São, desde logo, intrigantes e desafiadores, feitos para enganar os nossos olhos. Os relógios misteriosos têm ponteiros que parecem flutuar no mostrador, sem ligação visível ao mecanismo, numa ilusão tão perfeita que desafia a lógica num primeiro momento. Mas, como acontece no ilusionismo, há um truque por trás do mistério. E uma história também.
Mais de dois séculos depois desde que começaram a aparecer, os relógios misteriosos continuam a encantar e a intrigar. Dizemos isto a propósito do catálogo dos leilões de primavera da Phillips, em associação com a Bacs & Russo, que contemplou nove relógios de mesa da Cartier, anunciados como «peças de qualidade museológica provenientes de uma prestigiada coleção privada». Entre os relógios em causa, a leiloeira destacou vários exemplares que revelam o engenho criativo da casa francesa precisamente no domínio dos designados relógios misteriosos durante o período Art Deco. Um deles, o Portico Mystery Clock N.º.3, foi mesmo arrematado por quase 4 milhões de francos suíços. Mas, afinal, o que é um relógio misterioso? E o que tem de especial?
Tempo flutuante

Enigmas feitos de vidro, rodagens e ponteiros, os relógios misteriosos não fazem do tempo um segredo (como acontece com muitos relógios-pendente, por exemplo), nem um momento à nossa medida (como no caso do Temps Suspendu, da Hermès). Nesta tipologia de peças, o mistério está antes associado aos ponteiros que parecem flutuar num mostrador transparente, sem uma ligação aparente ao mecanismo, numa solução que intriga à primeira vista. Mas, por mais misteriosos que os ponteiros flutuantes possam parecer, existe, naturalmente, uma explicação para tudo isto, ou melhor, um truque. Afinal, a história destes curiosos relógios até se cruza com a história do ilusionismo.
Magia (da) mecânica
As raízes do ilusionismo moderno estão, de facto, ligadas ao mundo da relojoaria mecânica. Se recuarmos no tempo, vamos descobrir o modo como, nos finais do século XIX e inícios do século XX, as artes performativas ligadas ao ilusionismo (ou prestidigitação), se foram afirmando também com recurso a engenhos mecânicos, muitas vezes a partir de uma base mecânica relojoeira.

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por Cesarina Sousa
Numa altura em que não existiam as tecnologias que existem hoje e em que as crenças enraizadas e a cultura geral menos acessível abriam portas ao maravilhamento, não é difícil imaginar o encanto provocado por peças articuladas que se mexiam milagrosamente, numa imitação da natureza ou até do ser humano. Se ainda hoje, aliás, os autómatos da Van Cleef & Arpels ou da Jaquet Droz nos deixam de queixo caído, mesmo quando sabemos que têm coração mecânico, imaginemos o impacto deste género de peças em séculos passados.
Mas continuemos.
Tal como já contámos (e nunca nos cansamos de recontar), Jean-Eugène Robert-Houdin (1805–1871) talvez seja o exemplo mais evidente da ligação entre a relojoaria e o ilusionismo. Considerado o ‘pai do ilusionismo moderno’, foi ele que conseguiu elevar o estatuto desta arte performativa de rua a uma profissão digna de um palco.

Nas suas Memoirs, Robert-Houdin recorda que era filho de um relojoeiro que, «apesar de não ter a elevação dos Berthouds ou dos Breguets, (…) era reputado por ser muito talentoso na sua profissão». No entanto, uma compra acidental acabaria por mudar o rumo da sua vida: ao adquirir o Dictionnaire Encyclopédique des Amusements, des Sciences Mathématiques et Physiques, em vez do Traité d’Horlogerie de Berthoud, despertou em si um novo fascínio e, com ele, a ambição de aplicar o seu talento na relojoaria e o gosto pela precisão ao serviço do ilusionismo, entre muitas outras invenções e atividades que viria a desenvolver. Foi nesta linha que, ao longo da sua carreira como ilusionista, o francês, cujo nome inspirou o célebre Harry Houdini, se destacou graças aos autómatos realistas que criava e utilizava nos seus espetáculos. Não é, pois, de estranhar que, ao tornar possível o aparentemente impossível como foco de vida, a relojoaria tenha continuado a ocupar um lugar central. E é aqui que surgem os enigmáticos relógios com ponteiros flutuantes.
Relógios misteriosos

