Ao longo de toda a semana passada, e à medida que ia publicando imagens na minha conta do Instagram sobre os ateliers e manufaturas que visitei na Suíça, entre Genebra e o cantão de Neuchâtel, eram vários os seguidores que me questionavam sobre a razão de ser do “hashtag” #TheRoadToDubaiWatchWeek. A pergunta era pertinente.
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Foto de abertura – Pintura miniatura sobre esmalte na Bovet 1822 © Carlos Torres
O que terá levado os organizadores da Dubai Watch Week a levar um grupo de jornalistas durante uma semana inteira à descoberta da essência da relojoaria e das artes que lhe estão associadas pelo país dos relógios? Uma forma de compreender esta incursão da Dubai Watch Week pela Suíça, poderá ser parcialmente alcançada através de outros exemplos como um Louvre em Abu Dhabi (a inaugurar este ano), e, porque não, um Rock in Rio em Lisboa.
O propósito da Dubai Watch Week, um salão anual sui generis organizado sob a égide da família Seddiqi no Dubai, proprietária de um dos maiores grupos retalhistas do mundo na área da relojoaria e joalharia, é apenas o de promover uma consciência coletiva em torno da importância de preservar e perceber a verdadeira essência que atualmente define a alta-relojoaria e as artes centenárias que lhe estão associadas (como se essa tarefa não fosse, já por si, coisa pouca). Um intuito nobre que não esconde também, por parte do organizador, uma finalidade paralela. É que uma boa perceção e conhecimento por parte do público sobre a arte da relojoaria irá reforçar e instruir, em última instância, a base de clientes capazes de apreciar verdadeiramente o que de melhor se faz por terras helvéticas neste âmbito. Um efeito que acaba por se fazer sentir não só no Dubai, mas também em outros territórios, o que justificou a presença de meios de comunicação internacionais exteriores ao Dubai como foi o caso da Espiral do Tempo.
Preciflex, HYT, administração pública e a CSEM
E se a tarde de domingo foi passada de forma descontraída em Neuchâtel a apreciar a vista para o lago a partir do belíssimo Hotel Palafitte (pertença da Fundação Sandoz, a proprietário da Parmigiani Fleurier), a segunda feira começou cedo com uma visita à Preciflex, uma manufatura fora do comum que está encarregue da construção dos módulos hidromecânicos que compõem os modelos da inovadora HYT. É verdadeiramente surpreendente o género de técnicas e maquinaria inusitada que aqui se podem encontrar, assim como o nível tecnológico inovador, que, até agora, seria impossível associar à relojoaria mecânica.
Seguiu-se uma audiência com o presidente do cantão de Neuchâtel no histórico castelo do século XII que serve atualmente como sede do conselho de estado deste cantão. Jean-Nathanaël Karakash, que é também ministro para a economia e ação social, destacou-se pela postura descontraída e casual, pouco habitual segundo os padrões europeus num político com um cargo desta importância, e explicou de forma clara a importância histórica da relojoaria na economia da região.
A tarde ficou reservada para uma visita a uma instituição a que raramente os jornalistas têm acesso. A CSEM é uma organização tecnológica suíça privada, sem fins lucrativos, dedicada à pesquisa e focada na geração de valor acrescentado. Para a relojoaria a instituição ficou famosa por desenvolver em 1961 o famoso Beta 21, o primeiro movimento de quartzo miniaturizado suíço adotado posteriormente por cerca de 20 marcas entre as quais a Patek Philippe, a Rolex e a Omega. A Patek mantém ainda um espaço próprio na instituição, onde desenvolve as soluções que posteriormente apresenta na série “Patek Philippe Advance Research”.
Dimier 1738 e Bovet 1822
Terça-feira começou como uma viagem para Tramelan, no cantão de Berna, onde descobrimos a manufatura Dimier 1738. Esta unidade de produção, pertence à Bovet 1822, está encarregue da produção, montagem e acabamento de componentes dos movimentos desta última, produzindo pontualmente também para outras manufaturas. O processo final de mise au point e emboitage dos movimentos da Bovet é no entanto executada nos ateliers asséticos do fabuloso Château des Môtiers, no Val-de-Travers, o destino que se seguiu à visita à Dimier 1738 e onde fomos recebidos pelo proprietário da marca, Pascal Raffy.
Esmalte, pintura em miniatura, Junod e Reuge
O dia seguinte foi totalmente dedicado às artes paralelas à relojoaria. Após uma rara visita ao atelier de esmaltagem e pintura em miniatura de Vanessa Lecci e Siyun Han, onde me surpreendi com o número de peças relevantes das mais importantes manufaturas de alta relojoaria que saíram das mãos destas duas artistas, a ‘entourage’ seguiu para Sante-Croix, no cantão de Vaud.
