A evolução da indústria relojoeira: a opinião dos especialistas

Ao longo da história da humanidade, o fascínio pelo conceito da viagem no tempo foi-se exprimindo, primeiramente, através das artes plásticas; depois, da literatura, e, mais recentemente, do cinema. Back to the Future é considerada a mais popular obra cinematográfica do género, e a trilogia de filmes, com a narrativa a iniciar em 1985, abarca um alargado período entre 1885 e 2015 — precisamente, as balizas espácio-temporais que definem a relojoaria, desde o momento em que o relógio se tornou num objeto pessoal. Aqui ficam os marcos mais relevantes da odisseia espácio-temporal da relojoaria moderna desde o advento da película de Robert Zemeckis, em 1985, que serviu de inspiração para o número 68 da Espiral do Tempo.

Um dos mais interessantes conceitos relacionados com o tempo é a ideia da viagem transgeracional, presente no espírito humano desde que existe a perceção da temporalidade. O fascínio pelo conceito da viagem no tempo teve logicamente expressão nas artes, mas foi sobretudo popularizado através da televisão e do cinema – com séries de ficção científica a multiplicarem-se durante o período fundamental da conquista do espaço (sobretudo, entre as décadas de 60 e 70) e vários filmes a capturarem o imaginário coletivo. Back to the Future é considerada a mais popular longa-metragem do género, e foi lançado por Robert Zemeckis, em 1985, num momento crítico do relançamento da indústria relojoeira tradicional. A sequela surgiu há exatamente 30 anos, em 1989, e transporta os protagonistas para a segunda década do século XXI. A terceira e última película da trilogia estreou em 1990 e recua até 1885; em 1895, H. G. Wells escreveu a novela A Máquina do Tempo. O relógio é um objeto funcional peculiar cujo papel utilitário — o de indicar as horas — sempre se afigurou de importância fundamental na sociedade. Os progressos da técnica permitiram miniaturizar os grandes mecanismos dos relógios de edifícios (igrejas, edilidades) e transportá-los para as paredes ou mesas das habitações familiares; o tempo civil passou a tempo doméstico, que depois se tornou pessoal nos relógios de bolso dos homens e nas joias das mulheres, sobretudo na segunda metade do século XIX. O relógio de pulso acelerou este processo no século XX, com importantes convulsões na indústria relojoeira. Hoje em dia, na era da informação e da globalidade, o tempo está em todo o lado e a utilização do relógio é mesmo considerada, por muitos jovens, desnecessária; no entanto, o relógio afirma-se cada vez mais como um objeto de culto.

Nos corredores de Baselworld, a maior e mais antiga feira da indústria relojoeira. © Baselworld
Nos corredores de Baselworld, a maior e mais antiga feira da indústria relojoeira. © Baselworld

O ano 1969, ano da Odisseia no Espaço, é um dos mais extraordinários na história da relojoaria moderna e, em 2019, têm-se sucedido as celebrações das bodas de prata do cronógrafo automático e de vários modelos tornados ícones da indústria relojoeira; foi também um ano que já antecipou muito estilisticamente e tecnicamente o que seria passar na década de 70 — a proliferação de cronógrafos, a explosão de cor, o experimentalismo de formas, o quartzo e a crise que quase fez desaparecer a relojoaria mecânica com a profusão de modelos digitais. Quando Back to the Future estreou, em 1985, o ressurgimento da moda dos relógios analógicos com ponteiros tradicionais estava em curso através dos modelos de quartzo da Swatch, e a Suíça despertava para a ressurreição da relojoaria mecânica.

A Espiral do Tempo deu os seus primeiros passos em 1999. Primeiro, numa fase embrionária e em formato menor. Acompanhámos os grandes desenvolvimentos da indústria na viragem do milénio e fizemos muitos amigos — alguns dos quais prestaram-nos o seu testemunho relativamente à evolução dos tempos e das mentalidades ao longo das últimas décadas. Depois de termos publicado online o testemunho de Denis Flageollet, aqui ficam mais cinco testemunhos de áreas diferentes.

