Silício e o progresso da relojoaria

A relojoaria mecânica assenta tradicionalmente em técnicas ancestrais baseadas em sistemas comprovados ao longo de séculos. Mas o presente milénio deu a conhecer um material que tem sido gradualmente adotado pelos principais nomes da relojoaria, desde a Patek Philippe à Rolex. Porque é que o silício tem reunido consenso?

Os fundamentalistas da relojoaria mecânica renegavam-no. No início. Mas, como sucedeu na tal frase de Fernando Pessoa, o silício primeiro estranhou-se e depois entranhou-se — e atualmente já está de tal forma entranhado na indústria relojoeira que é um componente fundamental para muitas marcas de topo… e não só.

Vanguardista: o Neo-Escapement da Ulysse Nardin | Foto: Ulysse Nardin

É mesmo incontornável: ao longo das últimas duas décadas, o silício tornou-se no material preferido para aumentar a precisão e a longevidade de um calibre mecânico. Antes do mais, é antimagnético (uma enorme vantagem na era dos smartphones, laptops e máquinas de segurança nos aeroportos), mais leve e mais resistente do que o aço ou ligas aparentadas, imune às variações de temperatura, e dispensa lubrificação. O óleo tem sido utilizado desde sempre — e continua a ser utilizado na maioria dos movimentos — para reduzir o atrito na roda de escape, mas perde qualidades intrínsecas com o tempo e vai evaporando, promovendo desgaste dos componentes e afetando a precisão. A utilização do silício resultou numa taxa inferior de retorno para manutenção nos serviços de pós-venda das marcas, permitindo estender significativamente a garantia para além dos habituais dois anos (hoje a fasquia situa-se mesmo nos cinco e até dez anos!).

A notável espiral Syloxi e o novo sistema de escape utilizado pela Rolex no Land-Dweller | Foto: Rolex

Costuma dizer-se que um movimento de quartzo tem uma duração de vida limitada e que um calibre mecânico pode funcionar para sempre. Mas é preciso cuidar dele, tal como qualquer viatura requer revisões periódicas. Desde sempre, e sobretudo a partir do momento em que se tornaram num objeto portável e pessoal (primeiro no bolso, depois no pulso), os relojoeiros procuraram conceber relógios que mantivessem a sua precisão durante o máximo de tempo possível e que funcionassem de forma tão confiável a -10°C como a 30°C. A temperatura foi o primeiro desafio, mesmo antes dos mais contemporâneos campos magnéticos.

O Baumatic da Baume & Mercier é um bom exemplo da aplicação do silício em modelos mais acessíveis | Fotos. Baume & Mercier

Um balanço deve oscilar regularmente e independentemente da temperatura — o que não é fácil de conseguir com balanços de aço inoxidável: as ligas metálicas normalmente contraem-se com o frio e expandem-se com o calor, fazendo com que os balanços tradicionais oscilem em velocidades diferentes. O fenómeno subjacente é conhecido na relojoaria como isocronismo, que descreve a uniformidade das vibrações. Quanto maior o isocronismo, mais consistentemente o órgão regulador ‘respira’ e mais preciso se torna o movimento.

O silício continua presente nas mais recentes gerações do Freak | Foto: Ulysse Nardin

Tudo mudou quando a Ulysse Nardin apresentou o Freak, em 2001; incluiu aquele que foi o primeiro movimento relojoeiro a apresentar componentes de silício, abrindo caminho para um novo tipo de escape. E mesmo que o primeiro protótipo da equipa de Ludwig Oechslin não fosse perfeito, os benefícios do novo material pareceram evidentes — mesmo os mais céticos foram gradualmente conquistados pelas propriedades e qualidades do silício. A tecnologia do silício foi consequentemente aprimorada e tem sido utilizada por um número cada vez maior de gigantes da indústria, desde a Patek Philippe à Rolex. Mas os desenvolvimentos no setor e a baixa dos custos também já permitem o acesso ao silício por parte de marcas de segmento médio, como a Oris.

