Um dos colaboradores da Espiral do Tempo tem vindo a explorar ‘as complicações inúteis‘ em relojoaria, considerando que, a partir do momento em que os relógios mecânicos foram preteridos a favor dos relógios de quartzo, puderam libertar-se do fardo da utilidade e passar a ser abordados também artisticamente. «Nesta perspetiva, é a utilidade que permite separar o artesanato da arte». Hoje, trago aqui um outro ponto de vista e até complementar: um relógio nunca poderá ser considerado ‘Belo’ porque na sua génese estará sempre a utilidade. Como tal apenas poderá aspirar a ser considerado Útil. A minha base de reflexão: Immanuel Kant.
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O pragmatismo da afirmação acima faz parte do sistema kantiano tal como postulado na obra A Crítica da Razão Pura. Pretendia o filósofo alemão Immanuel Kant fazer uma estruturação dos conceitos estéticos e da linguagem usada para os designar. Em boa verdade, enquanto disciplina puramente teórica, a Filosofia não julga e conceitos como «Útil» e «Belo», por exemplo, não são classificadores de valor ou relevância, mas antes conclusões de um sistema de pensamento.
O Útil, o Agradável, o Bom, o Belo e o Sublime
Conta a história que Immanuel Kant era uma pessoa rotineira. Os seus hábitos absolutamente regulares levavam a que os seus vizinhos soubessem que horas eram em determinada altura do dia quando o viam passar. Não era um esteta no sentido específico, era um filósofo no sentido lato e muitos dos termos que atualmente usamos num determinado contexto significam para Kant algo de bastante diferente.
Então quais são as razões para que no sistema kantiano um relógio não possa ser considerado Belo? Ou melhor, porque é que é que, tendo em conta este sistema, é incorreto designar por «bela» uma peça de relojoaria?
Pois bem, para Kant, em termos de uso e usufruto, a nossa relação com o mundo e com as suas coisas pode dividir-se em cinco categorias: o Útil, o Agradável, o Bom, o Belo e o Sublime.
Kant começa precisamente pelo Útil.
Um martelo, uma cadeira ou um copo são coisas úteis. Servem um propósito prático. A sua função está presente em todos os momentos da sua criação. O seu fito é a adequação a um determinado propósito. São criados ‘para’. É este o motivo pelo qual Immanuel Kant não considerava a arquitetura uma Arte e, neste contexto, não consideraria certamente a relojoaria.
O Agradável.
O Agradável é sobretudo sensorial. Apela aos sentidos no pragmatismo do manuseamento e da fruição sensorial.
Kant continua com o Bom.
O Bom é mais complexo e não resulta do manuseamento da matéria, mas sim da racionalização sobre conceitos ligados a ações de ordem Ética e Moral.
Segue-se o Belo.
O Belo não serve para comer ou beber. Não podemos martelar um prego com ele e não tem qualquer outro intento que não seja ser fruído pelos sentidos. Na sua criação não existe qualquer outra motivação que não seja apenas o próprio ato criador. É Inútil, portanto. Esta ausência de propósito prático, em Kant, é o grande atributo do Belo mas importante é também saber que o Belo pode advir da Arte e que o seu criador é o Artista.
Kant termina com o Sublime.
Só a Natureza é capaz do sublime. Uma tempestade grandiosa, a força do oceano, um pôr-do-sol, ou a vastidão do Universo. Tudo isso está fora do alcance do Homem o qual apenas pode assistir reconhecendo a sua insignificância perante tal majestade, experimentando assim o Sublime.
Mas em todas estas teses o elemento comum é o Homem, o sujeito. Para Kant nenhum dos atributos está nas coisas em si mas no Homem que as perceciona.
Eis aqui algumas palavras do próprio Kant:
«O sublime comove, o belo encanta. O semblante do homem que se encontra em pleno sentimento do sublime é sério, às vezes rígido e ensombrado. Pelo contrário, a viva sensação do belo declara-se no olhar pela sua esplendorosa serenidade, por sorrisos rasgados e por um claro regozijo.»
Immanuel Kant, in Observações acerca do sentimento do Belo e do Sublime.
E a peça de relojoaria?
Após a apresentação resumida desta classificação Kantiana, onde podemos então encaixar uma peça de relojoaria, seja ela um relógio com apenas três/ponteiros ou uma super complicação?
Claramente que os relógios entram na classificação de Útil. Na génese da criação de um relógio está a sua função primordial que é dar horas. Independentemente do seu tamanho, formato, ou a maneira como regista o tempo, a verdade é que sem essa função não cumpre o desígnio para o qual foi criado.