Dody Giussani (engenheira, jornalista, editora da revista L’Orologio)

Dody Giussani © DR
Dody Giussani © DR

Em 1985, o primeiro empurrão dado à indústria relojoeira foi proporcionado pelos Swatch de Nicholas Hayek. Uma abordagem completamente nova à relojoaria Swiss Made: com estilo, na moda, barato, mas não estandardizado como os relógios japoneses de quartzo. Depois da Swatch, nada mais foi o mesmo. Um bom relógio deixou de ser um bom acessório que todos precisavam para se tornar num status symbol. A Itália teve um papel muito importante em ambos os processos. A febre da Swatch nasceu em solo italiano e, ao mesmo tempo, o facto de Gianni Agnelli usar um Royal Oak sobre o punho da sua camisa deu início ao grande sucesso do modelo. Tecnicamente, Daniel Roth, ao colocar pela primeira vez a caixa de um turbilhão no lado do mostrador, estabeleceu um marco na história contemporânea da relojoaria suíça; os turbilhões modernos não existiriam se não fosse a intuição de Daniel Roth. Grandes passos rumo à definição de uma nova abordagem à relojoaria complicada foram dados pela Ulysse Nardin, começando com a Trilogia do Tempo de índole astronómica e seguidamente com o Perpetual Ludwig, com uma arquitetura de movimento que inspirou muitos calendários perpétuos modernos. Outro marco relevante foi o Da Vinci, da IWC; o primeiro cronógrafo com calendário perpétuo dotado de ponteiros centrais para o cronógrafo e horas/minutos; gerou um novo tipo de complicação e o seu criador, no plano do marketing, foi Günther Blümlein, um Deus ex machina da relojoaria que, há 25 anos, recuperou a marca A. Lange & Söhne juntamente com Walter Lange, numa das mais emocionantes páginas da história relojoeira. O século XXI transformou as marcas de relógios em marcas de luxo, no seguimento de da aquisição de históricas casas suíças por parte de conglomerados de luxo. Liderando o crescimento e o sucesso de marcas tradicionais num dos mais poderosos grupos, o LVMH, esteve um homem que pertenceu aos anos pioneiros da relojoaria moderna: Jean-Claude Biver. O homem que, na década de 80, recriou a Blancpain dizendo que «nunca houve um relógio de quartzo Blancpain e nunca haverá» é o mesmo que relançou a Hublot e investiu dinheiro na tecnologia inteligente para relógios de luxo. E estamos de regresso ao futuro!

Günter Blümlein, Walter Lange e Hartmut Knothe na apresentação dos primeiros quatro relógios de pulso criados pela renascida A. Lange & Söhne em 1994. Os quatro modelos históricos comemoram 25 anos em 2019. © A. Lange & Söhne
Günter Blümlein, Walter Lange e Hartmut Knothe na apresentação dos primeiros quatro relógios de pulso criados pela renascida A. Lange & Söhne em 1994. Os quatro modelos históricos comemoram 25 anos em 2019. © A. Lange & Söhne

Jack Heuer (presidente honorário da TAG Heuer)

Jack Heuer © DR
Jack Heuer © DR

O que mais me surpreendeu ao longo de todos estes anos foi constatar que estava errado no meu julgamento quanto ao sucesso absoluto do relógio de quartzo, porque vivi num período em que se lutava constantemente pela precisão, e enfrentávamos problemas e constantes queixas em relação à precisão de relógios mecânicos que apresentavam diferenças de dez segundos por dia. Um minuto de diferença por semana num relógio mecânico era basicamente muito bom. Os relógios de quartzo vieram mostrar que era possível uma precisão de dois segundos por mês. E pensei: aí está o futuro. Deixei a indústria relojoeira na década de 80 do século XX, quando o mundo da relojoaria tradicional se desmoronou e o mercado de preços mais acessíveis desapareceu completamente da Suíça. Convém não esquecer que, em 1975, a Suíça tinha uma quota de mercado na ordem dos 25% ou 30% do mercado relojoeiro, a nível mundial, com 200 ou 300 milhões de relógios. Hoje, a Suíça concebe cerca de 25 milhões, o que é menos de 2% das necessidades mundiais; desses, apenas cinco ou seis milhões são relógios mecânicos — menos de 1%. A indústria relojoeira suíça mudou-se para um segmento muito especial que é o mercado relojoeiro de gama alta; foram precisos cerca de 15 a 20 anos para estabelecer a indústria a esse nível exclusivo, um segmento relativamente pequeno, se encarado ao nível da indústria mundial. O Japão também tentou entrar no segmento da indústria da relojoaria de luxo e nunca o conseguiu. As marcas suíças que sobreviveram durante o período de crise no final dos anos 70 e início dos anos 80 foram as mais antigas,  como a Audemars Piguet ou a Patek Philippe, e poucas marcas mais novas sobreviveram, como a Rolex, porque foram particularmente inteligentes e porque tinham uma estrutura de fundação específica, numa altura em que o financiamento estava muito forte. Recordo-me bem desses anos turbulentos, porque eu próprio perdi a minha empresa na altura. Muitos foram os donos de companhias que as perderam, muitas companhias familiares, como a Longines ou a Breitling. Foram necessários entre 10 e 20 anos para reestruturar toda a indústria relojoeira suíça. Hoje, está muito saudável e é muito mais rentável do que costumava ser, porque os mercados funcionam muito melhor. No meu tempo, uma marca relojoeira investiria, em média, cerca de 5% em marketing e publicidade; hoje, estamos no mundo da indústria de luxo e investe-se três ou quatro vezes mais, e é por isso que, se eventualmente se verifica alguma recessão, a indústria relojoeira sobrevive relativamente bem.

