GPHG 2024: rescaldo dos Óscares da Relojoaria e o Português protagonista

Foi uma 24.ª edição do Grand Prix d’Horlogerie de Genève (GPHG 2024) especialmente internacional, com prémios a saírem para seis países diferentes, protagonismo muito especial para um certo Português, a questão da língua oficial e várias outras peripécias dignas de destaque — para além dos relógios, evidentemente. Aqui fica um rescaldo na primeira pessoa.

A sala estava mesmo a abarrotar. O Grand Prix d’Horlogerie de Genève tem vindo a suscitar cada vez mais interesse e quase toda a gente quer estar presente; desta feita, 1480 convidados — a grande maioria players da indústria, entre CEOs, diretores, jornalistas, influencers, relojoeiros — lotaram o Théâtre du Léman de tal modo que muita gente teve de se sentar nas escadas. E só não esteve toda a gente presente porque ainda há responsáveis de companhias importantes (Rolex, Patek Philippe, F.P. Journe, Richard Mille, Swatch Goup, várias marcas do grupo Richemont) que escolhem não entrar em compita por uma razão ou outra, sendo aparentemente a principal o receio de não ganhar e a menos importante o desacordo relativamente às regras do concurso. E o GPHG é diferente dos restantes certames de Relógio do Ano porque as marcas têm precisamente a responsabilidade de submeter os seus relógios a concurso, em vez da nomeação feita pelos membros do júri ou votação popular via internet que acontece nos restantes concursos.

GPHG A pose dos vencedores no final da cerimónia | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
A foto de família e a pose dos vencedores no final da cerimónia | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

De qualquer das formas, não há qualquer outro concurso de Relógio do Ano com o pedigree do GPHG — e, a partir da sugestão dos membros da Academia e da inscrição feita pelas marcas, o processo é de uma lisura absoluta no que diz respeito à validação (o escrutínio é cuidadosamente feito por entidades externas), ao júri (30 elementos, acompanhados de quase um milhar de membros votantes da Academia do GPHG) e à cerimónia (de tapete vermelho, com pompa e circunstância). E se Portugal é um país limítrofe na Europa e periférico no que diz respeito ao volume de negócio relojoeiro, acabou por ter protagonismo indireto com a eleição do Portugieser Eternal Calendar da IWC como o melhor de todos os 90 relógios de 57 marcas que atingiram a fase final do concurso, arrebatando a Aiguille d’Or (Ponteiro de Ouro)… cinco dias depois de ter recebido o Grand Prix do concurso de Relógio do Ano promovido pela plataforma CH24. Ou seja, foi considerado o melhor em dois processos de sufrágio completamente distintos. Mas será que era mesmo o melhor de todos os relógios concorrentes?

A consagração do Portugieser

A história do Portugieser remonta à década de 1930, quando dois comerciantes lusos — de apelido Rodrigues e Teixeira — encomendaram à IWC um relógio de pulso dotado de um movimento de bolso, por ser mais preciso: a miniaturização que acompanhou a passagem dos movimentos dos relógios de bolso para os mais pequenos relógios de pulso não foi devidamente acompanhada no que diz respeito à qualidade. Curiosamente, o primeiro exemplar foi entregue a um agente em Odessa, na Ucrânia, em 1939; Portugal só recebeu os primeiros relógios a 2 de fevereiro de 1942 (casa Pacheco) e a 17 de junho do mesmo ano (casa Rodrigues & Gonçalves). O facto de ser um relógio de pulso grande para a altura fez com que não fizesse parte do catálogo habitual, sendo que somente a partir da década de 50 começou a ser mais vendido em Portugal. Dos 690 relógios Portugieser (variantes da Ref. 325) vendidos entre 1939 e 1981, apenas 141 foram destinados a este cantinho à beira-mar plantado.

Melhor de todos os finalistas e recipiente do Grand Prix: o Portugieser Eternal Calendar da IWC | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Melhor de todos os finalistas e recipiente do Grand Prix: o Portugieser Eternal Calendar da IWC | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Em 1993, para celebrar o 125.º aniversário da sua fundação, a IWC decidiu produzir em edição limitada um modelo denominado Jubilee Portugieser, de estética inspirada na referência 325 lançada em 1979. O sucesso foi tal (mesmo que, com os seus 41,5mm o Portugieser fosse 6,5mm maior do que a média de 35mm de diâmetro até aos anos 90) que o relógio rapidamente desembocou numa família que não tem parado de crescer — e que em França se chamava La Portugaise (em francês, relógio é feminino: la montre), em inglês Portuguese e em italiano Portoghese, até que, nos anos 2000, a IWC solicitou aos seus distribuidores e à imprensa internacional que a nomenclatura ficasse unificada em torno da designação original Portugieser, em virtude de a IWC ficar localizada em Schaffhausen, na zona suíço-alemã.

