A De Bethune é uma das mais extraordinárias marcas de alta relojoaria nascidas no novo milénio e tem por co-fundador e responsável técnico Denis Flageollet, um mestre relojoeiro formado em ciência e micro-engenharia com uma visão especialmente criativa e inovadora do universo da relojoaria mecânica. Neste artigo de opinião, ele dá-nos a sua visão sobre a evolução da indústria ao longo das últimas décadas — desde que o quartzo quase deitava tudo a perder até às vicissitudes atuais do mercado. Um texto na primeira pessoa a não perder!
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A edição da Espiral do Tempo que está prestes a ir para as bancas aborda a temática ‘Back to the Future’ inspirada no famoso filme de Robert Zemeckis com o mesmo nome — e, numa abordagem ao que de mais importante se passou no universo relojoeiro entre o lançamento da película protagonizada por Michael J. Fox e a atualidade, pedimos a algumas grandes personalidades para efetuarem uma viagem no tempo e fazerem a ponte entre esses tempos idos da década de 80 (que ainda refletiam a crise da relojoaria da década de 70) e o presente. Denis Flageollet prestou-nos um duro e poderoso testemunho pessoal, o que não é de admirar tendo em conta o seu conhecido hábito de defender intransigentemente os mais puros ideais da relojoaria tradicional.
Denis Flageollet é filho, neto e bisneto de relojoeiros. Para além de estudos científicos e de micro-engenharia, também se especializou em relojoaria antiga no Musée du Locle; em 1989, fundou a sociedade THA com François-Paul Journe e Vianney Halter para desenvolver calibres para diferentes marcas de destaque e trabalhou nas áreas de pesquisa e desenvolvimento. Em 2002, fundou a manufatura independente De Bethune com David Zanetta e lançou a alta-relojoaria para uma nova esfera graças a fascinantes criações que se podem apelidar de retrofuturistas. A De Bethune, que atualmente dirige na companhia do CEO Pierre Jacques, apresenta uma fascinante estética que a torna incomparável e tem coleccionado patentes no plano da inovação; a combinação dessas duas vertentes já lhe granjeou múltiplos prémios, incluindo a Aiguille d’Or (o galardão máximo) no Grand Prix d’Horlogerie de Genève. A edição número 68 da Espiral do Tempo fala mais especificamente sobre a marca em si, mas aqui fica a implacável opinião de Denis Flageollet sobre a evolução global da indústria relojoeira nas últimas três décadas e meia.
O testemunho de Denis Flageollet:
“A travessia do deserto da relojoaria mecânica face à supremacia japonesa do quartzo foi uma época na qual vivi uma parte importante na história da relojoaria suíça. No início dos anos 80, os bancos das escolas de relojoaria foram desertados pelos estudantes. A crise do início dos anos 70 tinha-se feito sentir e já não valia a pena investir no ramo. Os ateliers das manufaturas, outrora ocupados por centenas de trabalhadores, estavam vazios. O único futuro no ofício de relojoeiro mecânico parecia ser o da manutenção e restauro de modelos antigos. Felizmente, houve grandes profissionais dessa relojoaria suíça abandonada, apaixonados e motivados em transmitir a sua experiência, que souberam abrir as portas do futuro da relojoaria mecânica, apesar de um discurso carregado de nostalgia. Ainda não se falava de tecnologias modernas à disposição de uma cultura relojoeira do passado, mas havia já no meu espírito a ideia de aprender e compreender as técnicas ancestrais para adquirir bases sólidas e ter a liberdade de fazer e de criar. Foi uma era incrível, na qual — apesar de momentos dolorosos para alguns dos mais velhos — a perseverança prevaleceu sobre o mal-estar da indústria. Foi também o arranque de uma nova área da relojoaria mecânica onde os relojoeiros acreditaram no seu ofício e se dispuseram a reinventá-lo, surgindo talentos de elevado gabarito.
Peça após peça, mecanismo após mecanismo, relógio após relógio, ano após ano, esse embrião da relojoaria mecânica desenvolveu-se, reorganizou-se e alargou-se até ao ponto em que os mestres relojoeiros perderam o controlo. Primeiro, suplantados por engenheiros industriais cujo mote é a rentabilidade; depois, por financeiros muito afastados da sensibilidade das ideias de origem. Após ter trabalhado com desenhadores de arte que buscavam apenas dar um sentido estético e útil às peças, vi chegar uma esmagadora maioria de designers regidos pelo marketing. Já não se tratava de criar relógios cuja função original seria a de dar a indicação do tempo num invólucro confortável e agradável de se ver, mas de conceber objetos de tendência ligados à moda e ao mercado, ao mesmo tempo que perdiam o essencial.
Conseguir sobreviver e desenvolver-me como artesão no meio dessa plêiade de novos agentes foi, para mim, uma espécie de travessia de um incrível labirinto, onde foi necessário não só salvaguardar, mas também alimentar a minha alma de artesão, enquanto me adaptava ao sistema, tendo o objetivo de preservar parcelas de liberdade e autenticidade; prestar homenagem a essa herança relojoeira única no mundo. Um savoir-faire que faz parte de uma mecânica de arte que, ao longo de mais de quatro séculos e meio, fez transpirar os mais brilhantes cérebros, de Galileu a Charles Edouard Guillaume, e fez sonhar as maiores figuras do Planeta, de Louis XIV a Churchill. Procurar um fio de Ariana invisível balizado somente em algumas evidências. Concentrei-me em ver a inovação como principal tradição relojoeira. Pergunto-me constantemente o que os génios da mecânica teriam feito se dispusessem das técnicas e dos materiais modernos.