Em 2012 e 2013 a TAG Heuer lançou os modelos TAG Heuer Carrera Jack Heuer Edition. © TAG Heuer
Em 2012 e 2013 a TAG Heuer lançou os modelos TAG Heuer Carrera Jack Heuer Edition. © TAG Heuer

Certamente que o relógio de pulso tradicional continuará na lista de objetos de culto das classes média e alta. Curiosamente, passei toda a minha vida a lutar pela conceção de relógios cada vez mais precisos, porque, no meu tempo, na indústria relojoeira, as pessoas queixar-se-iam, de certeza, caso perdessem o início de um programa televisivo por terem o relógio atrasado um minuto que fosse. Hoje, já ninguém se queixa da precisão de um relógio mecânico. Estamos, constantemente, rodeados por indicações exatas do tempo — no computador, no telefone, na televisão. Se no meu tempo a precisão era o fator mais importante num relógio, atualmente, deixou de ser o critério fundamental. O relógio mecânico é hoje uma expressão da nossa personalidade, é dos poucos acessórios masculinos que distingue o nosso status e está mesmo a tornar-se um símbolo do status e uma expressão de personalidade. E, nesse sentido, o uso de relógio de prestígio continuará a aumentar porque a classe média-alta, que tem hoje a possibilidade de adquirir mais do que um bom relógio, está também a aumentar mundialmente, porque cada geração tem a ambição de tornar a próxima uma geração melhor; esse é o segmento de mercado que está realmente a crescer. Em suma: na minha perspetiva, o desenvolvimento não vai parar, embora a precisão tenha deixado de ser o critério-chave dos dias de hoje — o estilo, o design e a expressão da tecnologia são fatores essenciais na hora de tomar decisões. O relógio mecânico tornou-se num status symbol, uma expressão da personalidade, e esse lado manter-se-á; o mais importante num relógio mecânico já não é a precisão: é o visual, o design, a tecnologia, a fidelidade à marca.

João Carlos Torres (administrador da Torres Joalheiros)

João Carlos Torres © DR
João Carlos Torres © DR

Se há algo que evoluiu nestes últimos 30 anos no mundo da relojoaria, foi, acima de tudo, o acesso à informação. Hoje em dia, as pessoas estão muito mais informadas, os clientes entusiasmam-se pela força do que descobrem nos meios tão variados a que hoje têm acesso, e, quando chegam até nós, sabem especificamente aquilo que procuram: conhecem preços, sabem a história e fazem comparações. O acesso à informação tornou os clientes ainda mais exigentes. Por outro lado, já no que diz respeito ao tipo de peças que procuram especificamente, posso afirmar que tudo tem a ver com tendências e com ciclos. Nos anos 80, assistimos à fragilização da relojoaria mecânica, muito pela influência da tecnologia vencedora que o quartzo representou; mas também se viu que os apaixonados pela relojoaria mecânica e pela alta-relojoaria foram permanecendo fiéis e mantendo o seu interesse. Aos poucos, o renascimento do lado mecânico foi-se fazendo notar, com uma variedade de peças no plano técnico e das complicações cada vez mais criativa, com o aparecimento de relógios de maiores dimensões, com a gradual instituição de modelos inspirados no passado das próprias marcas e com a aposta em materiais cada vez mais variados e inovadores. Interessante ainda é assistir ao modo como tudo hoje se move. As novas gerações revelam entusiasmo — mesmo com o regresso de uma nova ameaça, como o poderiam eventualmente ser os smartwatches — e verifica-se um verdadeiro cruzamento de tendências. Os relógios passaram a ter um significado que antes estava confinado apenas à pessoa que o detinha. As histórias que estão por trás dos relógios dão-lhes relevância, e vemos como a força crescente do mercado vintage potencia também a procura de relógios atuais. Hoje tudo se move, tudo muda e tudo se sabe mais rapidamente.

