Mais tecnologia = menos relojoaria

Nunca tive nada contra a evolução tecnológica em qualquer área (antes pelo contrário), muito menos no campo da medição do tempo. Mas ultimamente parece-me que se tem esticado demasiado a corda no campo da relojoaria mecânica. Senão vejamos…

Desde que em 1967 o Centre Electronique Horloger de Neuchatel apresentou ao mundo o primeiro relógio a quartzo, o Beta 1, que se separou claramente as águas no campo da precisão entre os relógios mecânicos e os relógios a quartzo. A evolução deste último colocou a fasquia a um nível para o qual a tecnologia centenária do relógio mecânico não estava à altura, e que, mesmo hoje, passados 50 anos, continua difícil de alcançar.

O mais recente movimento a quartzo VHP (Very High Precision) da Longines é capaz de uma precisão de +/- 5 segundos ano, ou seja 0,416 segundos por mês ou 0,0136 segundos por dia. Já, por exemplo, um Patek Philippe Calatrava ref. 5227, com o calibre 324 S C e Selo PP, é capaz de alcançar no mesmo período cerca de -3 a + 2 segundos por dia. Como referência adicional, a certificação de cronómetro do COSC suíço exige que um movimento mecânico se mantenha entre -4 e +6 segundos dia.

A diferença é abismal, mas não é por isso que algum de nós deixaria de adquirir um Calatrava. É que o apelo de um relógio mecânico há muito que deixou de se centrar na sua precisão, focando-se atualmente numa série de valores tangíveis e intangíveis onde a nostalgia, a ciência, a arte e manufatura da relojoaria mecânica desempenham um papel fulcral.

Ora isto vem a propósito da agitação e deslumbramento generalizado dos meios de comunicação especializados sobre a recente apresentação do Zenith Defy Lab, e do seu revolucionário órgão regulador monolítico em silício monocristalino…. que vibra a uma frequência de 5 Hz, sendo capaz de uma variação diária de apenas 0,3 segundos: 22 vezes menos preciso do que o VHP da Longines.

A comunicação à imprensa que a marca enviou deste modelo, e que recebi em português, anunciava em letras gordas tratar-se do “relógio mecânico mais preciso do mundo!”… Claro que não hesitei em responder recordando que atualmente qualquer relógio mecânico de pêndulo de precisão é capaz de alcançar 1 segundo por mês, uma precisão 10 vezes superior… E isto sem falar no pêndulo de Burgess, capaz de uma performance estonteante que alcança 0,00625 segundos dia (são 2,281 segundos por ano…). De nada valeu. Dois dias mais tarde a mesma comunicação foi repetida e reforçada, mantendo teimosamente, e de forma incorreta, o mesmo título!

Claro que já vos ouço a clamar por justiça por não ser correto a comparação entre um movimento a quartzo e um mecânico, e que a inovação apresentada agora pela Zenith é verdadeiramente revolucionária. Mas não é essa verdadeiramente a questão que me traz a este tema. A questão que aqui coloco é a de que se faz realmente sentido perseguir o tema da precisão num relógio mecânico, ao ponto de desvirtuar de forma marcante a estética e a arquitetura clássica do seu movimento com o intuito de alcançar uma precisão que se mantém a milhas da que qualquer gadget electrónico é capaz de nos dar. Condescendo que a precisão é apenas um dos muitos argumentos desta tecnologia, observe-se a estética do oscilador do Zenith e compare–se com a sedução de que um órgão regulador clássico é capaz. Se pudesse escolher entre um ou outro para ser incluído no seu próximo relógio mecânico, qual preferiria? Qual lhe daria mais satisfação e seria visualmente mais gratificante?

Parece-me sinceramente que a aplicação desta tecnologia visa mais a simplificação e a redução de custos de todo o processo de produção de um relógio mecânico, retirando da equação o peso do relojoeiro, prevendo-se um claro impacto positivo substancial na margem industrial obtida assim que o conceito possa passar a uma verdadeira produção em série.

Como exercício académico no campo da tecnologia, nada a dizer. Mas veria neste conceito um relógio que realmente ambicionasse adquirir…? Ora esta é que é verdadeiramente a questão.

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