Robert-Houdin é frequentemente referido como o criador dos relógios misteriosos. No entanto, Juan F. Déniz, num extenso artigo de 2018 dedicado ao primeiro relógio transparente, menciona nomes como Louis-Sébastien Lenormand, Philippe-Auguste Dclos e André Peschot, que já em 1819, e antes de Robert-Houdin, se dedicavam a este género de relógios, além de citar outros nomes posteriores, sempre num contexto marcadamente francês. Curiosamente, segundo o mesmo autor, Robert-Houdin terá sido o único, de entre eles, a não patentear o seu sistema. Ainda assim, talvez pela sua ligação ao ilusionismo ou pela sofisticação técnica da sua abordagem num relógio de pêndulo (ou pela associação a Cartier, como veremos), é o seu nome que permanece como o mais mediático e associado, até hoje, à história desta tipologia de relógios.

De facto, em maio de 1839, Jean-Eugène Robert-Houdin apresentou, na Exposition des Produits de l’Industrie Française, um relógio de pêndulo com mostrador transparente, no qual dois ponteiros pareciam flutuar misteriosamente, sem que fosse possível perceber qualquer ligação visível ao mecanismo. Décadas mais tarde, em 1888, M. Hugues Rime patenteou um relógio de bolso com o nome de montre mystérieuse, que viria a apresentar na Exposição Universal de Paris, em 1889, também com ponteiros aparentemente flutuantes num mostrador. A invenção surpreendeu, mas enquanto algumas pessoas encaravam a inovação como algo de fascinante, outras consideraram que se tratava apenas da miniaturização da solução de Robert-Houdin, como explica Juan F. Déniz no artigo referido.
No entanto, foi nos princípios técnicos desenvolvidos por Robert-Houdin que Maurice Coüet se inspirou para criar o Model A, de 1912, o primeiro relógio misterioso feito para Louis Cartier, que era particularmente fascinado por este tipo de engenhos. O primeiro de muitos, porque, desde então e até hoje, a casa francesa apresentaria uma grande diversidade de relógios misteriosos. Incluindo os relógios de mesa presentes no leilão e relógios de pulso, claro, nos tempos mais recentes. E atualmente é uma das marcas que mais se tem dedicado à magia desta tipologia encantada.
O truque
Nos relógios misteriosos, os ponteiros parecem flutuar no mostrador sem ligação aparente a um eixo central ou a um mecanismo estável, como já vimos. Portanto, a dúvida reside em saber como funciona. Mas, na verdade, o relógio funciona como todos os relógios mecânicos, numa relação em que o movimento é transmitido ao ponteiros através de rodas dentadas invisíveis, bem disfarçadas pela moldura do relógio, que vão girando a velocidades diferentes. Já o mecanismo permanece escondido, na base, caso seja um relógio de mesa, ou na periferia, caso seja um relógio de bolso. E a relação entre componentes é quanto mais genial quanto melhor disfarçada estiver.
O Museu Robert-Houdin, em Bois, França, dispõe de um exemplar de um relógio misterioso assinado pelo ilusionista francês composto por três placas de vidro transparente. E, tendo em conta a pertinência, recomendamos um vídeo que nos fala do seu modo de funcionamento:
O resto é história, criatividade e espírito inventivo. Com base no mesmo princípio de disfarçar a fonte do movimento dos ponteiros, ao longo dos tempos, foram lançados os mais diversos relógios misteriosos e, tal como em tudo na relojoaria, a evolução foi permitindo a sua miniaturização cada vez mais afinada até à sua engenhosa integração em relógios de pulso.
Magia dos nossos tempos
Ao longo da história, diversas têm sido as marcas a lançar relógios com mostradores misteriosos, tendo em conta o modo como as possibilidades de miniaturização vieram elevar as possibilidades criativas, tanto com movimentos de quartzo, como com movimentos mecânicos.

