A cumprir o seu 22.º aniversário, a De Bethune é uma das mais extraordinárias marcas de alta-relojoaria lançadas no presente milénio. É também uma das menos conhecidas do grande público e mesmo dos aficionados regulares. Aqui fica o retrato de uma manufatura verdadeiramente singular — assente num conceito técnico e estético que já lhe valeu múltiplos galardões e um culto de seguidores muito especial.
A De Bethune cumpre este ano o seu 22º aniversário, mas permanece uma marca ainda pouco conhecida em Portugal e sem pontos de venda no nosso país. Mas está na linha da frente do que melhor se faz na alta relojoaria e assenta num conceito verdadeiramente inovador que justifica o lema ‘arte relojoeira no século XXI’. Mas, para melhor explicar o advento da De Bethune ou a sua história de revolução e evolução, convém regressar ao final do século XX.
O renascimento da relojoaria tradicional, processado em grande força sobretudo a partir da década de 90, estabeleceu uma nova realidade na história da indústria relojoeira: os relógios mecânicos passaram a ser objetos de culto, ao passo que antes dos modelos de quartzo eram sobretudo referências de precisão. Com essa mudança estrutural e a glorificação da relojoaria mecânica enquanto arte abriu-se uma nova perspetiva de negócio. Ser relojoeiro voltou a estar na moda, foram inaugurados ateliers de especialidades mecânicas, as marcas com maiores pretensões de legitimidade investiram em movimentos de manufatura, as históricas casas relojoeiras concretizaram uma verticalização quase total da sua produção e começaram a nascer marcas contemporâneas que alargaram drasticamente a oferta perante uma crescente procura — e, nos últimos vinte anos, a relojoaria de prestígio tem-se declinado cada vez mais em dois campos bem distintos: o das históricas manufaturas tradicionais e o das emergentes marcas independentes, como a De Bethune.
O mestre Denis Flageollet e o colecionador David Zanetta fundaram a marca há 22 anos na pequena localidade de La Chaux L’ Auberson, a dois quilómetros da fronteira francesa e não muito longe do Lago Neuchâtel. Denis Flageollet — que é filho, neto e bisneto de um relojoeiro — já se tinha distinguido no atelier de especialidades mecânicas THA (Techniques Horlogères Apliquées) que tinha juntamente com François-Paul Journe e Vianney Halter. Na De Bethune, procurou desde logo impor um design de ponta com o recurso a materiais vanguardistas, tornando-se pioneiro no desenvolvimento de espirais de silício em busca de maior precisão e também experimentando inovadores sistemas de proteção de choques.
O facto de a maior parte das marcas estar dependente de escapes disponibilizados pela Nivarox fez com que a De Bethune se lançasse no sonho de unir a visão técnica e estética dos fundadores — aguçando a arte e o engenho em busca de novas soluções normalmente apelidadas de anticonformistas, conceptuais ou mesmo radicais.
Sob a batuta do génio científico de Denis Flageollet, a De Bethune introduziu uma inovadora roda do balanço em titânio com pesos ajustáveis e fez evoluir o seu design combinando-o com uma espiral de terminal curvo original de espessura variável confecionada numa matéria sigilosa. No plano estético, a marca estreou as caixas em titânio de grau 5 com polimento espelhado e também com acabamento azulado através de um complexo processo térmico — o objetivo inicial era funcional, mas tornou-se depois numa imagem de marca da De Bethune, juntamente com as ‘asas flutuantes’ em determinados modelos e a emblemática lua esférica.
A coleção atual divide-se sobretudo entre a linha mais clássica DB25 e a mais contemporânea DB28, complementadas pela excecional e reversível DB Kind Of Two, pela DB Eight, pela DB 27, pela DB 29 e pela DBD — dando todas, umas mais do que outras, a tal ideia de modernismo e até mesmo retrofuturismo inerente a soluções estéticas que são completamente originais mas que de algum modo recordam um passado que se calhar nem existiu e um futuro que talvez nem venha a existir. E depois há uma coleção conceptual paralela intitulada ‘Dream Watch’, formada por extraordinárias esculturas para o pulso e de inspiração espacial.
Na coleção regular, a linha DB28 de pendor futurista engloba a maior parte das inovações técnicas estabelecidas pela marca, como o balanço em silício, a espiral própria com curva terminal patenteada, o sistema triplo de antichoque, as asas flutuantes e a emblemática indicação 3D de fases da lua a partir de uma esfera de paládio e aço temperado/revenido a azul. «A lua tornou-se num exemplo de beleza em si mesmo», refere Denis Flageollet, um dos raros mestres vivos capazes de projetar, fabricar, montar e ajustar um relógio inteiro com as suas próprias mãos; «mesmo que tudo na De Bethune tenha de ser funcional, apesar de o primeiro objetivo ser o de criar emoção». Como sucede com os já famosos mostradores estrelados ou o uso de meteorito.
Também os turbilhões ultraleves de 30 segundos da De Bethune apresentam as suas idiossincrasias, sendo mais imunes ao choque e com uma frequência de 5Hz. A oferta cronográfica tinha igualmente de ser excecional: o Maxichrono apresentou um ‘sistema total de embraiagem’ patenteado pela de Bethune em 2015 e autónomo do resto do movimento. «Desde o início que queríamos fazer algo que estava a faltar na relojoaria e que ajudasse a prolongar a bela história da arte relojoeira. Nada do que fazemos se afasta do objetivo da performance, mas o que fazemos expressa-se sempre de uma maneira que é poética e estética. Para mim, isso é o que faz das nossas criações simultaneamente relógios de precisão e objetos de arte», sublinha Denis Flageollet.