O Rolex Sea-Dweller apresentado pela Rolex em Baselworld 2019. © Paulo Pires/Espiral do Tempo
O Rolex Sea-Dweller apresentado pela Rolex em Baselworld 2019. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

José Carlos Saldanha, especialista em relógios de coleção

José Carlos Saldanha © DR
José Carlos Saldanha © DR

Tendo em conta o tema desta edição (Regresso ao Futuro) e, simultaneamente, enquadrando-me como expert de relógios de coleção, mas propriamente os relógios vintage, entendo e vejo este mundo como estando sempre num constante movimento e evolução. Sendo assim, no meu caso, terei de vos fazer viajar no tempo, mas uma viagem ao passado. Faz mais de 30 anos que este mundo me fascina e, tal como acontece com os meus clientes, não são as peças em si, mas toda uma envolvência, nomeadamente, as histórias a que se associa, a época a que correspondem, por onde passaram — enfim, até onde a nossa imaginação nos possa transportar. Hoje em dia, estes objetos já não são apenas vistos como objetos de culto por parte de quem os adquire. Nas duas últimas décadas, o negócio deixou de estar confinado apenas aos dealers e pequenos estabelecimentos dedicados a este mercado, passando-se a observar a existência de cada vez mais casas leiloeiras especializadas no negócio, e é aqui que podemos perceber o quanto o marketing e as novas tecnologias catapultaram os relógios vintage (e não só) para um patamar por nós nunca imaginável. Por outro lado, o nível de exigência por parte dos colecionadores e investigadores é cada vez maior em consequência da informação e fóruns da especialidade que abundam nas redes sociais e na Internet em geral. O espírito que move esta franja da sociedade, cada vez mais dilatada, prende-se pelo fascínio de marcar pela diferença e transmite aquilo que carateriza um verdadeiro colecionador. Além disso, como qualquer bem tangível, este mundo é cada vez mais encarado como uma forma segura de acautelar quem aqui investe os seus capitais.

Leilão da Sotheby’s. © Sotheby’s
Leilão da Sotheby’s. © Sotheby’s

Para finalizar, não queria deixar de realçar a importância que o espírito do colecionismo aqui assume, a ponto de as marcas com tradição começarem a apresentar nas suas coleções as reedições dos modelos antigos, bem como séries limitadas e comemorativas, conferindo um espaço dedicado e direcionado a um público específico e reconhecendo o quanto pode ser relevante na sua faturação. Tal opção faz mesmo gerar uma procura muito maior por parte desta nova geração de colecionadores. E, desta forma, abre-se mais uma janela para o futuro….

Maximilian Büsser (fundador da MB&F)

Maximilian Büsser © DR
Maximilian Büsser © DR

O meu primeiro emprego no mundo da relojoaria foi como product manager na Jaeger-LeCoultre, em 1991, acabadinho de sair da universidade de engenharia. Foi uma altura maravilhosa para a indústria relojoeira: não havia mercado, não havia clientes, não havia dinheiro, não havia glamour, não havia celebridades, não havia influencers. Éramos todos uns pobres lunáticos apaixonados por algo a que ninguém ligava. E porque eram belos tempos? Porque éramos uns maluquinhos a falar com maluquinhos, defendendo o que parecia indefensável: humanidade, beleza, artesanato, educação, a preservação e transmissão de conhecimento perdido. Tudo a fazer eco no mesmo comprimento de onda: bela relojoaria mecânica artesanal. Trinta anos depois, muitas pessoas que trabalham na indústria não querem tanto saber dessa relojoaria fina e, infelizmente, muitos dos seus clientes também não. O resultado disso pode ser visto em todos os domínios. Muitas vezes, parece que nós e alguns dos nossos amigos artesãos vivemos na aldeia do Asterix no meio do Império Romano. A nossa poção mágica consiste em coragem, amor e insanidade. Trinta anos depois, uma estranha sensação de déjà vu

T-REX © MB&F
T-REX © MB&F

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