O Calibre 400 da Oris também recorre à tecnologia do silício | Foto: Oris

Mas, afinal de contas, o que é o silício? É um elemento semi-metálico e, acredite-se ou não, é mesmo o segundo mais abundante elemento na natureza, logo após o oxigénio. Constitui quase 30% do peso das placas tectónicas da crosta terrestre. É comummente utilizado na produção de tijolos, em painéis solares e na microeletrónica. E há já duas décadas que faz parte da vanguarda da inovação na relojoaria contemporânea — principalmente na criação de componentes como espirais, escapes e osciladores. As suas superiores propriedades aprimoram a precisão e a durabilidade; a sua utilização implica uma mudança de rumo tecnológico e um afastamento da dependência de componentes tradicionais à base de metal.

Vantagens do uso do silício

• Antimagnetismo: o silício é completamente resistente a campos magnéticos, que são uma causa comum de imprecisão nos relógios mecânicos tradicionais. Algo de fundamental no mundo atual, onde os ímanes e os campos magnéticos estão presentes em todo o lado, desde smartphones aos aeroportos.

• Resistência à temperatura: com a adição de um revestimento oxidado, componentes de silício cruciais para um movimento relojoeiro, como as espirais, podem-se tornar resistentes a flutuações de temperatura; o material e o seu revestimento têm reações opostas às mudanças de temperatura, cancelando possíveis erros de precisão.

• Fabrico de alta precisão: ao contrário dos componentes metálicos tradicionais, que são trefilados e enrolados, as peças de silício são produzidas usando um processo avançado de gravação iónica reativa profunda (DRIE); trata-se de um processo que permite conceber geometrias extremamente precisas e complexas, criando formas quase perfeitas que não são possíveis com métodos tradicionais.

• Leveza e durabilidade: o silício é mais leve, mais rígido e mais resistente ao desgaste do que o aço, o que melhora substancialmente a resistência aos choques/impactos e reduz o consumo de energia.

• ​​Dispensa de lubrificação: as propriedades inerentes do silício e a sua alta resistência ao desgaste eliminam a necessidade de lubrificação em superfícies como a roda de escape, fazendo com que os intervalos de manutenção possam ser maiores.

Aplicações pioneiras

Algumas das principais manufaturas, grupos relojoeiros e empresas de pesquisa e desenvolvimento têm procurado manter-se na vanguarda da tecnologia do silício.

Calibre GP4000: o mais recente movimento da Girard-Perregaux inclui um escape de silício | Foto: Girard Perregaux

A Ulysse Nardin surge como incontornável: foi a manufatura de Le Locle que apresentou o primeiro relógio com componentes de silício, o Freak, em 2001; a marca é coproprietária da Sigatec, uma fabricante líder de microcomponentes de silício. A sua sister company, a Girard-Perregaux, também recorre ao silício e utiliza-o no seu mais recente movimento automático, o Calibre GP 4800.

Componentes dos movimentos Advanced Research da Patek Philippe | Foto: Patek Philippe

A Patek Philippe possui uma divisão de pesquisa avançada (Advanced Research) pioneira na utilização de componentes de silício; em 2006, lançou sua espiral de balanço patenteada Spiromax, feita de Silinvar — juntos, os seus componentes avançados de silício formam o órgão regulador de alta tecnologia Oscillomax.

A espiral Syloxi e o escape Dynapulse da Rolex confecionado em silício | Foto: Rolex

A Rolex lançou em 2014 a sua espiral de silício Syloxi, usada inicialmente numa linha de relógios femininos — agora é um componente fulcral dos calibres da marca; o componente é fabricado internamente e também é resultado da colaboração com a CSEM. Este ano, a marca da coroa deu mais um passo em frente com o Calibre 7135 que equipa o Land-Dweller e é dotado de um escape Dynapulse em silício. A Tudor, outra marca do grupo Rolex, também adotou o silício nos calibres proprietários desenvolvidos com o especialista de movimentos Kenissi.