IWC PortugieservO momento do anúncio do vencedor do Grand Prix de 2024 | Foto. GPHG
O momento do anúncio do vencedor do Grand Prix de 2024: Portugieser Eternal Calendar | Foto. GPHG

O Portugieser Eternal Calendar (150.000 CHF) é um dos mais complexos exercícios da já longa linhagem do Portugieser, que este ano foi vigorosamente renovada, e levou a interpretação do calendário perpétuo até (quase) à eternidade no que diz respeito à precisão das fases da lua — alcançando um recorde com entrada direta no Guinness porque, teoricamente, só precisará de correção após 45 milhões de anos (mais precisamente 45.361.055!), para além do resto de as indicações estarem corretas até pelo menos ao ano 3999 (porque ainda não se sabe se o ano 4000 será considerado bissexto).

Chris Grainger-Herr, CEO da IWC, durante o emocionado discurso e com o troféu principal | Foto: GPHG
Chris Grainger-Herr, CEO da IWC, durante o emocionado discurso e com o troféu principal | Foto: GPHG

Christoph Grainger-Herr fez-se acompanhar do seu braço-direito Christian Knoop, do diretor de heritage Nicolas Lannou e ainda de um alargado séquito — todos eles envergando diferentes modelos Portugieser no pulso. E emocionou-se visivelmente durante o seu discurso.

Edição muito internacional

O triunfo da IWC foi uma espécie de microcosmos da internacionalização do palmarés da 24.ª edição do GPHG — sem esquecer todas as nacionalidades representadas no júri e nos membros da Academia. Porque a IWC tem um CEO alemão e é a mais alemã das marcas suíças, mas foi fundada pelo americano Florentine Ariosto Jones, tendo na sua coleção uma linha com ligação a Portugal (o Portugieser) e duas linhas insopiradas por Itália (Portofino e Da Vinci).

Ming Thein (Ming) e Ev e Stefan Kudoke (Kudoke) foram exemplos da internacionalização dos prémios | Foto: GPHG
Ming Thein (Ming) e Ev e Stefan Kudoke (Kudoke) foram exemplos da internacionalização dos prémios | Foto: GPHG

Obviamente que houve prémios arrebatados pelas incontornáveis marcas suíças, que jogavam ‘em casa’. Mas houve galardões a irem para França (graças a Rémy Cools e a Sylvain Pinaud), Alemanha (Bernhard Lederer, Kudoke, os donos da Chopard também são germânicos), Finlândia (embora Kari Voutilainen esteja radicado há muito em paragens helvéticas), Kuala Lumpur (Ming) e Japão (Otsuka Lotec),

Uma questão de idioma

A cada vez maior internacionalização do GPHG e a popularização de muitas marcas relojoeiras anteriormente consideradas de nicho através da internet veio levantar uma questão abordada pelo nosso colega Frank Geelen quando foi chamado a entregar o troféu da Cronometria. O fundador do website Monochrome recordou o facto de o certame ser frequentemente considerado como ‘Óscares da Relojoaria’ e que, por isso e para um maior alcance, deveria ter uma apresentação em inglês — em vez da tradicional apresentação em francês mesclada com segmentos em inglês no discurso dos membros do júri e vencedores que não se sentem particularmente à vontade na língua de Molière. Houve algumas reações mistas na sala e muito apoio nas redes sociais por parte da imprensa anglo-saxónica.

