Toque de feriado

EdT53 — Se havia um som que gostava de ouvir na minha adolescência era o toque de ‘feriado’ do Liceu José Falcão, em Coimbra. Quando o professor não comparecia cinco minutos depois do toque de chamada, a campainha soava e gritávamos todos em uníssono: «Feriado!». E desaparecíamos num ápice, não fosse o lente chegar atrasado. Hoje em dia ainda ouço esse toque de vez em quando — no meu pulso.

Crónica originalmente publicada na edição 53 da Espiral do Tempo.

Tenho dificuldades em acordar. Mas se há algo que tem licença para me despertar dos sonhos ou devaneios é o meu Master Réveil, o relógio dotado de alarme que recentemente regressou ao catálogo da Jaeger-LeCoultre sob o nome de Master Memovox. É um relógio que faz o meu subconsciente viajar no tempo: o som do alarme é igual ao toque de ‘feriado’ do Liceu José Falcão de que tanto gostava, o que de certo modo ameniza o meu habitualmente péssimo despertar. Um som límpido, que tem a duração de 20 segundos (com a corda toda) e que é proporcionado por uma pequena maravilha da micromecânica e da metalurgia acústica.

Jaeger‑LeCoultre Master Réveil
Jaeger‑LeCoultre Master Réveil

Devo confessar que, de entre todas as complicações da relojoaria tradicional, sempre foram as acústicas aquelas que mais me impressionaram — uma confissão que a minha tendência para os cronógrafos poderia rebater, mas é mesmo verdade: mais do que turbilhões, equações do tempo, calendários perpétuos e complicações quejandas, tenho uma profunda admiração por relógios dotados de repetições de minutos e ainda mais por grandes sonneries e carrilhões. Pena é que essas complicações acústicas estejam algo aquém da bolsa do comum dos mortais… como eu, um mero jornalista que se vai contentando (e muito) com ‘simples’ alarmes mecânicos.

Esquecendo os relógios de quartzo japoneses (sacrilégio!) que cheguei a usar na adolescência, o meu primeiro relógio de pulso com despertador mecânico foi adquirido no terraço da Universidade de Moscovo que apresenta uma vista fabulosa sobre a capital russa. Estava lá para fazer a cobertura da final da Taça Davis de 1995 entre a Rússia de Yevgeny Kafelnikov e a estelar formação americana liderada por Pete Sampras; adquiri a um vendedor de rua um Imperator Rossia bicolor da Soviet por 12 dólares; não era muito bonito e o alarme mais parecia um besouro em estado moribundo até ao seu estertor final ao cabo de 14 segundos. O mestre Vítor Lopes, antigo preletor na Casa Pia, disse-me eufemisticamente que o mecanismo dele não era «grande espingarda» quando mo reparou. O Imperator Rossia estava para o Master Réveil como um Volga para um Rolls Royce…

Cinco anos depois do Imperator Rossia, comprei o Master Réveil. Quase dez anos depois do Master Réveil, adquiri um outro relógio dotado de alarme e também da Jaeger-LeCoultre — o Master Compressor Extreme World Alarm ‘Tides of Time’, uma edição limitada feita em parceria com uma iniciativa da UNESCO. É mais desportivo e junta a função worldtimer à de alarme, pelo que é um excelente relógio de férias e de viagem. Confesso que também gostaria muito de ter um ou outro modelo da Vulcain — por exemplo, o Nautical ou o 50s President têm todos os elementos de estilo de que gosto e ainda o famoso alarme mecânico da marca, embora de som bem diferente do da campainha de ‘feriado’ do Liceu José Falcão. Mas mesmo assim melhor do que os insuportáveis toques do iPhone.


Do desportivo ao lúdico

Cvstos Challenge
Cvstos Challenge

Estive recentemente em duas ocasiões com Antonio Terranova, um dos cofundadores da Cvstos, e ele continua a usar o mesmo relógio que lhe tenho visto no pulso desde há algum tempo — o Challenge RMT-S, as iniciais de Répétition Minutes Tourbillon Sport. Sempre que estou com ele, peço-lhe o relógio para o sentir no pulso e mais para carregar no botão e escutar as horas do que para me extasiar perante o movimento hipnótico do turbilhão volante.

O Antonio diz-me que é um relógio concebido para ser utilizado no dia a dia e até mesmo em atividades mais radicais sem grandes preocupações relativas a estanqueidade; essa combinação de alta-relojoaria e ‘atleticismo’ deixa-me sempre muito interessado devido à minha formação desportiva. Como fazer soar a repetição de minutos numa caixa desportiva estanque e protegida contra os choques? «Tem tudo a ver com a estrutura do relógio; inspirei-me no mundo dos violões e do piano forte. O formato da caixa tonneau Challenge da Cvstos também me dá um grande volume de ar — e convém não esquecer de que o som não é mais do que uma vibração no ar», faz questão de sublinhar.

Se o Challenge RMT-S da Cvstos é um modelo tipicamente masculino, um dos relógios mais femininos que vi nos últimos tempos tem uma vertente acústica que realça uma complicação lúdica de grande efeito visual: o Margot, da Christophe Claret. Um relógio que assenta no hábito de se dizer ‘bem-me-quer, mal-me-quer’ enquanto se retiram — uma a uma — as pétalas das margaridas (as flores que também têm o nome de malmequer). Sempre que se carrega num botão, desaparece uma pétala enquanto aparece uma inscrição no mostrador correspondente à ‘intensidade’ do amor; em simultâneo, um martelo bate num timbre.

Christophe Claret Margot
Christophe Claret Margot

Esse toque sanciona o veredicto ‘amoroso’ e torna o Margot ainda mais especial. Numa era em que a proliferação dos smartphones, jogos de computador e toda a restante tecnologia contemporânea nos entopem o sistema auditivo, não há nada como o som límpido de uma complicação relojoeira acústica. Mesmo que seja para me despertar de sonhos de uma feliz juventude no Liceu José Falcão, nos tempos em que uma hora sem aula era um ‘feriado’. ET_simb

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