O fenómeno Furlan Marri em entrevista

A Furlan Marri tem conhecido um crescimento exponencial desde o seu lançamento, em 2021. Visitámos a sede da marca em Genebra e entrevistámos o designer e cofundador Andrea Furlan.

Começou como um projeto de financiamento coletivo no Kickstarter — mas começou logo muito bem, granjeando uma quantia dezenas de vezes acima da necessária. Foi um excelente prenúncio: hoje em dia, a Furlan Marri deixou de ser uma micromarca propriamente dita para assumir um estatuto mais macro, com uma produção que se avizinha da dezena de milhar de exemplares por ano. Um fenómeno que vale a pena ser analisado mais de perto, pelo que fomos visitar as instalações da marca em Genebra para saber um pouco mais sobre o seu futuro.

Farlun Marri Hamad Marri e Andreas Furlan
Os fundadores da Furlan Marri: Hamad Al Marri e Andreas Furlan com o Prémio Revelação do Grand Prix d´Horlogerie de Genève em 2021 | Foto: GPHG

Fundada em 2021 por Andrea Furlan (designer industrial suíço) e Hamad Al Marri (colecionador de relógios e artista com base na Arábia Saudita), a Furlan Marri arrancou no Kickstarter precisamente no mesmo dia da Studio Underd0g, outro case study da relojoaria da presente década. Mas com uma adesão muito superior, graças a uma excelente comunicação que deixou a comunidade relojoeira particularmente interessada — mesmo que os cincomodelos inaugurais não fossem propriamente relógios mecânicos: eram cronógrafos macaquartzo (Calibre VK64 da Seiko), mas com uma declarada inspiração vintage (a mesma caixa dotada de botões cogumelo, coroa e fundo dodecagonal patente no Patek Philippe Ref. 1463, dito ‘Tasti Tondi´) e excelentes acabamentos que seduziram os estetas mais exigentes. E convenceram o júri do Grand Prix d’Horlogerie de Genève, que lhe atribuiu o Prémio Revelação na edição desse mesmo ano dos Óscares da Relojoaria.

O primeiro modelo completamente mecânico da Furlan Marri: três ponteiros e corda manual | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O primeiro modelo completamente mecânico da Furlan Marri | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

O segundo modelo, denominado Cornes de Vache, manteve a mesma apurada estética vintage numa faixa de preço acessível, mas já alimentado por um calibre automático. Com o êxito financeiro e sobretudo o sucesso junto de um público mais exigente que também envolve experientes colecionadores e jornalistas especializados, a fasquia passou a ser colocada num plano mais alto. Porque a clientela parecia preparada e para não sucumbir à estagnação. Para além de várias colaborações e do lançamento de um triunvirato de cronógrafos flyback de corda manual e do mais recente Disco Volante com estilização retrofuturista (premiado em 2024), o relógio projetado para o Only Watch catapultou a marca para uma categoria superior: um calendário perpétuo secular ultrasimplificado desenvolvido em parceria com os mestres Dominique Renaud e Julien Tixier, que entretanto vai passar para a coleção regular.

A peça única Secular Calendar concebida para o Only Watch que originou o modelo da coleção regular | Foto: Furlan Marri
A peça única Secular Calendar concebida para o Only Watch que originou o modelo da coleção regular | Foto: Furlan Marri

O Secular Perpetual Calendar integra somente 21 componentes e está equipado com um anel periférico para controlar as funções de data; ou seja, uma solução simplificada que dispensa os tradicionais botões na caixa em troca de um único botão giratório às 6 horas. O módulo de calendário perpétuo tem somente 1,25 mm de espessura e ostenta acabamentos à mão de alta-relojoaria, estando alojado um movimento de base La Joux-Perret com massa oscilante em ouro de 18 quilates. O mostrador deixa ver vários componentes do calibre, nomeadamente através de uma secção em safira fumada. Tudo numa caixa no mais democrático dos materiais — o aço, contribuindo para um preço final abaixo dos 10.000 francos suíços.

Com o prémio da categoria acessível no concurso Watch Of The Year 2024 da ch24.pl | Foto: Lukasz Doskocz/ch24.pl
Com o prémio da categoria acessível no concurso Watch Of The Year 2024 da ch24.pl | Foto: Lukasz Doskocz/ch24.pl

A evolução e inovação mecânicas, a par do bom gosto, deixam a crítica curiosa na expectativa quanto aos passos seguintes a dar. Fomos falar com Andrea Furlan — que anteriormente trabalhou para a Chopard, Hublot, Sarcar, HD3 e Dominique Renaud — para um ponto da situação no que diz respeito à sua jovem marca.

Furlan Marri Ref. 1031-A "Havana Salmon"
O Ref. 1031-A ‘Havana Salmon’ com movimento mecaquartzo | Foto: Furlan Marri

Andrea, como explica a evolução da Furlan Marri? Como é que a marca chegou até aqui e onde quer chegar?

No início, com o Hamad e quando fizemos o lançamento no Kickstarter, não estávamos à espera de tantos pedidos. Tínhamos uma visão de longo prazo, mas quisémos começar com um relógio acessível que tivesse códigos clássicos, mas que também fosse muito sofisticado nos detalhes e acabamentos; já sabíamos que depois iríamos passar para outras fasquias de preço com movimentos mecânicos e também já tínhamos na ideia colaborar com o Dominique Renault para fazer complicações. Então planeámos a marca em três linhas e tentamos apresentar relógios complicados que sejam o mais acessíveis possível, encontrando soluções técnicas interessantes. Mas é verdade que não antecipámos que a marca iria crescer tão rapidamente desde o início e, quando recebemos o Prémio Revelação no Grand Prix d’Horlogerie de Genève, dissemos a nós mesmos que teríamos de acelerar tanto a parte mecânica mecânica como a vertente técnica — porque ganhámos o prémio com um movimento mecaquartzo, tínhamos de provar que também podíamos fazer relógios mecânicos e com técnica apurada.

Três caixas de relógios Furlan Marri
Dois dos três modelos inaugurais: o Ref. 1022-A ‘Laccato Nero’ e Ref.1022-B ‘Farro’ | Foto: Furlan Marri

O sucesso no Kickstarter também vos deu o suporte financeiro para avançar muito mais rapidamente com a planificação, certo?

Na verdade, quando recebemos os 1,2 milhão, reinvestimos praticamente tudo diretamente e não fizemos como outros — que passaram a fazer o mesmo modelo mas em cores diferentes. Nós não parámos e criámos algo de novo, também acabando com as primeiras edições do Kickstarter para criar algo desejável e depois fizemos algo de novo em comparação com os modelos da estreia. Dissemos para nós mesmos que devíamos ir na direção oposta e reinvestir na técnica, nos movimentos mecânicos. Ligámos para a La Joux-Perret para fazer o pedido de um movimento mecânico com antecedência e até acho que fomos os primeiros clientes para o novo calibre que estavam prestes a lançar. Mas não foi fácil, no início. Eu estava sozinho em Genebra, o Hamad no Médio Oriente. De certo modo, foi bom porque é como se tivéssemos uma marca com presença forte em dois continentes. Entretanto, em 2023 começamos a alargar a equipa.

Adereços na sede da Furlan Marri | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Adereços na sede da Furlan Marri | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Tem-se falado de alguma estagnação e até de crise na atual conjuntura do mercado, depois daqueles anos excecionais pós-Covid. Mas as micromarcas parecem lidar melhor com a situação, embora a Furlan Marri já não seja propriamente uma micromarca devido ao número de pessoas que trabalham e nível da produção...

Estamos a produzir cerca de 28.000 exemplares por ano, mas começamos com muito menos — até porque a linha técnica exigiu muito trabalho e um ano de desenvolvimento. Tivemos de adiar alguns projetos para 2024 e 2025, sendo que o calendário perpétuo secular é um projeto muito grande em termos de desenvolvimento. De resto, os modelos exclusivamente mecânicos vendem-se cada vez melhor, e on-line temos registado uma progressão mensal e cada vez com novos clientes, ao contrário do que se está a verificar globalmente na relojoaria. O facto de operarmos quase exclusivamente on-line permite-nos analisar todos os dados a cada mês e otimizar o conteúdo. No nosso site até temos ferramentas que permitem analisar a atividade do rato das pessoas, para onde ele vai e onde clica mais!

