O que é que se está a passar para que, subitamente, relógios que até há pouco tempo eram considerados ostensivos ou de gosto duvidoso estejam a ser celebrados por uma determinada classe de influencers relojoeiros e até pela nova geração de aficionados? Afinal de contas, o kitsch sempre exerceu um perverso fascínio — e as marcas estão atentas.
Em Portugal, o aforismo popular que assegura que ‘gostos não se discutem’ sempre serviu para muitas ocasiões e fazer respeitar diferentes opiniões — e estamos numa era em que o politicamente correto exige que gostos peculiares e exercícios de personalidade sejam mais respeitados do que nunca. Tanto que essa realidade, nalguns casos exacerbada e etiquetada como ‘cultura woke‘, tem gerado um contra-ciclo que é frequentemente pouco recomendável. Mas se acaba por ser parcialmente verdade que há gostos que não se discutem, é absolutamente verdade que os gostos se educam.

Quanto mais se aprende sobre um tema, melhor se compreende essa realidade e mais alargada se torna a perspetiva. Isso é particularmente válido para qualquer manifestação artística em geral — e na relojoaria em particular. Quanto mais e melhor informado estiver o aficionado, melhor ele compreenderá as influências estéticas e históricas por trás de uma determinada peça de modo a valorizá-la condignamente. Porque os gostos educam-se e evoluem, tornam-se mais sofisticados e passíveis de ser discutidos. Nesse contexto, há estilos na história da relojoaria que podem ser considerados mais ou menos atraentes com influências mais ou menos boas. E há um período na história da relojoaria de pulso que tem vindo a ser reabilitado… por vezes artificialmente, mas também porque a moda avança em círculos.

É de certo modo unânime entre a crítica que os anos 80 foram a pior década da relojoaria. O advento do quartzo com relógios muito fininhos e os resquícios arquitetónicos de uma era influenciada pela conquista espacial provocaram uma mescla pouco lisonjeira que originou muitos relógios dignos de outras modas dessa altura que são agora intragáveis — como a ganga de padrão ácido, os volumosos cabelos com permanente e os enormes chumaços nos ombros. Analisando a época segundo padrões mais atuais, havia então uma grande propensão para a fanfarronice, para o exibicionismo, para a ostentação.

Na gíria americana, um douchebag é alguém que evoca precisamente tudo isso. E é por essa razão que sempre defini o pior estilo relojoeiro dessa década como ’80s Douchebaggerie’. Sendo também por essa razão que tenho andado surpreendido com a reabilitação de certos e determinados relógios que vem sendo feita por certos e determinados personagens. Também porque, se ninguém queria antes tais relógios, isso significa que tão peculiar tipologia tem grande margem de crescimento e valorização.

De certo modo, tal reabilitação até pode compreender-se à luz da noção de que a moda se movimenta em círculos. Plus ça change, plus c’est la même chose. Há mesmo quem tenha voltado a usar calças de ganga ácida, permanentes no cabelo e chumaços nos ombros. Como há filmes de Série B dessa altura que são tão maus que se tornaram adorados e transformados em películas de culto. Ou seja, é o perverso fascínio do kitsch a funcionar (pelas razões erradas). O mesmo sucede com os relógios. E há relógios desses tempos que as marcas preferem deixar bem enterradas nos seus arquivos. A Jaeger-LeCoultre nunca mostrou o Rendez-Vous original quando utilizou essa nomenclatura para lançar a linha feminina do mesmo nome que tem feito parte do seu catálogo. Tal como a Rolex não utiliza o Cellini King Midas nas suas retrospetivas históricas.
É muito raro encontrarem-se ícones da relojoaria da década de 80, salvo algumas exceções — como o Panthère, da Cartier. E a maior parte dos relógios mais conhecidos dos anos 80 até nasceram nos anos 70, como o Ebel Sport Classique, o Vacheron 222 e o Piaget Polo, modelos tão caraterísticos da década de 80 com o seu visual dourado e que (especialmente o 222 e o Polo) têm estado de novo na berra.

Mas esses são três dignos representantes da relojoaria desses tempos; depois há todos os outros exemplos de relógios-bracelete de personalidade geométrica e joalheira, como o ‘Cobra’ ou o ‘Bamboo’ da Audemars Piguet, que não merecem estar na mesma categoria ou serem reabilitados apenas porque o foleiro também é pop, numa lógica de Quim Barreiros.
Um nouveau estilo
Um dos protagonistas desse tipo de ressurreição é um norte-americano que dá pelo nome de Mike Nouveau (Nouveau é mesmo nome artístico), um DJ tornado dealer relojoeiro que ganhou projeção nas redes sociais a partir do TikTok; especializou-se nesse tipo de relógios-bracelete dourados e de formas originais ou assimétricas tão caraterísticos dos anos 80. Relógios compreensivelmente votados ao ostracismo porque até há muito pouco tempo eram considerados kitsch ou de mau gosto, e que ele apela de Geezer Watches (Geezer é uma alcunha para ‘velhote’ que não tem de ser especificamente pejorativa). Subitamente, os Geezer Watches tornaram-se num género que tem suscitado interesse transgeracional na comunidade relojoeira e ganho valorização nos circuitos comerciais. Quem diria.