O relojoeiro independente, se quiser dar-se a conhecer, demarcar-se e sobreviver num microcosmos relojoeiro extremamente competitivo, deve propor objetos inovadores com um nível de qualidade e de acabamento excecional, o que implica que seja uma locomotiva para o resto da indústria. Será mesmo o único meio de gozar a sua independência, o resto terá a ver com obrigações ditadas pela sua vontade de sobreviver num sistema económico sem escrúpulos onde o mais pequeno contratempo pode ser fatal. A proteção intelectual do independente torna-se um quebra-cabeças.
Para se ser reconhecido é preciso não só fazer produtos virtuosos e inovadores, mas também saber comunicar a qualidade do trabalho. Parece simples. Infelizmente, na última década, os serviços de comunicação dos grandes grupos usaram e abusaram de tal modo de qualificativos eufóricos para descrever os seus pobres produtos com o apoio de meios colossais que, aos olhos do público, esses grandes nomes é que representam a nata da relojoaria. Nesse contexto, é difícil para uma manufatura independente fazer valer sem equívocos a qualidade do seu trabalho e a excelência das suas criações. Os grandes grupos apregoam a autenticidade e contam belas histórias que não são consistentes. Explicam que têm gabinetes de pesquisa extraordinários que necessitam de anos para desenvolver calibres que muitas vezes são inspirados em novos produtos que não lhes pertencem ou em técnicas antigas bem conhecidas dos profissionais do setor. Também se aproveitam dos métiers d’art apropriando-se do savoir-faire de artistas que gastaram uma energia louca para dominar a sua própria especialidade. No meio de todo este ignóbil cenário, deixa de haver espaço para explicar a autenticidade de produto e revelar o seu caráter excecional. É para mim um desalento, consolo-me dizendo-me que as criações excecionais serão reconhecidas com o tempo. Que leve uma dezena ou uma centena de anos, a excelência e a beleza serão descobertas, apreciadas e transmitidas por pessoas sensíveis e imparciais.
Atualmente motivadas por um mercado internacional em constante mutação e cuja compreensão lhes escapa e pressionadas por uma programação imediata, muitas marcas são responsáveis pelo declínio da qualidade dos produtos relojoeiros. Forçam continuamente os criadores a propor novidades, os construtores a realizá-las o mais depressa possível e a produção a concluí-los antes de os começar. Protótipos mal-amanhados são apresentados nos salões cuja dinâmica algo perversa, plebiscitando a criação, condiciona a entrada no mercado de produtos não fiabilizados e inunda os canais de distribuição já saturados. Os excedentes são comprados pelas próprias marcas para evitar descontos pouco aconselháveis e a passagem dos stocks ao mercado paralelo que seria prejudicial à marca e aos produtos ditos de luxo.
Essa política irresponsável conduz insidiosamente, crise após crise, a uma depreciação geral da relojoaria suíça. Seria mais são e benéfico para o conjunto da relojoaria controlar e restringir a oferta de novos produtos. Os construtores teriam tempo de fiabilizar as novidades, a produção melhoraria a sua produtividade, os serviços comerciais das grandes marcas evitariam recomprar stocks. Essa inversão melhoraria a qualidade, causaria menos desgaste aos empregados do setor e as suas famílias ficariam menos expostas às flutuações, acelerações e desacelerações de produção devido a crises resultantes em grande parte de uma gestão incoerente dos CEO e dessa espiral imposta pelas equipas de marketing e comerciais. A meu ver, é certo que os resultados globais seriam melhores e que o conjunto da relojoaria se dinamizaria mais serenamente. Infelizmente, enquanto os conselhos de administração não se convencerem disso, o egoísmo e a inconsciência da parte dos dirigentes da relojoaria manter-se-á uma barreira inultrapassável para essa quebra. Será necessário atravessar uma crise sem precedentes ou mais profunda para que estejam mais atentos ao declínio de uma indústria de savoir-faire excecional que eles administram?
A melhoria da qualidade dos produtos propostos foi certamente o objetivo mais interessante destes últimos 30 anos. A qualidade dos produtos propostos e a fiabilidade dos produtos é relativamente bem gerida pelos fornecedores e pelas marcas, porque se trata de um assunto de técnicos. Mas a impaciência das direções na obtenção de novidades impede os criadores e os técnicos de trabalhar seriamente nos relógios para as elevar ao nível do savoir-faire e da qualidade que nos transmitiram os anciãos. É raro, quase impossível, encontrar numa marca histórica uma criação recente que iguale, no seu acabamento e na sua estética, a qualidade das peças realizadas numa altura em que a marca ganhou credenciais nobres, antes da crise do quartzo. Os relojoeiros que, pelas suas proezas, contribuíram para o conhecimento e evolução da humanidade, agora têm o papel de fazer perdurar um espaço de sonho e encantamento. Façamo-lo no respeito pelo que nos transmitiram os antigos e, no que diz respeito ao mundo, acaba por ser o único futuro aceitável”.
Leia mais testemunhos sobre a evoluçã0 da relojoaria nas últimas três décadas ao longo das próximas semanas aqui no nosso website e na edição de outono 2019 da Espiral do Tempo. Em breve nas bancas.
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