O Calibre MT5602-1U da Tudor inclui componentes em silício | Fotos: Tudor

No que diz respeito ao Swatch Group, a sua dimensão industrial foi fundamental para a democratização da tecnologia do silício — introduzindo-a em muitas de suas marcas, desde as de alta-relojoaria às mais acessíveis. A Breguet estreou relógios com espirais e escapes de silício em 2006; a Omega utiliza a espiral de silício Si14, resistente a campos magnéticos; a Tissot apresenta espirais de silício em muitos modelos com o calibre Powermatic; a Mido: Inclui espirais de silício em alguns de seus movimentos cronómetros.

A Omega e o Grupo Swatch têm-se especializado no desenvolvimento do uso de silício | Fotos: Omega

No grupo LVMH, a Zenith anunciou o Defy Lab em 2017 com o revolucionário Calibre ZO 342, que substitui o balanço tradicional por um único oscilador monolítico de silício (algo também visto na Frederique Constant); já a TAG Heuer tem seguido outro caminho — e investido mais na área do carbono.

O Zenith Defy Lab e aplaca osciladora em silício | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

No grupo Richemont, a Jaeger-LeCoultre tem feito incursões na tecnologia; quanto à Panerai, lançou o Luminor 1950 Carbotech 3 Days em 2017, desenvolvido no seu Laboratorio di Idee — um atelier que é campo experimental para soluções inovadoras — e equipado com componentes de silício; a confiança na qualidade técnica é tanta que ofereceu uma inédita garantia de 50 anos.

Panerai Submersible CarbotechT 47mm - Pam1616
O Panerai Submersible Carbotech 47mm | Foto: Panerai

Num plano mais acessível, a Oris arriscou uma garantia de 10 anos quando lançou o seu Calibre 400 de manufatura em parceria com fornecedores históricos da relojoaria. A Horage também equipa os seus mecanismos com espirais de silício, visando tornar os relógios de alto desempenho mais baratos após o vencimento de importantes patentes de silício.

Limitações e considerações poéticas

Embora o silício ofereça muitas vantagens, os componentes de silício não podem ser reparados. Se uma peça, como uma espiral, for danificada ou apresentar defeito, terá de ser substituída integralmente — o que significa que os proprietários dos relógios dependem de centros de serviço autorizados das respetivas marcas e estão dependentes do seu fornecimento. Depois há a questão das patentes: o desenvolvimento da tecnologia do silício foi protegido durante muitos anos, limitando a sua adoção a alguns grandes consórcios relojoeiros ou marcas com grande pujança económica. A recente expiração de algumas das patentes promete difundir mais o uso do silício na relojoaria.

Tourbillon Souverain à Remontoire d’Egalité: François-Paul Journe dispensa componentes de silício | Foto: Phillips

Depois há toda uma outra dimensão, mais poética e algo transcendente que tem a ver com a alma relojoeira. Os puristas encaram o silício como uma solução paliativa e descartam a sua adoção — porque o foco dos grandes mestres sempre foi o de aprimorar os mecanismos segundo técnicas tradicionais, preferindo recorrer a revestimentos nanotecnológicos isentos de óleo em mecanismos de escape feitos de ligas tradicionais, como o aço, para que relógios não precisem de manutenção durante mais tempo.

François-Paul Journe e o Astronomic Souveraine | Foto: Paulo Pires/Espiral do Tempo

François-Paul Journe é um dos que evita componentes da nova era. O mestre marselhês projetou o seu próprio escape biaxial patenteado em 2001, usando materiais padrão sem qualquer lubrificação no Chronomètre Optimum que estrearia 11 anos depois. E é peremptório: «Relógios de há 200 anos ainda estão a funcionar perfeitamente nos dias de hoje; é por isso que só uso materiais sólidos que provaram o seu valor ao longo do tempo, em vez de materiais modernos que provavelmente não poderão ser reparados dentro de algumas décadas».

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