Desde a sua fundação e em pouco mais de duas dezenas de anos, a De Bethune já desenvolveu nada menos que 31 calibres para uma restrita produção total à volta de 3.500 exemplares, apresentou cerca de 30 estreias mundiais e registou um grande número de patentes, bem como produziu 230 peças únicas destinados a satisfazer pedidos especiais dos mais exigentes colecionadores. Para além disso, recebeu as mais altas distinções concedidas pela indústria relojoeira em todo o mundo, incluindo o galardão máximo no Grand Prix d’Horlogerie de Genève (o ‘Aiguille d’Or’) para o melhor relógio do ano.
Entretanto, David Zanetta reformou-se e, hoje em dia, os destinos da marca estão a cargo do cofundador e responsável técnico Denis Flageollet, o CEO Pierre Jacques e Justin Reis — um empresário norte-americano de remota origem portuguesa ligado à 1916 Company (que inclui a WatchBox). O estilo puro mas inovador e as linhas limpas mas originais representam a marca inimitável das criações De Bethune; o lema permanece o mesmo: ‘Não fazer mais, mas fazer melhor’. O impressionante número de prémios que tem acumulado prova a justeza do mote.
Apesar do tal estilo futurista, a De Bethune perpetua o trabalho dos grandes mestres relojoeiros do século XVIII na sua busca pela medição do tempo perfeita, apoiada por um sentido de beleza estética que não tem comparação. Aproveitando descobertas científicas e tecnológicas de ponta, o esforço de Dennis Flageollet tem-se centrado em inventar soluções únicas, inovadoras e de alto desempenho. Não fazendo mais, mas sim fazendo melhor; inspirando-se no passado para reinventá-lo perpetuamente através de novos códigos estéticos e criar pontes com outras áreas do conhecimento.
São esses os princípios que guiam a De Bethune no desenvolvimento de mecanismos relojoeiros e na expressão da criatividade artística. Uma interpretação disruptiva da arte relojoeira que a De Bethune define como ‘arte relojoeira do século XXI’.
Criatividade sem restrições
O estabelecimento da De Bethune assentou em dois princípios: total liberdade criativa e independência dos meios mecânicos que a suportam. «Criamos a marca como um quadro em branco, com a vontade de fazer as coisas à nossa maneira, como quisermos, de forma artesanal e com os nossos próprios calibres mecânicos», afirma Denis Flageollet.
Pierre Jacques, antigo jornalista especializado em relojoaria e CEO desde 2016, resume o posicionamento: «Somos a maior das pequenas marcas, o menor dos grandes fabricantes». A unidade de produção de L’Auberson garante toda a fabricação de relógios, excetuando componentes como os vidros de safira e as correias. Uma autonomia alinhada com o espírito relojoeiro de Denis Flageollet, que entretanto incentivou a aquisição da lendária vizinha manufatura de caixas musicais Reuge.
Se a chave do sucesso é a diferença, então De Bethune sempre a teve sob controlo. Porque o design bem identificativo sempre foi um dos pontos fortes da marca, independentemente das tendências. «O que criamos é atípico, disruptivo, diferente. Apresentamos regularmente OVNIs», brinca Pierre Jacques. A companhia de L’ Auberson foi uma das primeiras a dispensar completamente os mostradores para exibir frontalmente movimentos com arquitetura única, adornados com acabamentos de superfície excecionais através de Côtes De Bethune e gravação Microlight. Também patenteou um notável sistema de asas flutuantes que se adaptam automaticamente à curvatura de todos os pulsos — tornando possível adaptar relógios grandes a pulsos pequenos.
A busca pela ergonomia reflete-se igualmente na criação de formatos inusitados, como os da série Dream Watch. A exploração de temas exóticos levou ao uso de meteoritos maciços para criar caixas ou mostradores de relógios, mostradores em baixo-relevo representando o calendário asteca, luas esféricas em vez das habitualmente planas, um turbilhão triplo mais leve e duas vezes mais rápido que todos os outros, um sistema de para-choques triplo assente em molas que permite aos tenistas embaixadores da marca Tommy Paul (top 15) e Jessica Pegula (top 5) competirem de relógio no pulso.
A lista de invenções da De Bethune é longa e variada, mas sustentada por três premissas: a primeira é a criação de movimentos, num total que já ultrapassa as três dezenas em 22 anos, mais do que a maioria das grandes marcas; a segunda é uma ciência consumada do acabamento que torna os relógios polidos sem comparação, embora as caixas sejam feitas principalmente de titânio, um material que ninguém mais se atreve a polir; a terceira é o azulamento de componentes com chama, fazendo com que o aço oxide e ganhe a típica tonalidade azulada de subtis nuances que deleitam os maiores conhecedores.
A capacidade de produção gira em torno de 220 peças excecionais por ano. Uma produção muito restrita que se faz pagar pela superlatividade: os preços começam nos 50.000 euros e podem chegar ao meio milhão, como sucede no caso do DB Kind of Two Grande Complication — que junta os dois estilos principais da marca numa caixa reversível que apresenta um calendário perpétuo com mostrador estrelado de um lado e um turbilhão com a emblemática ponte futurística do outro.
A De Bethune insere-se num nível estratosférico partilhado apenas por outras celebradas marcas independentes de alta-relojoaria do presente milénio como a Richard Mille, a Urwerk (cujas raízes até remontam ao final da década de 90) e a MB&F. Mas a sua identidade e o seu carisma são mesmo ímpares — e para um melhor conhecimento da marca vale mesmo a pena adquirir o excelente livro publicado pela editora Assouline ou ver o filme dedicado ao seu 20.º aniversário.