A década de 1980 é frequentemente citada como o período em que surgiram os primeiros relógios de pulso com mostradores transparentes, destacando-se a marca Quinting, que foi além ao integrar complicações adicionais às funções de horas e minutos. No entanto, o universo da relojoaria mecânica já tinha explorado, em décadas anteriores, o conceito de ponteiros flutuantes em relógios de pulso. Nestes casos, embora os marcadores do tempo parecessem suspensos entre vidros, havia sempre um mostrador sólido como fundo, pelo que não se tratava de uma transparência completa como a que se assumiu mais tarde.
Depois, chegamos a 2008, ano em que Konstantin Chaykin introduz a solução misteriosa com ponteiros flutuantes num mostrador transparente num relógio de pulso mecânico a que chamou Mystery 1000 Jewels e que tinha indicação de 24 horas.

Mas o caso do mestre russo tem contornos especiais. Num artigo do site WatchPro, conta-se que, em 2012, Konstantin Chaykin acabaria por mais tarde mudar o nome dos seus relógios ‘Mystery’ para ‘Levitas’ com esta apresentação a ser feita em 2013 e com o desenvolvimento paralelo de uma versão com turbilhão.
Porém, nessa altura, a Cartier surpreendeu com novas interpretações da relojoaria misteriosa, graças ao trabalho de uma equipa de especialistas liderada por Carole Forestier-Kasapi (atualmente na TAG Heuer). A marca apresentou assim não apenas modelos de dois ponteiros com efeito misterioso, mas também o Rotonde de Cartier Double Mystery Tourbillon, que, em vez de adotar ponteiros flutuantes, explorava o conceito de um turbilhão flutuante, elevando ainda mais o fascínio técnico e estético da complicação.

Perante os lançamentos da Cartier, Chaykin Chaykin optou por deixar o projeto em suspenso, apesar de a sua abordagem ser inovadora. Diferente do turbilhão da marca francesa, a sua solução apresentava «os ponteiros dos minutos e das horas instalados coaxialmente no mesmo mostrador transparente», como destaca o WatchPro. Ainda assim, o projeto permaneceu na gaveta até hoje, embora, segundo o próprio mestre, tudo esteja pronto para ser produzido. A marca, por sua vez, continuou a desenvolver a linha Levitas, como o prova o Levitas Moonphases, por exemplo, entre outros relógios de pulso.

Por sua vez, a Cartier continuou a investir nesta especialidade, destacando-se com criações cada vez mais surpreendentes. Um exemplo notável é o Rotonde de Cartier Masse Mystérieuse no qual, de forma aparentemente mágica, a massa oscilante — que incorpora todo o mecanismo — gira em torno dos ponteiros, num hipnotizante jogo de transparências. Mais impressionante ainda é o facto de todos os componentes responsáveis pela geração de energia, transmissão e regulação estarem integrados no próprio rotor, que, além disso, é esqueletizado. Neste modelo, os ponteiros não estão ligados diretamente ao movimento; em vez disso, são fixados em dois discos de cristal dentados, que giram e indicam as horas e os minutos.

Ainda assim, marcas como a Montblanc, a Louis Vuitton, a Jaeger-LeCoultre, a Vacheron Constantin e até a Breguet — que, ainda antes da Cartier ou de Chaykin, tinha lançado um turbilhão misterioso combinado coma indicação regular das horas (em 2007) — também têm algo a dizer. Basta uma breve pesquisa online para sermos confrontados com uma diversidade surpreendente de relógios de pulso, antigos e recentes, que revelam bem o poder da criatividade quando se parte de um conceito aparentemente tão simples, mas profundamente inventivo.

Em última análise, talvez o verdadeiro mistério dos relógios misteriosos não resida na forma como disfarçam os meandros do seu funcionamento, mas no modo como nos fazem olhar para o tempo como um espetáculo de engenho e de imaginação. São objetos que desafiam aparentemente a lógica da relojoaria ao mesmo tempo que a celebram na sua expressão mais poética, mas lúdica também. Talvez seja neste equilíbrio entre ilusão, mecânica, inovação e originalidade que se encontra o truque do seu fascínio, capaz de justificar não só a admiração que despertam desde as suas origens, mas também os valores impressionantes que alguns exemplares atingem em leilão.
E terminamos com mais um momento de magia. Sem ‘abracadabras’, mas muita perícia relojoeira: