O mundo aparenta estar completamente de regresso à normalidade após a pandemia, mas o cenário das feiras relojoeiras deixou de ser o mesmo. Na sequência de uma visita ao VO’Clock de Vicenza, aqui fica o ponto da situação e sugestões para eventos internacionais que merecem a visita dos aficionados.
Durante a pandemia e nos meses que se seguiram recorreu-se muito a uma expressão que foi marcante e que ficou para a posteridade. Falava-se então do ‘novo normal’. Três anos volvidos, não se pode dizer que o mundo vive numa normalidade sanitária distinta; nesse aspeto, estamos praticamente iguais aos tempos que se viviam antes da covid-19. No plano relojoeiro, quase se pode dizer o mesmo — embora as restrições na China devido ao vírus, que por lá se prolongaram durante muito mais tempo do que em qualquer outro lado, tenham provocado uma carência que travou significativamente a indústria durante dois anos. Afinal de contas, é na China que se produzem muitos dos componentes do setor, inclusivamente para a relojoaria suíça. Mas… como estamos de feiras relojoeiras?
Em Portugal, a habitual Portojóia decorreu no passado fim de semana — embora sem a representatividade no plano relojoeiro que chegou a ter no final da década de 90. O mais recente certame internacional teve lugar em Itália e decorreu à boleia da tradicional feira de joalharia Vicenzaoro, porque o VO’Clock foi mesmo pensado para ser um importante apêndice do mais importante evento joalheiro europeu, que se realiza de modo bienal (janeiro e setembro) em Vicenza.
Até ao final do ano haverá vários outros certames que qualquer aficionado que tenha disponibilidade, e queira mergulhar ainda mais na cultura relojoeira, deveria visitar. Aqui fica uma seleção que também inclui premiações e leilões:
- 20 a 21 de outubro, Praga: Salon Exceptional Watches
- 20 a 22 de outubro, Nova Iorque: NYC Windup Watch Fair
- 20 a 22 de outubro, Nova Iorque: WatchTime New York
- 30 de outubro, Varsóvia: Watch Of The Year 2023
- 3 a 4 de novembro, Genebra: Geneva Watch Auction XVIII (Phillips)
- 5 de novembro, Genebra: Important Watches (Sotheby’s)
- 5 de novembro, Genebra: Only Watch (acesso condicionado)
- 9 de novembro, Genebra: Grand Prix d’Horlogerie de Genève (acesso condicionado)
- 11 de novembro, Lisboa: Salão de Relojoaria Vintage – Tempo Passado
- 16 a 20 de novembro, Dubai: Dubai Watch Week
VO’Clock Privé e Vicenzaoro
A Vicenzaoro é a maior exposição europeia para a indústria joalheira e realiza-se duas vezes por ano; paralelamente a cada uma, tem lugar o VO’Clock Vintage (janeiro) e o VO’Clock Privé (setembro). A cultura relojoeira em Itália é grande — foi graças à influência dos então distribuidores italianos que o Reverso da Jaeger-LeCoultre sobreviveu e que o Royal Oak da Audemars Piguet nasceu. Foram os transalpinos a cultivar o gosto pelos clássicos do passado e a fomentar o negócio das leiloeiras, lançando a moda do vintage e do neo-rétro. E nas últimas duas décadas e meia começaram a ver-se cada vez mais italianos em lugares-chave (desde cargos diretivos ao sector criativo) para dar um novo brilho à anteriormente austera relojoaria suíça.