A pitoresca comuna suíça integra um dos mais fascinantes espaços que alguma vez me foi permitido visitar. O atelier de François Junod é um local único como não existe outro no mundo. O ´Mestre dos Brinquedos´, como muitos gostam de lhe chamar, há muito que ultrapassou o legado de Jaquet Droz na arte de construir autómatos mecânicos de uma complexidade estonteante. O Automate Fee Ondine, produzido com e para a Van Cleef & Arpels, é apenas a mais recente maravilha saída desta verdadeira caverna de Ali Babá, pejada de objetos pessoais, antiguidades e construções artísticas mecânicas surpreendentes.
Uma outra manufatura que tive a oportunidade de visitar, igualmente localizada em Sainte-Croix, foi a centenária Reuge. Uma verdadeira instituição suíça especializada na produção de caixas de música mecânicas de rara beleza, assim como das famosas Tabatières, as caixas de onde surgem, como por magia, pássaros cantantes movidos exclusivamente por meios mecânicos e cuja melodia é produzida com recurso a foles.
O final do dia foi passado em Genebra onde Alexandre Nickbarte-Mayer, hoteleiro de sexta geração e diretor geral do magnífico Beau Rivage (e também um excelente conhecedor e colecionador de relógios), nos recebeu com um admirável jantar na sala privada do restaurante Le Chat Botté.
O universo de Journe
A quinta feira foi dedicada à visita da manufatura do Mestre François Paul-Journe onde pudemos apreciar diversas peças da atual coleção do relojoeiro e que me confidenciou alguns pormenores de uma peça bastante complicada que será apresentada já em 2018. Segredos são segredos, mas posso avançar já que há quase uma década que François Paul-Journe trabalha nesta criação que irá certamente ser um dos relógios mais falados do ano que vem.
O dia terminou com uma visita às instalações da Les Cadraniers de Genève e da Les Bôitiers de Genève, a unidade de produção de onde saem os mostradores e as caixas dos F.P.Journe e que recebe ainda encomendas de outras manufaturas devido à excelente qualidade do trabalho final que aqui se realiza. Um aspeto interessante foi descobrir que muitos dos mostradores de relógios vintage que vão para as respetivas marcas para restauro, acabam nestas instalações onde ganham literalmente uma nova vida.
Agenhor
Finalmente, sexta feira, último dia da visita e a oportunidade de descobrir em primeira mão porque é que a Agenhor de Jean Marc-Wiederrecht se tornou nos últimos anos um atelier incontornável na alta-relojoaria. Localizada nos arredores de Genebra, em Meyrin, a poucas centenas de metros da Les Cadraniers de Geneve, o ambiente quase familiar que se vive no interior da manufatura esconde uma capacidade técnica e de inovação que algumas manufaturas com nomes sonantes deixaram escapar nos últimos anos.
Basta olharmos para algumas das criações desenvolvidas pelo génio de Jean Marc-Wiederrecht e pelos relojoeiros da Agenhor para perceber que contemplamos uma empresa bastante particular. Modelos produzidos para a Fabergé como o Lady Compliquée ou o Visionnaire, ambos vencedores em categorias distintas do Grand Prix d´Horlgerie de Geneve em 2015 e 2016, respetivamente, assim como o mais recente Visionnaire Cronógrafo, apresentado durante a feira de Baselworld deste ano, demonstram inequivocamente as capacidades singulares deste atelier.
Wiederrecht é igualmente um mestre das indicações retrógradas, tal como ficou patente nos módulos que concebeu para a Hermès nos modelos Le Temps Suspendu, e mais recentemente com o Slim d´Hermès Heure Impatiente. A própria Van Cleef & Arpels não se nega a confirmar a participação da Agenhor nos belíssimos movimentos que compõem as Complicações Poéticas da marca. No final da visita houve ainda tempo para descobrir em avant-première o novíssimo Track 1 que a Agenhor produziu para a Singer, o especialista em tudo o que diga respeito ao histórico Porsche 911 com motor arrefecido a ar.
Veredicto
O veredicto desta viagem é inequívoco. Nenhuma marca, manufatura de alta-relojoaria, ou grupo como a Richemont, Grupo Swatch, Kering ou LVMH foi alguma vez capaz de proporcionar um género de experiência imersiva no mundo da alta-relojoaria como a possibilitada pela Dubai Watch Week durante estes dias. Provavelmente estaria fora das suas competências, já que as marcas destes grupos agem e comunicam de forma individual. A vantagem de um retalhista como a familia Seddiqi, através da Dubai Watch Week, torna-se aqui clara como água e pode ser transportada para a experiência que se pode usufruir numa loja multimarca, e que não é possível replicar numa boutique mono-marca. A alta-relojoaria é composta por uma multiplicidade de experiências e conceitos que contribuem para uma melhor compreensão do que é a verdadeira arte da relojoaria, sendo impossível separar esta noção das pessoas que lhe estão na sua origem.
Dubai Watch Week na Suíça? Poucos conceitos se revestem de uma lógica mais clara e compreensível.
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