A relojoaria tem formas de brincar com os nossos sentidos como se de ilusionismo se tratasse e muitas vezes consegue fazê-lo com recurso a elementos autómatos ou exercícios mecânicos de transformação – fazendo lembrar as origens do ilusionismo moderno. Há ainda efeitos óticos produzidos por técnicas artísticas ou engenhosas formas de nos iludir. E nós, conscientes de tudo isto, deixamo-nos levar.
Artigo originalmente publicado no número 73 da Espiral do Tempo (edição de inverno 2020) e atualizado para publicação online.
Há uns anos, a A.Lange & Söhne lançou uma brilhante campanha em vídeo que destacava as suas artes de relojoaria quase como se de magia se tratassem. De um fundo bem negro, duas mãos, com bonitos gestos tão associados aos ilusionistas, mostravam como a marca alemã produzia relógios mecânicos exclusivos com calibres de manufatura e inovações técnicas de relevância. O vídeo terminava com uma sugestiva afirmação: «It’s not magic, it’s A. Lange & Söhne».
Aqui está o vídeo com de que estamos a falar e que do qual retirámos a imagem de abertura deste artigo:
O sentido prático alemão fez-se bem notar. Podia parecer magia, mas as artes de criação relojoeira levadas a cabo pela marca eram mesmo reais e não pura ilusão. E sim, para produzir os instrumentos do tempo com a sua assinatura, a Lange contava com o apoio de um importante trabalho literalmente de manufatura e de artes tradicionais de relojoaria, sem descurar o apoio de modernas tecnologias. Assim era há uns bons anos, na altura do lançamento da campanha, e assim continua a ser.
Aliás, nada do que se faz em relojoaria é fruto de artes mágicas. Porém, não deixa de ser curioso que as origens do ilusionismo moderno têm uma certa ligação ao mundo da relojoaria mecânica e, ainda hoje, não sendo magia ou ilusionismo, a relojoaria tem uma capacidade maravilhosa de pôr à prova os nossos sentidos – como o próprio ilusionismo o consegue fazer tão bem.
Ilusões mecânicas
O ilusionismo (ou prestidigitação) pode ser definido como uma arte performativa que tem como objetivo transmitir a ilusão de que algo impossível de acontecer realmente aconteceu. Com uma história que remonta ao Antigo Egito, o ilusionismo fez-se ver das mais diversas formas ao longo dos tempos e o cerne passou sempre por impressionar o público iludindo, muitas vezes, os seus sentidos – em especial a visão. O francês Jean-Eugène Robert-Houdin (1805-1871) é considerado como tendo sido o ‘pai do ilusionismo moderno’ pelo modo como conseguiu elevar o estatuto desta arte de rua a uma profissão respeitável, digna de um palco. E é aqui que entra a relojoaria.
Se, no século XVIII, o suíço Pierre Jaquet-Droz (1721-1790) e os seus filhos Henri-Louis Jaquet-Droz e Jean-Frédéric Leschot se distinguiam já pela construção de autómatos que fascinavam pelos seus movimentos – uma arte frequentemente abordada pela marca Jaquet Droz e que podemos ver também perpetuada no atelier de François Junod –, mais tarde, a partir do século XIX, os autómatos e androides, enquanto máquinas mecânicas que reproduziam movimentos automaticamente, encantaram e surpreenderam o público pela sua aproximação à realidade, tornando-se, em alguns casos, elementos cruciais para tornar mais impressionantes os truques de ilusionismo. Pois, Jean-Eugène Robert-Houdin (cujo nome inspiraria o nome artístico de Harry Houdini) foi uma personalidade de relevância neste campo.
Filho de um relojoeiro – que, nas palavras do próprio ilusionista, «apesar de não ter a elevação dos Berthouds ou dos Breguets, (…) era reputado por ser muito talentoso na sua profissão» –,chegou mesmo a apresentar um relógio com dois discos de vidro que davam a ilusão de que os ponteiros estavam a flutuar. O segredo estava no movimento escondido na base. Os princípios desta peça inspirariam mais tarde o relojoeiro Maurice Coüet a criar o primeiro relógio misterioso para Louis Cartier, o Model A, de 1912. Desde então, estes relógios tornaram-se numa espécie de assinatura da marca. Porém, as noções de mecânica adquiridas graças à formação relojoeira de Jean-Eugène Robert-Houdin permitiram também ao francês prosperar no âmbito da sua paixão, o ilusionismo, muito graças aos autómatos realistas que conseguiu desenvolver. O seu truque da árvore capaz de, num ápice e para surpresa de todos, fazer nascer laranjas, tornou-se conhecido no mundo inteiro.
Na nossa atualidade, os autómatos já não impressionam da mesma forma, mas continuam a fascinar. Principalmente quando reduzidos a uma escala mínima que cabe em pequenas caixas que nos dão as horas no pulso. A Van Cleef & Arpels consegue prender a nossa atenção com animações que nos contam histórias de encantar e a própria Jaquet Droz mantém-se fiel ao seu legado com modelos como o Charming Bird, entre tantos outros, inspirados em autómatos históricos da casa. Há marcas também que nos apresentam deliciosas transformações mecânicas aos nossos olhos: o RM 19-02 Tourbillon Fleur da Richard Mille integra uma flor que, ao abrir, permite fazer emergir um turbilhão.
Já o Montblanc Timewriter 1 Metamorphosis de 2010 foi lançado enquanto cronógrafo que, através de um sistema deslizante de abertura, conseguia dispor de dois mostradores do mesmo lado. E até a Ulysse Nardin ou Antoine Preziuso desafiam os nossos sentidos com atrevidos relógios eróticos que nos surpreendem, graças aos movimentos produzidos pelas personagens que se encontram nos mostradores – nada que não tenha um passado também.
Desta forma, e muitas vezes acompanhada do batimento de pequenos martelos, a relojoaria consegue roubar-nos do mundo real, fazendo-nos perguntar como é possível a criação de máquinas tão ínfimas, mas tão incríveis. E tal, como acontece no ilusionismo, faz-nos crer que o que parece impossível pode realmente acontecer. Mas há outras formas de o fazer também.
Efeitos óticos
Os mostradores dos relógios são muitas vezes trabalhados de modo a produzirem efeitos óticos que transmitem uma sensação de movimento. Esse tipo de efeitos acontece de diversas formas e, geralmente, consegue-se através de um trabalho decorativo complexo – mesmo ao nível do caráter artesanal. Kari Voutilainen tende a ser referido pela riqueza e grau de detalhe do trabalho de guilloché dos seus relógios, mas o caso do Vingt-8 é especial porque o seu mostrador cria uma ilusão ótica através de diferentes tipos de decoração. A zona central do relógio em esmalte transparente foi minuciosamente polida deixando espaço para viver a decoração guilloché. O mostrador azul e prateado cria assim uma ilusão ótica parecendo estar em constante movimento.
Outro exemplo é o Horizon Watch criado por Marc Newson para a Ikepod de outros tempos. Este relógio, segundo o próprio Marc Newson, «faz referência ao ‘horizonte de eventos’ na astrofísica, a fronteira do buraco negro e o momento em que a gravidade se torna infinita, quando tempo e espaço desaparecem. A sua referência ao fim matemático do tempo e espaço sublinha a poesia da natureza fugaz da própria contagem do tempo». O efeito do mostrador cria uma ilusão ótica de aparência convexa, contribuindo para reforçar a tridimensionalidade da caixa. Já o mais recente Ikepod Seapod S001 Zale parece criar um efeito contrário, graças ao mostrador que se afunda na caixa.
Já no caso do recente Royal Oak Concept Frosted Gold Flying Tourbillon da Audemars Piguet o mostrador surge com anéis em azul profundo dispostos em escada que mimetizam uma imagem de afunilamento. Mas ainda no âmbito dos efeitos óticos, há modelos que, através do movimento de alguns dos elementos do mostrador, conseguem criar uma interessante ilusão, tal como acontece com o Cocktail Watch da Ernest Borel.
Neste relógio, um disco central rotativo é decorado com uma ilustração que, perante a rotação parece que vai mudando de forma. E o que dizer do Mondia Top Second, um instrumento do tempo dos anos 70 que tem no mostrador um ponto vermelho intermitente? De facto, esse pequeno ponto é, na verdade, uma abertura circular que serve de janela para uma ventoinha com duas pás que rodam uma vez a cada dois segundos, surgindo cada uma delas à janela em cada segundo.