Com razão? Frank Geelen foi corajoso ao pedir que a cerimónia do GPHG fosse conduzida em inglês | Foto: GPHG Monochrome watches
Com razão? Frank Geelen foi corajoso ao pedir que a cerimónia do GPHG fosse conduzida em inglês | Foto: GPHG

Na minha opinião, o GPHG não deve perder a sua essência nem descurar a tradição da cidade que organiza o evento. Genebra fica na zona francófona da Suíça, tal como a esmagadora maioria das marcas de alta-relojoaria. Muitos dos relojoeiros de outros países que vêm trabalhar nessas marcas aprendem o francês, como Kari Voutilainen. E o mundo já está suficientemente anglófono (o Esperanto foi criado para ser a língua internacional, mas não vingou) para se forçar muitos dos protagonistas francófonos da relojoaria a falar em inglês no seu próprio país. Para além disso, quem assiste in loco ao GPHG tem um sistema auricular de tradução; quanto à transmissão da cerimónia, poderia ter uma versão com tradução instantânea para o inglês. Mas não transformem o Grand Prix d’Horlogerie de Genève em Geneva Horological Grand Prix depois de o Salon International de la Haute Horlogerie ter redundado no Watches & Wonders.

Sem avisos prévios

Normalmente, os vencedores do GPHG são avisados com um mínimo de antecedência — pelo menos, isso sucede nalgumas categorias e nalguns casos em que os interessados não confirmaram presença. As chamadas da organização podem surgir durante a manhã do próprio dia da cerimónia, mas desta feita (quase) ninguém parece ter sido avisado.

O Théâtre du Léman rebentou pelas costuras, com a sua lotação ultrapassada | Foto: GPHG
O Théâtre du Léman rebentou pelas costuras, com a sua lotação ultrapassada | Foto: GPHG

Falámos pessoalmente com Kari Voutilainen e com Pierre Jacques (CEO da De Bethune) pouco antes de a cerimónia começar e ambos confessaram que não iriam ganhar qualquer troféu porque não tinham recebido qualquer chamada. Mas acabaram mesmo por ganhar! A incerteza pré-cerimónia ofereceu mais dramatismo à cerimónia e espontaneidade aos discursos dos vencedores.

O grande regresso de Daniel Roth

A categoria do Turbilhão foi ganha pelo Daniel Roth Tourbillon Souscription (140.000 CHF), uma reedição muito próxima do original Tourbillon Souscription C187 que o mestre Daniel Roth lançou em 1988 e que na altura foi o primeiro relógio de pulso com um turbilhão de grandes dimensões no lado do mostrador. As semelhanças são forçosamente muitas, embora a tipografia tenha sido atualizada e o movimento apurado.

No pulso: o Daniel Roth Tourbillon Souscription, vencedor da categoria Turbilhão | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
No pulso: o Daniel Roth Tourbillon Souscription, vencedor da categoria Turbilhão | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

O prémio foi recebido por Jean Arnault, filho mais novo de Bernard Arnault (dono do grupo LVMH, um dos cinco homens mais ricos do mundo) e diretor do departamento de relojoaria da Louis Vuitton; estiveram também presentes Michel Navas e Enrico Barbasini, fundadores da La Fabrique du Temps — uma unidade de alta-relojoaria adquirida pela Louis Vuitton e que atualmente fabrica os relógios da Daniel Roth e da Gerald Genta, sendo responsável pelo Calibre DR001 que segue a forma em dupla elipse da caixa. O mostrador em guilloché Clous de Paris foi confecionado na Comblémine de Kari Voutilainen.

Jean Arnault com o troféu da categoria Turbilhão atribuído ao Daniel Roth Tourbillon Souscription | Foto: GPHG
Jean Arnault com o troféu da categoria Turbilhão atribuído ao Daniel Roth Tourbillon Souscription | Foto: GPHG

Durante a Milano Watch Week conversámos com Michel Navas sobre a renescença da marca Daniel Roth. No GPHG foi a vez de Enrico Barbasini; casado com uma portuguesa e com quatro residências no nosso país (!), referiu à Espiral do Tempo (e em bom português) que Daniel Roth continua a trabalhar no seu atelier na Vallée de Joux mas que tem uma saúde frágil que desaconselha viagens, daí não ter marcado presença na cerimónia. É pena. Um dos grandes protagonistas da relojoaria na década de 80 e 90 merecia poder dar a cara perante as novas gerações.

