedição de um modelo de 1934 que se distingue pelo peculiar desenho da campânula. Lá dentro, ‘vive’ o mecanismo de sempre, no qual uma cápsula hermeticamente fechada contém uma mistura gasosa secreta que se dilata quando a temperatura sobe e que se contrai quando a temperatura desce. Esta oscilação no volume ocupado por essa mistura de gases deforma a caixa do relógio, transformando-a numa espécie de fole de acordeão que, tendo solidariedade com a mola do pêndulo, dá corda ao mecanismo. A diferença de um único grau é suficiente para proporcionar dois dias de reserva de marcha. Regressando ao lado filosófico da questão, este é um daqueles relógios cujo princípio de funcionamento é, por si só, um convite à reflexão, à tranquilidade, à paz. E, também, à simplicidade.

Hermès

ARCEAU LE TEMPS SUSPENDU WATCH, 38 MM
Ref. W040287WW00
Corda automática | Aço | Ø 38mm | € 22.300

© Hermès
© Hermès

O tão almejado poder de suspender o tempo é o princípio que está na base do Arceau Le Temps Suspendu da Hermès, um relógio que para à vista desarmada, fazendo-nos refletir sobre o modo como aproveitamos o tempo que temos em mãos. Esta suspensão temporal torna-se possível de uma forma aparentemente simples: ao pressionar o botão posicionado às 9 h, os ponteiros das horas e dos minutos param na zona das 12 h e só retomam a marcha mediante uma pressão no mesmo botão. Existem diferentes versões deste relógio, mas, neste caso, optámos por dar destaque ao modelo que apresenta um pequeno indicador de 24 segundos alusivo ao número da porta da boutique da marca em Paris, e cuja marcha segue o sentido anti-horário. Outra versão apresenta, no lugar dos pequenos segundos, um calendário, cujo ponteiro se esconde sempre que pressionamos o botão. O mais incrível nesta engenhosa complicação desenvolvida pelo atelier Agenhor é o facto de o tempo continuar a contar, apesar da aparente suspensão do mesmo. Tal é possível graças à existência de um módulo adicional coordenado por duas rodas de colunas sincronizadas (uma para as horas, e outra para os minutos e para a data).

Hautlence

Playground Labyrinth 01 
Ref. LABYRINTH 01
Titânio | 37 x 43,5 x 13 mm | Preço sob consulta

© Hautlence
© Hautlence

A Hautlence é uma marca bem conhecida pelo caráter irreverente dos seus instrumentos de tempo, especialmente no que diz respeito à estética e às soluções técnicas que adota. No entanto, a marca também não ‘brinca em serviço’ na hora de criar edições limitadas pensadas precisamente para brincar – mas que não se tratam, verdadeiramente, de complicações lúdicas, até porque, neste tipo de relógios, atrás da complicação esconde-se quase sempre a função de dar horas. Mas as edições limitadas da Hautlence nem sequer dão o tempo. São, antes, relógios de pulso que convidam a um momento de descontração, através de um jogo bem divertido. Se no Playground Pinball a diversão é garantida através de um minúsculo jogo de pinball, no Playground Labyrith, o relógio a que escolhemos dar destaque, integra um jogo em que uma pequena esfera tem de seguir o caminho certo até encontrar a abertura que lhe servirá de destino final. Quem nunca se divertiu com este tipo de jogos, um autêntico desafio à nossa paciência e persistência?

Marc Newson

The Hourglass by Marc Newson
Ref. 1W505002
Vidro | Ø 200 mm | Preço sob consulta

© Marc Newson
© Marc Newson

Uma ampulheta é, por si só, um símbolo da inexorabilidade do tempo. Sabemos bem que o tempo nunca está parado cada vez que olhamos para a areia que vai caindo sem que possamos dar conta. Mas a ampulheta tem, ao mesmo tempo, aquela capacidade de prender os nossos olhos, provocando em nós um efeito que nos faz, também, esquecer tudo quanto está à nossa volta. Se isso é bom ou mau, não faz grande diferença. Especialmente para estas páginas. Contudo, importa que, em 2015, Marc Newson brindou-nos com esta Hourglass, uma ampulheta feita de vidro borossilicato que contém milhões de esferas com 0,6 mm de diâmetro feitas de aço inoxidável e revestidas a ouro e prata. Sempre que a Hourglass é invertida, as pequenas esferas de precisão caem e saltam de uma maneira errática, mas verdadeiramente hipnótica. Nas palavras de Marc Newson, «Nesta Hourglass, tudo gira em torno do tempo, mas de uma forma mais esotérica e fundamental. Eu estava a pensar em divertir-me com o tempo.»

Moser & Cie.

Swiss Alp Watch Minute Repeater Concept Black
Ref. 5901-0301
Corda manual | Platina | 45,8 x 39,8 mm | Preço sob consulta

© H. Moser & Cie.
© H. Moser & Cie.

A H. Moser & Cie. distingue-se, entre outros aspetos, pelos seus concept watches que, de alguma forma, transmitem uma mensagem ou marcam um statement. No currículo da marca, temos relógios únicos, como o Swiss Made Watch, que veio desmistificar o Swiss Made, ou o mais recente Nature Watch, que reforça o lado ecológico da marca. Temos também o Swiss Alp Watch Minute Repeater Concept Black, que aqui apresentamos— um relógio de pulso elegante e minimalista, desprovido de indexes e de logótipo, e que dá as horas sem nunca as indicar em lado nenhum. No mostrador profundamente negro, vê-se um ‘turbilhão voador’ às 6 h. Só isso. Mas não é só isso, porque, se quiser realmente saber as horas, terá de as ouvir — como nos bons velhos tempos em que, sem eletricidade, as pessoas tinham de descobrir que horas eram, através de relógios com repetição de minutos. É este o caso. A H. Moser & Cie presta homenagem à prestigiada tradição relojoeira através de um engenhoso relógio de pulso minimalista que integra um sistema de repetição de minutos e um turbilhão, numa caixa retangular que faz lembrar um smartwatch… Desta forma, sabemos o tempo apenas quando queremos, de facto, sabê-lo. Isso, por vezes, dá muito jeito.

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