Com este dispositivo, a marca criava a ilusão da existência de uma luz intermitente no mostrador, como forma de mostrar que o relógio estaria em funcionamento. Numa análise que pode ser lida no nosso site, refere-se que «[a]inda não se sabe bem a razão desta invenção. O que sabemos é que se trata de uma ideia fantástica, incrivelmente bem executada. Pela altura em que este movimento foi criado, os relógios de quartzo eram preferidos em relação aos relógios mecânicos. Um ponto intermitente que se assemelhava a uma luz mostrava que os relógios mecânicos também conseguiam acompanhar a inovação criada pelos relógios digitais». Uma explicação que torna este um relógio muito especial.
Trabalhos decorativos
Continuando, há que reforçar o papel dos trabalhos decorativos como forma de desafio aos nossos sentidos. Através dos acabamentos ou elementos de decoração é possível simular texturas, criar a ilusão de profundidade ou efeitos 3D. Não se trata de magia, não se trata de ilusionismo. Trata-se antes da utilização dos melhores recursos para conseguir o efeito desejado. Cada vez mais, são apresentados relógios com mostradores que simulam a textura de tecidos, como o fez a Chopard com o L.U.C XP IL Sarto Kiton, cujo mostrador evoca o padrão pied-de-poule, tendo em conta a colaboração com os Kiton Ateliers de confeção.
Por outro lado, há texturas vivas que simulam realidades, como acontece com o mostrador do Alpine Eagle, também da Chopard, com um motivo circular soleil inspirado diretamente na íris da águia que dá nome à coleção. A criação de efeitos decorativos nos relógios pode ser feita através de guilloché, de galvanoplastia, de gravação ou esmaltagem, entre tantas outras técnicas possíveis, mas o resultado tende a ser por vezes imersivo pelos efeitos conseguidos. O mostrador do Czapek Antartique Abyss distingue-se pelo azul inspirado, segundo a marca, pelas profundezas e constante movimento do Oceano Antártico, fazendo lembrar de alguma forma um ambiente gelado graças ao acabamento envernizado criado pela Metalem. A técnica consiste em envernizar, pintando à mão com recurso a um pincel, lacar e depois polir.
A ilusão do relógio parado
Tudo isto que falámos não exclui os relógios mais simples.
Em última análise, quantos de nós já não ficámos perdidos no tempo por termos fixado momentaneamente os nossos olhos no ponteiro dos segundos? E quantos de nós não tiveram já aquela sensação de que o ponteiro dos segundos parece parado quando olhamos para ele? Pois bem, a ciência explica esta ilusão: segundo a neurocientista Amelia Hunt, a paragem a que assistimos quando olhamos para o ponteiro dos segundos é uma forma de antecipação de movimento feita pelo nosso cérebro, tendo em conta que se trata de um movimento que o próprio conhece bem. O nosso cérebro vê assim esse movimento antes de ele acontecer.
De acordo com o que lemos num artigo publicado no site da revista Sábado, «no estudo conduzido por Hunt em 2009, o nosso cérebro vê o ponteiro mover-se 39 milissegundos antes do mesmo se deslocar para a posição. E por isso é possível dizer que em algumas situações, o cérebro é mais rápido que o próprio tempo»*. O que tem a sua piada. «Hunt escreve ainda que caso o nosso cérebro não conseguisse prever estes ajustes, o ser humano iria desorientar-se quando move os olhos, já que tudo na retina muda de lugar. Seria o mesmo efeito que rodar a cabeça muito depressa para o outro lado, de cada vez que se mexia os olhos».
Por fim, há que referir que, além do ponteiro dos segundos, uma das formas mais especiais que as marcas têm de nos prender a atenção, quase como se nos hipnotizassem (afinal o hipnotismo é muitas vezes usado por ilusionistas!), é mesmo através do turbilhão. Este dispositivo criado para compensar os efeitos da gravidade na precisão do relógio, é hoje fonte de fascínio e de mecânica de exceção. Ao olharmos ininterruptamente para o seu movimento constante, paramos por instantes no tempo. E se esse dispositivo for esférico, como se estivesse a sair do mostrador, ainda mais nos transmite aquela sensação de que não estamos bem aqui.
Portanto, mesmo sabendo que nada do que é feito em relojoaria acontece sem explicação, acabamos mesmo por ficar rendidos a esta espécie de ilusionismo (quase magia) que os criadores de relógios têm em mãos. Afinal, não sendo ilusionistas, conseguem brincar com os nossos sentidos e desafiar a nossa imaginação além do inimaginável.
** Diogo Barreto «Por que razão é que o relógio para quando olhamos para ele?» in sábado.pt (publicado em 20/09/2017)