Uma questão de credibilidade

Para a credibilidade do GPHG, é desaconselhável que um dos elementos do júri, antes da entrega do prémio que lhe foi confiado e perante uma plateia de conhecedores, diga algo como «finalmente fiquei a saber o que era um turbilhão». No tempo em que fui membro do júri do GPHG, nos anos 2000, o lote de jurados era de somente 12. De há uma década para cá, essa dúzia foi largamente ultrapassada, para chegar atualmente aos 30 elementos presididos pelo extravagante britânico Nick Foulkes — com a inclusão de gentes vindas de outras paragens para poderem dar uma perspetiva diferente no momento da escolha. Como a jornalista britânica Vivienne Becker, especialista em joalharia e autora dessa tirada franca… mas que nunca deveria ter sido proferida. Nota para a presença no júri do famoso designer Marc Newson.

Mais do que ‘só tempo’

Time Only: uma nova categoria do GPHG para relógios de indicações exclusivamente analógicas e com a indicação básica do tempo através de dois ou três ponteiros (horas e minutos, com a eventual adição dos segundos). Porventura a configuração mais usada em todo o mundo.

No pulso: o H. Moser & Cie Streamliner Small Seconds | Foto: Lukasz Doskocz/CH24.pl
No pulso: o H. Moser & Cie Streamliner Small Seconds | Foto: Lukasz Doskocz/CH24.pl

Ganhou o Streamliner Small Seconds Blue Enamel, da H. Moser & Cie — uma evolução do Streamliner Centre Seconds graças a um diâmetro e uma espessura mais elegantes: a fluidez das linhas metálicas e design integrado bem conhecidas da gama Streamliner é complementada de maneira soberba por um mostrador em esmalte de tonalidade azul dégradé.

Schaffhausen em alta: os 'vizinhos' Chris Grainger-Herr (IWC) e Édouard Meylan (H. Moser) com os prémios | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Schaffhausen em alta: os ‘vizinhos’ Chris Grainger-Herr (IWC) e Édouard Meylan (H. Moser) com os prémios | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Édouard Meylan, o carismático CEO da H. Moser, brilhou no discurso e posteriormente publicou uma fotografia (cedida pela Espiral do Tempo) no seu Instagram, na qual surge ao lado de Chris Grainger-Herr e estando ambos com os respetivos troféus, realçando o sucesso da cidade de Schaffhausen. Muitos estranharam o facto de o ‘vizinho’ e CEO da IWC não ter feito ‘gosto’ na sua publicação…

Audácia de formas

A abordagem não conformista de Sylvain Berneron no Mirage — no caso, a versão Sienna de mostrador dourado — valeu-lhe o prémio da Audácia, uma categoria extra atribuída a um dos modelos concorrentes nas várias disciplinas (o Berneron estava nomeado para a categoria Time Only).

O prémio da Audacidade foi para o Berneron Mirage Sienna | Foto: GPHG
O prémio da Audácia foi atribuído ao Berneron Mirage Sienna | Foto: GPHG

A estética ‘desconstruída’ não é propriamente uma novidade, tendo em conta a influência dos ‘relógios derretidos’ de Salvador Dali em várias criações apresentadas ao longo das décadas por múltiplas marcas — das mais caras às mais baratas. Não obstante, a Berneron tem tido uma ascensão meteórica e muita procura (longas listas de espera para os seus relógios); para além disso, segue a tendência atual que valoriza formas pouco convencionais e é motorizado por um calibre assimétrico de grande qualidade que foi precisamente o ponto de partida para a forma da caixa.

Pioneirismo ecológico

Foi a primeira vez que o Prémio da Eco-Inovação foi atribuído, recompensando o desenvolvimento das marcas no âmbito da durabilidade e da proveniência — e a Chopard mereceu essa distinção graças ao L.U.C Qualité Fleurier. Sob a batuta dos irmãos Karl-Friedrich e Caroline Scheufele, a Chopard foi a primeira companhia relojoeira a enveredar por um política ética relativamente aos materiais usados e foi justamente premiada na 24.ª edição do GPHG.

Chopard: Karl-Friedrich Scheufele e Karl-Fritz Scheufele no jantar de gala que se seguiu à cerimónia do GPHG | Foto: MIguel Seabra/Espiral do Tempo
Karl-Friedrich Scheufele e Karl-Fritz Scheufele no jantar de gala que se seguiu à cerimónia do GPHG | Foto: MIguel Seabra/Espiral do Tempo

Karl-Friedrich Scheufele fez-se acompanhar pelo seu filho Karl-Fritz Scheufele (cada vez mais embrenhado nos negócios de família). A Chopard ganharia um outro prémio, com o Laguna Secret a impor-se na categoria de Joalharia. Juntando os troféus aos que a sister company Ferdinand Bethoud também já ganhou, o pecúlio da família Scheufele no GPHG já ultrapassa a dezena de estatuetas.

