Complicação Inútil nº 2: repetidor de minutos

Repetir as horas, os quartos de hora ou os minutos por meio de um mecanismo sonoro foi a primeira forma encontrada para anunciar o tempo e começou por ser uma necessidade prática. Atualmente, é um desafio para a mestria dos melhores relojoeiros. Mas este artigo não é apenas um artigo dedicado aos repetidores de minutos. É um artigo sobre a sua atual deliciosa inutilidade. 

Na Europa, os primeiros relógios completamente mecânicos não tinham mostrador. Terão sido criados na Idade Média, no século XIII, e não mostravam as horas, tocavam-nas, numa igreja. A própria palavra «Clock» vem do latim: «clocca» que significa sino. Na Idade Média, os relógios serviam apenas para chamar as pessoas para eventos públicos, eram lembretes sonoros. Mais tarde e antes de os relógios das igrejas tocarem as horas de forma automática, eram os padres que tocavam os sinos, após consultarem os seus relógios de bolso. O facto de os sons surgirem automaticamente a partir das ordens de um relógio passou a ser regra em todas as igrejas. Porém, eram mecanismos muito pouco precisos. Foi com a criação de duas peças revolucionárias que estes relógios sonoros ganharam precisão: a cremalheira e o caracol.

A Cremalheira e o Caracol – duas peças musicais

Caracol © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Caracol © Paulo Pires / Espiral do Tempo

A cremalheira e o caracol são duas peças que ainda fazem parte de muitos relógios atuais, Lembro-me de ter descoberto a sua utilidade ao desmontar um relógio de mantel da Junghans. Na altura pareceu-me uma invenção incrível. Daquelas tão simples e geniais que estava mesmo à espera para ser inventada! O autor terá sido Edward Barlow, em 1676. A melhoria da precisão destes relógios musicais reduziu a necessidade de intervenção humana e levou à sua difusão. Quando passaram das torres das igrejas para as casas eram especialmente úteis para perceber as horas no escuro. Em alguns deles, puxando um fio, conseguia-se ativar o mecanismo sonoro que indicava as horas por meio de badaladas. Do mantel das lareiras, das mesas e das paredes, estes relógios sonoros passaram para o pulso. Chegados ao pulso, passaram a chamar-se repetidores de minutos se ativados manualmente, ou sonnerie se ativados automaticamente. Porém, constituíam um grave problema sempre que alguém queria saber as horas durante a ópera, ou mesmo numa trincheira na Primeira Guerra Mundial. O rádio acabou por ser a solução perfeita para permitir a leitura das horas no escuro: esta substância luminescente começou a ser aplicada nos ponteiros e marcadores.

Cremalheira © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Cremalheira © Paulo Pires / Espiral do Tempo

O silêncio da radioatividade

Em especial nos Estados Unidos, o rádio era aplicado por meio de pincéis cujas cerdas eram alinhadas com os lábios e a língua. Este trabalho era principalmente feito por senhoras, numa altura  em que se acreditava que esta substância era milagrosa e excelente para a saúde.

Com o tempo, as reais e perigosas implicações do rádio foram sendo descobertas, mas encobertas também. O rádio afinal era altamente cancerígeno e os efeitos do contacto prolongado com esta substância começaram a fazer-se sentir — a este propósito vale a pela ler o livro Radium Girls, uma obra que nos conta detalhadamente a luta de um grupo de mulheres contra a empresa de mostradores de relógios que as tinha contratado.

Claro que a partir do momento em que se tornaram conhecidos os efeitos nocivos associados ao rádio, foram começando a surgir e a ser aplicadas substâncias cada vez mais seguras não radioativas. Ver as horas no escuro deixou de ser um problema e os repetidores de minutos puderam tornar-se finalmente inúteis!

A deliciosa inutilidade

A utilidade é uma barreira muito importante que todos os grandes relógios devem transpor. Livres da necessidade de serem ferramentas úteis os relógios podem aspirar ser objetos artísticos. Actualmente já não é necessário ouvir as horas, porém os relojoeiros continuam a criar repetidores de minutos e sonneries. Estes mecanismos fazem parte dos relógios mais incríveis e são actualmente as complicações máximas da relojoaria. Há bastantes anos que não se trata de serem úteis, trata-se de serem fascinantes. Foi exactamente a partir da altura em que perderam a utilidade que os relojoeiros conseguiram ter a liberdade para criar obras fantásticas como o Grande Sonnerie da Greubel Forsey, o Sonnerie Souveraine (Calibre 1505) de F.P. Journe, ou o Bird Repeater da Jacket Droz (Ref. J031033204).

Caracol © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Caracol © Paulo Pires / Espiral do Tempo

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