O Disco Volante no pulso e o cronógrafo flyback | Fotos: Lukasz Doskocz/ch24.pl
O Disco Volante no pulso e o cronógrafo flyback | Fotos: Lukasz Doskocz/ch24.pl

Ainda se consideram uma micromarca? E o que é uma micromarca para vocês?

Realmente não sei, acho que uma micromarca é uma marca pequena que realmente sabe como se adaptar depressa às tendências ou fazer ajustes muito rapidamente, mas em termos de volume diria que já não somos uma micromarca; somos uma marca que ainda tem espírito de micromarca e que tem uma visão de muito longo prazo — por exemplo, desenvolvendo complicações mecânicas. Já temos duas patentes que registámos, o calendário perpétuo secular e um modelo de segundos mortos que será lançado em 2026. Já depositamos a patente, pelo que ela está protegida. Mas aí está: não estamos acostumados a ver isso numa micromarca. Eu diria que somos pequenos na equipa e temos um espírito de start-up. As pessoas gostam muito desse lado das micromarcas porque as coisas acontecem e a dimensão ainda não é muito grande. E gostaríamos de permanecer pequenos na forma como distribuímos, etc. Não vamos querer vender em todo o lado em termos físicos, mas aos poucos e poucos vamos começando a vender relógios em lojas selecionadas.

O Furlan Marri Disco Volante foi uma das mais interessantes propostas no seu segmento em 2024 | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O Disco Volante foi uma das mais interessantes propostas no seu segmento em 2024 | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

E como pretendem fazer a diferença face à concorrência e ao que o mercado tem para oferecer?

Decidimos colocar bastante empenho nos acabamentos, até mesmo no interior — mostrando o relógio como uma peça de alta-relojoaria em termos de perlage dentro da caixa, etc. Os ponteiros são curvos para acompanhar a curvatura dos mostradores. E não hesitamos em investir mais alguns francos suíços ou euros na produção, para oferecer algo de mais aos clientes. E vemos muito claramente que isso agrada até a grandes colecionadores, que se têm mostrado muito entusiasmados e compram os nossos relógios. Os grandes colecionadores já têm tudo, mas gostam de coisas diferentes, como os relógios da Berneron ou outras marcas com uma linguagem diferente.

Andrea Furlan assina a estética da Furlan Marri | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Andrea Furlan assina a estética da Furlan Marri | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Ainda é jovem mas já revela muita maturidade. Quais são suas principais influências no design de relógios?

Sou designer industrial, fiz os meus estudos nessa área. Eu queria ser designer de automóveis quando era mais jovem. Fui ver escolas em Itália para isso e quase estudei lá. Sou suíço mas também italiano e espanhol, com família italiana de Veneza e espanhola da Andaluzia — representei a Suíça internacionalmente, fui quatro vezes campeão suíço dos 800 metros e fui aos Jogos Olímpicos da Juventude. Quanto à inspiração de design, comecei com o design industrial e fui muito inspirado pelo design nórdico dos anos 50 e 60 também. Mas eu gosto muito do design automóvel e dos designers de carros dos anos 80. Com o Dominique Renaud, no primeiro projeto optámos por um design muito futurista.

O Disco Volante é motorizado por um movimento Peseux de corda manual | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O Disco Volante é motorizado por um movimento Peseux de corda manual | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Adoro linhas muito futuristas e esse é, por exemplo, o espírito do Disco Volante. Mas, com o Hamad, quisemos lançar a marca com um design clássico dos anos 40 e 50 porque adoramos o trabalho de François Borgel e o que ele fez para Patek, para a Movado, etc. E se pudéssemos ter conhecido François Borgel na época de hoje? Gostamos muito de contar histórias e contamos a história do Disco Volante com o movimento Peseux, que foi muito importante para a indústria suíça e que também deu origem ao grupo ETA. Redesenhamos o movimento e foi tudo finalizado à mão.

E quanto aos vossos fornecedores, está tudo a correr bem?

Temos os nossos fornecedores entre a Ásia, a Suíça e a França, mais a Itália para a s correias. Está tudo a funcionar bem e até nos têm feito entregas com antecedência. O mais recente cronógrafo mecaquartzo que lançamos, o verde, até foi entregue com antecedência — as primeiras mil peças foram distribuídas com um mês de antecedência!

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