O hat-trick da Van Cleef & Arpels

Se o Portugieser Eternal Calendar permitiu à IWC arrecadar o prémio máximo, a Van Cleef & Arpels pode vangloriar-se de ser a grande vencedora da noite ao somar estatuetas em três distintas categorias. Venceu o Relógio de senhora com o Lady Arpels Jour Nuit, uma reinterpretação do original de 2008 com uma lua de diamantes e estrelas à volta do sol; a Complicação de Senhora com o Lady Arpels Brise d’Été (169.000 CHF), que se destacou pelo autêntico jardim ‘plantado’ no mostrador, onde borboletas em ouro celebram a frescura de uma manhã estival sobre inovadoras técnicas de esmaltagem; e ainda a categoria de Métiers d’Art com o Lady Arpels Jour Enchanté, em que uma graciosa silhueta colhe flores sob o sol matinal. Poético… ou não tivesse a Van Cleef & Arpels registado a designação ‘Poetic Complications’.

Mister 11

É o mais discreto de todos os protagonistas da relojoaria, mas é também o mais profícuo — Kari Voutilainen somou o seu 11.º troféu do GPHG ao ganhar o prémio do Relógio Masculino, desta feita com o KV2Oi Reversed, depois de dividir com o bem mais jovem Rexhep Rexhepi os seis anteriores prémios nessa tão concorrida categoria do Relógio Masculino.

Lenda viva: Kari Voutilainen já pode fazer uma equipa de futebol com as estatuetas ganhas no GPHG | Foto: GPHG
Lenda viva: o mestre Kari Voutilainen já pode fazer uma equipa de futebol com as estatuetas ganhas | Foto: GPHG

Como o nome indica, o ‘invertido’ relógio apresenta no mostrador o que habitualmente se vê no fundo transparente. E o que se vê é alta-relojoaria em todo o seu esplendor mecânico. Não admira que tenha listas de espera de oito anos e não esteja a aceitar encomendas: cada exemplar do mestre finlandês é encarado como uma obra-prima devido ao seu valor mecânico e decorativo.

A Kind Of Magic…

A De Bethune somou o seu quarto troféu do GPHG com o triunfo do DB Kind Of Grande Complication na categoria da Complicação Masculina. Com um total de sete complicações explanadas numa caixa reversível com a estética estrelada da linha DB25 com calendário perpétuo de um lado e a estética futurista da linha DB28 com um turbilhão do outro, o DB Kind Of Grande Complication podia muito bem ter sido agraciado com o prémio máximo — a Aiguille d’Or — de 2024. E houve muito boa gente a considerar que o relógio da De Bethune era o melhor de todos os 90 finalistas.

O sensacional e reversível DB Kind Of Two da De Bethune | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O sensacional e reversível DB Kind Of Two da De Bethune | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

De qualquer das formas, a De Bethune já ganhou anteriormente a Aiguille d’Or e continua a afirmar-se como um caso excecional no que diz respeito à relojoaria contemporânea. Sob a batuta do genial mestre e co-fundador Denis Flageollet, consegue obras-primas incomparáveis no plano mecânico e na vertente estética. No entanto, é interessante constatar que ainda há muita gente, incluindo experimentados jornalistas, que ainda não ‘percebe’ a marca.

David de certificação tripla

Talvez fosse o triunfo mais lógico, senão mesmo anunciado. O prémio da Cronometria foi para o 3 Times Certified Observatory Chronometer do mestre Bernhard Lederer, um relógio que tivemos recentemente em mãos na VO’Clock e na Milano Watch Week — e que, como o nome diz, está oficialmente certificado por três observatórios e que ainda conta com a certificação do COSC.

Precisão (quase) absoluta: o Lederer 3 Times Certified Observatory Chronometer | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Precisão (quase) absoluta: o Lederer 3 Times Certified Observatory Chronometer | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

No seu discurso, Bernhard Lederer destacou a importância da relojoaria independente e disse mesmo que as marcas independentes faziam o papel de David perante os Golias de uma indústria cada vez mais dominada pelos grandes conglomerados de luxo. Um triunfo bíblico, portanto.

Mergulho minimalista

A Ming é uma das mais surpreendentes companhias relojoeiras recentemente criadas, tendo começado como micromarca de preço acessível abaixo dos 1.000 euros e posteriormente saltado para um patamar de excelência que faz inveja a muitas marcas de tradição secular. Depois de ter já conquistado um prémio anterior no GPHG (o da Revelação, em 2019), venceu agora o prémio de Relógio Desportivo com o seu 37.09 Bluefin — um relógio de mergulho de estética minimalista e luminescência superlativa que prevaleceu sobre o relógio de mergulho maximalista da Singer Reimagined, o Divetrack. Com justiça?

O Ming 37.09 Bluefin ganhou a sempre concorrida categoria desportiva | Foto: Ming

É questionável. Mas o triunfo é mais uma prova do crescimento da Ming e do génio de Ming Thein, muito bem secundado pela sua equipa. E a categoria do relógio desportivo permanece muito importante, embora se sinta nos últimos tempos que os sempre populares modelos desportivos têm vindo a perder algum terreno para os chamados dress watches.

Primeiros preços

Na importante categoria Challenge referente a relógios de preço até 3.000 CHF, o modelo Nº6 da marca japonesa Otsuka Lotec impôs-se devido a uma dupla apresentação retrógrada, indicando o tempo como o faria um instrumento sobre um antigo painel de bordo — homenageando assim o pioneirismo das máquinas a vapor e dos primeiros submarinos, fazendo recordar o estilo steam punk ou mesmo retrofuturista do mestre Vianney Halter. Mas a um preço bem mais acessível, graças à utilização do Calibre Miyota 9015 automºático de fabrico em massa. O Kollokium Project 1 seria uma excelente alternativa para o prémio.

O peculiar estilo da Kudoke | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O peculiar estilo do Kudoke 3 | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Já na categoria denominada Petite Aiguille, que contempla preços até 10.000 CHF, o Kudoke 3 Salmon (9.905 CHF) deu o segundo galardão ao casal Stefan e Ev Kudoke — que já tinham ganho uma estatueta em 2019. O Kudoke 3 é simultaneamente clássico (caixa, acabamento, estética do mostrador) e pouco ortodoxo (devido ao sistema de indicação do tempo). A leitura do tempo faz-se através de uma escala dividida em três segmentos no plano superior do mostrador em tons salmão — e a hora é fornecida por uma espécie de hélice de três braços, ao passo que o ponteiro dos minutos tem a tradicional configuração de eixo central. A Tudor tem dominado a categoria na última década, desta feita não conseguiu meter mais uma variante do Black Bay na lista dos vencedores.

Bouquet de floreados

Não era fácil para a atriz francesa Carole Bouquet substituir o também ator/comediante francês Édouard Baer na condução da cerimónia do GPHG; após tantos anos, era já um perfeito conhecedor da indústria relojoeira e dos seus protagonistas, enquanto a estreante cometeu várias gaffes que até ultrapassaram a questão do conhecimento ou desconhecimento da matéria — foram mesmo erros de atabalhoamento.

A cerimónia foi conduzida pela primeira vez por Carole Bouquet | Foto: GPHG
A cerimónia foi conduzida pela primeira vez por Carole Bouquet | Foto: GPHG

Atualmente com 67 anos, foi Bond Girl no For Your Eyes Only de 1981, ganhou o César de Melhor Atriz em 1990 pelo filme Trop Belle Pour Toi, e em 1995 foi mestre de cerimónias do Festival de Cannes… mas muita gente vaticinou que dificilmente voltará a apresentar o GPHG. O futuro o dirá.