Para já, a nomenclatura não está totalmente correta. Geezer Watches, ou ‘relógios de velhotes’, deviam ser os relógios de bolso dos nossos avós/bisavós. Se os relógios de design integrado dos anos 70 estabeleceram precisamente a génese da era moderna na relojoaria, não se deveria dizer que os relógios da década imediatamente a seguir são antiguidades de velhotes… sob pena de, em comparação, ter de se chamar jurássicos aos relógios vintage das décadas de 30 a 60. O meu colega australiano Felix Scholz disse no seu podcast OT que são «ugly ass watches» e fala mesmo de ‘Estética de Mulher de Mafioso’ (Mob Wife aesthetic), tirada que não anda muito longe da minha designação ’80s Douchebaggerie’.
O certo é que a moda pegou, em especial junto de um público jovem que não foi estigmatizado pelo que a década de 80 teve de pior. E junto de jovens influencers da media relojoeira — como a americana Brynn Wallner (‘Dimepiece’) e o italiano Andrea Casalegna (‘I Am Casa’), que diz que a Geração Z com menos de 40 anos está a gostar muito particularmente desse tipo de relógios. Talvez porque não estiveram diretamente expostos à década de 80, acrescento eu.

Essa ‘reabilitação estilística’ foi tal que houve mesmo uma marca recente, a parceria Toledano & Chan, a criar um relógio do género — o B/1, inspirado no King Midas assimétrico e de design integrado que um certo Gerald Genta desenhou para a Rolex. A execução é boa e o relógio apresenta-se mesmo apelativo, até porque teve por trás da sua criação o experiente colecionador Phillip Toledano. É um excelente exemplo de adaptação com gosto de um estilo kitsch que até recentemente não era propriamente elogiado pelos estetas.

A Anoma e sobretudo a Berneron são marcas contemporâneas que conseguem apresentar excelentes produtos (respetivamente, o A1 First Series e o Mirage, ambos entre os competidores nas suas categorias do Grand Prix d’Horlogerie de Genève 2024) aparentados com essa nova tendência, muito apreciadora de modelos assimétricos ou inspirados nos relógios ‘derretidos’ da famosa pintura ‘A Persistência da Memória’ de Salvador Dali (1931). Num plano ainda mais elevado está o [Re]master Selfwinding da Audemars Piguet, editado numa edição limitada de 250 peças.

E, paralelamente, o novo fascínio pelo sinuoso Cartier Crash que leva homens de elevada estatura e barba rija, como Tom Brady ou Jay-Z, a usar esse peculiar modelo de pendor tradicionalmente mais feminino nascido em Londres na década de 60 e que há quem defenda que tenha sido inspirado pela cultura surrealista; o Crash continua a ser produzido, mas em tiragens muito limitadas — diz-se que apenas um por mês — e com cautelosa entrada no mercado devido à enorme especulação que o tem rodeado (em 2022, um exemplar da primeira série foi leiloado por 1,65 milhões).
As marcas estão atentas, sobretudo as mais baratas — como uma certa Pascal, que entre os 150 e os 300 euros apresenta modelos com essa estética baseada em relógios-bracelete dourados de forte pendor geométrico e com mostradores de pedras exóticas associadas a diamantes (de laboratório). A coleção Octogonal é um exemplo elucidativo de relógios de Douchebag com Mob Wife aesthetics.

Para já, um aspeto positivo a realçar é o retorno dos relógios de forma (quadrados, retangulares, tonneau, assimétricos) após década e meia de tirania dos relógios redondos. O novo Cubitus da Patek Phillipe, de apresentação agendada para hoje, mas entretanto já conhecido, devido a uma fuga de informação com origem na revista Fortune, prova isso mesmo relativamente aos relógios ditos geométricos. Quanto aos Geezer Watches, para onde irá tão estranha tendência?
Só daqui a algum tempo se saberá, com alguma perspetiva e retrospetiva. Como quem viveu os anos 80 sabe distinguir o que de bom e de mau se fez nessa década. Toda a gente pode usar o que bem lhe apetecer e forjar o seu estilo pessoal — mas isso não quer dizer que deixe de existir uma distinção entre o bom e o mau… e também porque uma coisa é a estrada da Beira, outra é a beira da estrada.