É um objeto que à partida tem essa grande condicionante funcional que se arrasta para a componente criativa e como a sua criação não é totalmente livre de quaisquer pressupostos que não sejam a simples fruição estética não pode entrar na categoria de Belo e, como tal, o seu autor não é um artista, é um artesão.
Kant dá-nos ainda um pequeno vislumbre das suas próprias preferências. Diz-nos também que quanto menos corpóreo for o resultado da criação artística, mais nobre ela é. À luz do enquadramento histórico na época de Immanuel Kant, a Arte resumia-se às suas manifestações mais óbvias: pintura, escultura, música, etc. Não se esqueçam que o mestre alemão não considerava a arquitetura como uma arte e que à data da sua morte, o cinema ainda não tinha sido inventado.
Mas escrevia o filósofo alemão de que a ausência de corporeidade no resultado da criação artística era um sinal de maior nobreza dessa mesma arte. Vejamos exemplos simples. Um escultor culmina o seu ato de criação através de um objeto, uma escultura. Seja de que tamanho ou material for, uma escultura tem sempre uma manifestação física. O mesmo se passa com a pintura. O ato de criação artística culmina numa tela pintada. Se bem que a pintura e a escultura possam remeter para situações de impacto estético muito para além da apreciação dos materiais e destreza no seu manuseamento o facto é que o resultado é sempre algo corpóreo.
Neste aspeto em particular Kant valorizava a poesia e sobretudo a música. No caso da música a partitura não é a obra, é o conjunto de instruções para se chegar à obra. O resultado carece de corpo, é etéreo e na opinião do filósofo isso dota esta particular manifestação artística de uma nobreza maior em comparação com as outras artes.
Desconstruindo
Resumindo. Nesta perspetiva, a relojoaria não é uma arte, um relógio não pode ser considerado Belo e um relojoeiro nunca entrará na categoria dos artistas.
Mas eis que chega um urinol em auxílio das peças de relojoaria. Um urinol no sentido literal.
Por incrível que pareça, um simples urinol introduziu nas nossas vidas um conceito que ainda hoje é quase desconhecido, mal usado mas absolutamente fundamental quando se aprecia um relógio. Quando Marcel Duchamp exibiu um urinol em 1917 apresentou um objeto que, segundo a lista de Kant, estava na escala do Útil. Foi criado para uma função.
Duchamp desenquadrou esse objeto do seu propósito e apresentou-o numa galeria para ser fruído como Arte. Mais do que o conceito de ‘ready-made‘ Duchamp inaugurou o conceito de ‘Objeto de Arte’ — algo que não tendo sido criado para ser Arte, tem nele características estéticas que, ao serem reconhecidas, o elevam a outro estatuto, o estatuto de Objeto de Arte.
Uma Obra de Arte é algo que foi criado dentro do mundo artístico por um artista. Um Objeto de Arte é algo que foi criado para outra função, mas ao qual se reconhecem caraterísticas estéticas que o elevam para além do seu propósito inicial.
Por isso caros leitores, se, segundo Kant, um relógio nunca poderá ser uma ‘Obra de Arte’ porque tem a sua utilidade, parece-me que muitos deles merecem, sem dúvida, ascender à categoria de ‘Objetos de Arte’.
Aproveito para referir que o colaborador da Espiral do Tempo Nuno Margalha nos tem apresentado alguns textos que abordam as, por ele chamadas, ‘Complicações Inúteis’. A sua abordagem do ‘Inútil’ talvez seja mesmo a busca pela Arte na relojoaria! Aconselho vivamente a leitura. Assim como aconselho a leitura da crónica «O Tempo está morto. Viva o Tempo», publicada no número 70 da Espiral do Tempo e também da sua autoria, que, tendo como base várias perspetivas e teorias da física, reflete sobre a necessidade de pensarmos o tempo de uma outra forma e de os relógios redescobrirem a sua função. Neste texto, a cereja no topo do bolo é a sua proposta de relógio conceptual: o Zero.
Nota final: O pensamento Kantiano é demasiado vasto e rico para poder ser abordado de modo exaustivo num pequeno artigo, obviamente. Há quem tenha passado décadas escrevendo notas de rodapé nos ensaios do filósofo alemão. Quero com isto dizer que o mundo do pensamento é infinito, não há certos nem errados e nem tão pouco respostas conclusivas. O que a filosofia nos pode ensinar de melhor é questionar sem parar na tentativa de percebermos melhor o nosso lugar no mundo e do nosso relacionamento com o que nos rodeia.
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