Outras notas

  • Uma das frases da cerimónia pertenceu a Benjamin Comar, CEO da Piaget; ao receber o prémio do relógio Icónico pela reedição do Polo 79, afirmou que na relojoaria «não estamos a representar inteligência artificial, mas inteligência artesanal». Há IA e há IA…
No pulso: o Piaget 79, vencedor da categoria do relógio Icónico | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
No pulso: o Piaget 79, vencedor da categoria do relógio Icónico | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
  • A cerimónia não teve muitas paragens nem os episódios piadéticos dos anos anteriores. Mesmo assim, durou duas horas e meia e houve quem achasse demasiado longa… algo de contraditório tendo em conta que se trata da indústria do tempo e de objetos considerados intemporais. O único interlúdio musical a valorizar o espetáculo foi uma versão bem cantada de What A Wonderful World.
Pompa e circunstância ao longo de duas horas e meia | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Pompa e circunstância ao longo de duas horas e meia | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
  • A Bovet somou mais um galardão para o seu currículo — desta feita na categoria da Exceção Mecânica, com o Récital 28 Prowess 1… que alguns disseram ser também merecedor da Aiguille d’Or, pela qualidade intrínseca e capacidade de calcular as diferenças inerentes ao Daylight Saving Time (horário de inverno/verão). Juntando os prémios já conquistados pela Bovet, pela Voutilainen, pela Chopard e pela Férdinand Berthoud, o número de estatuetas alcançadas por marcas do Val de Fleurier vai quase nas três dezenas…
  • O luxo discreto e menos ostensivo da Parmigiani Fleurier continua a ser valorizado, com relógios seus nomeados em seis categorias (Homem, Senhora, Calendário e Astronomia, Cronógrafo, Sport, Time Only) no concurso de 2024 — embora desta vez sem conseguir arrebatar estatueta. Também a Hermès teve múltiplas nomeações (Senhora, Exceção Mecânica, Métiers d’Art) sem a conquista de qualquer galardão.
  • O Prémio Especial do Júri foi atribuído a Jean-Pierre Hagmann, que trouxe uma lista das marcas com as quais colaborou ao longo de tantas décadas — um artesão tão reputado que a Patek o deixou colocar as iniciais na parte interior das asas das caixas da sua autoria. Teve uma enorme ovação (talvez a maior da noite) e não houve qualquer musiqueta a indicar que o seu discurso ia longo. Respect!
A felicidade de Jean-Pierra Hagmann depois do anúncio do presidente do júri, Nick Foulkes | Foto: GPHG
A felicidade de Jean-Pierra Hagmann depois do anúncio do presidente do júri, Nick Foulkes | Foto: GPHG
  • Uma curiosidade: o facto de o champanhe oficial do GPHG ser Laurent Perrier acabou por ser um bom augúrio para Laurent Ferrier, que ganhou a categoria do Calendário e Astronomia com o Classic Moon Silver — relógio dotado de calendário triplo com ponteiro datador e fases da lua num modelo de estética clássica. Mesmo que entre os finalistas houvesse concorrência tecnicamente mais forte…

Para concluir a reportagem, uma tirada da autoria de Raymond Loretan. O presidente do GPHG sublinhou o prestígio da relojoaria e a sua classificação enquanto património imaterial da UNESCO: «uma indústria e um artesanato visionários, de uma busca infinita pela beleza ao mesmo tempo que se mantém fiel a uma tradição secular». Precisamente o que seduz todos os aficionados e uma das razões da existência da Espiral do Tempo.

Os vencedores do GPHG 2024 e os respetivos troféus | Foto: GPHG
Os vencedores da 24ª edição do GPHG 2024 e os respetivos troféus | Foto: GPHG

Palmarés da 24.ª edição

Aiguille d’Or: IWC Schaffhausen Portugieser Eternal Calendar
Ladies’: Van Cleef & Arpels Lady Jour Nuit
Ladies’ Complication: Van Cleef & Arpels Lady Arpels Brise d’Été
Time Only: H. Moser & Cie Streamliner Small Seconds Blue Enamel
Men’s: Voutilainen KV20i Reversed
Men’s Complication: De Bethune DB Kind Of Grande Complication
Iconic: Piaget Polo 79
Tourbillon: Daniel Roth Tourbillon Souscription
Calendar and Astronomy: Laurent Ferrier Classic Moon Silver
Mechanical Exception: Bovet 1822 Récital 28 Prowess 1
Chronograph: Massena Lab Chronograph Monopoussoir Sylvain Pinaud x Massena Lab
Sport: Ming 37.09 Bluefin
Jewellery: Chopard Laguna High-Jewellery Secret Watch
Artistic Crafts: Van Cleef & Arpels Lady Arpels Jour Enchanté
‘Petite Aiguille’: Kudoke 3 Salmon
Challenge: Otsuka Lotec No.6
Eco-innovation: Chopard L.U.C Qualité Fleurier
Audacity: Berneron Mirage Sienna
Horological Revelation: Rémy Cools Tourbillon Atelier
Chronometry: Bernhard Lederer 3 Times Certified Observatory Chronometer
Special Jury Prize: Jean-Pierre Hagmann

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