Tendo em conta toda essa influência na relojoaria, vale a pena observar como é encarado o fenómeno dos certames relojoeiros num país que viu muitos dos seus jovens, numa reação ao lançamento do Apple Watch, irem a correr pedir emprestado os velhos relógios mecânicos dos avós. Marco Carniello é o diretor do Italian Exhibition Group para o departamento de joalharia/relógios e deseja manter uma periodicidade bienal em Vicenza: «As feiras são um modelo de negócio muito antigo, mas o desaparecimento de Baselworld é definitivamente um caso de estudo com o qual temos de aprender para não se cometerem os mesmo erros. A minha referência é sobretudo a Dubai Watch Week; a entidade organizadora é da área dos negócios e a equipa está próxima do consumidor, o que significa que ouve o mercado e sabe o que é relevante e o que deixou de ser importante». A Dubai Watch Week trilhou o caminho dos eventos com uma essencial componente cultural, promovendo fóruns e debates com os mais relevantes líderes de opinião do setor.
«A ideia é dedicar o VO’Clock de janeiro ao vintage com o VO’Clock Vintage e o de setembro aos contemporâneos com o VO’Clock Privé, porque as marcas contemporâneas querem estar num evento mais próximo do Natal devido às vendas», diz o direttore Marco Carniello. «Este ano, tivemos as marcas modernas a exibir no mesmo piso da joalharia e depois um espaço próprio no primeiro andar para as marcas de maior prestígio e para os vários mestres da Académie Horlogère des Créateurs Indépendants, com um dos seus fundadores, Vincent Calabrese, à cabeça. É mais um espaço gerador de conteúdos do que de exibição comercial, complementado com seminários e cursos que contam também com o apoio da Féderation de la Haute Horlogerie». E acrescenta: «Queremos tornar os nossos eventos mais experienciais; se a experiência não for diferente, as pessoas ficam em casa. A parte educativa é muito importante e temos palestras para que os aficionados aprendam algo. A aprendizagem é um fator que tem de fazer parte dos eventos».
A Zenith, sob a batuta do CEO Julien Tornare, compreende isso muito bem — daí ter-se visto um mini atelier em que o responsável pelo setor vintage da marca, Romain Mazzilli, deu várias clínicas sobre o funcionamento do emblemático movimento El Primero. Ander Ugarte, responsável de design da Tudor, foi protagonista de uma palestra. E a diretora da revista l’Orologio, e ocasional cronista na Espiral do Tempo, Dody Giussani também promoveu debates sobre a ‘Italianidade na Relojoaria’ e o fenómeno do Octo Finissimo da Bulgari.
Entretanto, o (re)lançamento do primeiro movimento mecânico ‘Made in Italy’ no ano passado, com a chancela da Locman (a reinterpretação moderna do histórico calibre OISA 29-50 ‘Cinque Ponti’), foi este ano complementado com uma versão automática do mesmo movimento. A afirmação relojoeira não se cinge apenas ao estabelecimento de marcas — a produção de movimentos próprios é fundamental.
Conclusão
Concluída mais uma edição do VO’Clock e olhando para o cenário das feiras relojoeiras, a principal diferença relativamente ao período pré-pandemia prende-se com o desaparecimento da histórica Baselworld (que sobreviveu a guerras e a pandemias anteriores mas não à ganância dos seus organizadores) e o surgimento dos Geneva Watch Days. O principal evento do ano passou a ser o Watches and Wonders, sucedâneo do Salon International de la Haute Horlogerie e que, aparentemente, vai continuar a crescer e possivelmente aglutinará marcas que têm mostrado paralelamente as suas novidades em show rooms ou na Time to Watches (fala-se em mais oito marcas a curto prazo e 40 a médio prazo).
Infelizmente, e apesar da já tradicional Portojóia realizada anualmente em setembro, na Exponor, Portugal continua fora da rota dos eventos relojoeiros com algum impacto internacional.
Ultrapassada que está a crise sanitária que tão afetou o início da presente década, a pandemia veio provar dois ângulos diametralmente opostos: que é possível fazer apresentações on-line para uma audiência global e que esse enquadramento virtual só deu mais vontade às pessoas de participarem em eventos presenciais — e é por isso que eles continuarão a existir, independentemente do seu aparente anacronismo. Mas não é a relojoaria mecânica igualmente um delicioso anacronismo?