Sílvio Pereira: o dever de guardar, preservar e partilhar

Formado em Etologia Canina, quase que se pode dizer que Sílvio Pereira coleciona hobbies – entre eles, o colecionismo relojoeiro. Foi a este propósito que, tal como fizemos com Alexandre Perdigão e Nicholas Gatehouse, o desafiámos a responder a algumas perguntas sobre a sua relação com os instrumentos do tempo. Hoje, deixamos a versão completa da entrevista que publicámos parcialmente na edição impressa.

Formado em Etologia Canina e formador de treinadores e terapeutas comportamentais caninos, quase que se pode dizer que Sílvio Pereira coleciona hobbies. Além do colecionismo relojoeiro, dedica-se à numismática, mas também coleciona navalhas e canetas de tinta permanente. Outra das suas paixões é a leitura e a bibliofilia, guardando uma biblioteca com cerca de 3000 volumes. Como tem algum jeito para trabalhos manuais, ainda faz correias para relógios e modelismo, principalmente relojoeiro, quando lhe resta algum tempo. Casado e com dois filhos, gosta de música clássica que costuma ouvir quando está entregue aos seus hobbies.

Ultimamente, tem colaborado com o Instituto Português de Relojoaria, publicando no site todas as quartas-feiras (desde maio), sob a rubrica Quarta de bolso, um texto sobre um dos seus relógios – uma forma de saber mais sobre as peças em si, mas também de compreender e descobrir mais sobre a história da relojoaria.

Repetição de horas e quartos com autómatos Jaquemarts pertencente a Sílvio Pereira
Repetição de horas e quartos com autómatos Jaquemarts pertencente a Sílvio Pereira | © Espiral do Tempo

Amor para a vida toda

O primeiro amor não se esquece (diz quem sabe): como começou o seu percurso enquanto colecionador?

O meu percurso no mundo dos relógios passou por duas fases bem distintas e muito espaçadas no tempo: aos 12 anos decidi ir trabalhar nas férias grandes com o objetivo de canalizar a totalidade do ordenado ganho nesses três meses para a compra de um relógio de marca. A escolha caiu num Tissot automático modelo PR 560-GL, que ainda guardo religiosamente. Lembro-me perfeitamente do seu custo: 1.800$00 foi todo o dinheiro que ganhei nessas férias. Portanto, o bicho começou a corroer-me desde muito novo. Durante muitos anos, o interesse por relógios esteve adormecido e nunca deixei de ter um relógio no pulso, mas o respeito por parâmetros que agora para mim são inegociáveis foi, durante esses anos, negligenciado. Até que, em 2004, vi numa banca de jornais o lançamento de uma coleção de relógios de bolso num cartonado que incluía um relógio de bolso em quartzo e um fascículo, e que iniciava uma coleção desse tipo de relógios. E pronto, o bicho que estava adormecido acordou cheio de vitalidade e pode dizer-se que o relógio do primeiro fascículo dessa coleção que integrava o início de uma coleção por fascículos com entrega semanal foi, efetivamente, o primeiro relógio da minha coleção.

Coleção de relógios de bolso de Sílvio Pereira
Algumas das peças pertencentes à coleção de Sílvio Pereira | © Espiral do Tempo

O que o motiva a colecionar relógios?

Os motivos que me levam a colecionar relógios são vários e é difícil atribuir-lhes uma ordem de importância porque todos eles são importantes:
a) Os relógios muito antigos, séculos XVII, XVIII e primeira metade do século XIX são uma das minhas áreas do colecionismo. O que me fascina nestes relógios é a sua complexidade mecânica, os componentes utilizados, as máquinas e ferramentas que os próprios relojoeiros desse tempo eram obrigados a construir para os facilitar no fabrico das peças, principalmente porque na altura não havia computadores que os auxiliassem no planeamento e elaboração de cada peça. Dos períodos mencionados, o que mais me fascina, acima de tudo, é a segunda metade do século XVII, altura em que foram inventadas a grande maioria dos mecanismos e funções relojoeiras de precisão: primeiro a mola real, que veio substituir os pesos para fornecer energia ao mecanismo, evento que permitiu que os relógios passassem das grandes máquinas que só podiam ser alojadas nas torres das igrejas para o interior de uma caixa. Uma invenção que abriu caminho para os relógios de mesa e portáteis. Depois, ao nível dos osciladores, destaco o pêndulo e o balanço com mola em espiral, graças a dois génios do século XVII: Galileu Galilei e Christian Huygens.

b) As grandes complicações, principalmente em relógios dos períodos acima referidos, também é uma área que me fascina. Os motivos também são basicamente os mesmos, acrescentando, neste caso, a imaginação para criar funcionalidades novas, cada vez mais complexas – não só do seu planeamento, como também na sua execução. Aqui temos como exemplo o Sr. Abraham Louis Breguet que, além de criar um tipo característico de espiral com o seu nome, também inventou o turbilhão e o relógio automático que permite carregar a mola real (corda) somente com o movimento do corpo, entre muitas outras invenções que lhe são atribuídas.

c) Os materiais empregues no fabrico nas caixas dos relógios, principalmente o ouro e a platina, assim como o trabalho artesanal de esmaltagem, cinzelagem e moldagem dessas caixas também é uma área à qual dou bastante importância na escolha de um relógio que possa vir a adquirir.

d) A história dos grandes relojoeiros e das grandes marcas, principalmente as que se mantêm até hoje, mas não só, e o que elas trouxeram de importante para a evolução da relojoaria. A história dos medidores do tempo desde o seu início na China, com a clepsidra. Tenho feito um esforço bastante grande para ter na coleção, pelo menos, um exemplar de cada um dos relógios característicos de cada um desses medidores. Desde a referida clepsidra, muito rara, até ao relógio de pulso solar passando pelos relógios de sol, de azeite, de vela, etc.

e) Por fim, e de não menos importância, é a originalidade. Conseguir adquirir um relógio único, diferente em vários aspetos e que me surpreenda é uma das minhas grandes motivações neste mundo do colecionismo e aqui estão incluídos qualquer tipo de relógios: de bolso, de pulso, de mesa, de parede, etc.

Relógio de bolso
Relógio em ouro, fabricado em França, no final do século XVIII, com dupla caixa © Cesarina Sousa / Espiral do Tempo

Em que momento se apercebeu de que estava ‘irremediavelmente perdido’ por este mundo?

Posso dizer com toda a certeza que o momento em que me apercebi que estava ‘irremediavelmente infetado’ com esta ‘doença’ foi quando, em 2004, me desloquei ao Museu do Relógio, em Serpa, para reparação e restauro de um relógio de pulso do meu pai que me tinha sido deixado em herança – um Zenith. Na altura, encontrava-se no Museu o saudoso António Tavares de Almeida, fundador, e ali tivemos uma tarde inteira de conversa somente sobre relógios. A sua veemência era tanta e a forma apaixonada como falava de relógios era de tal ordem que conseguiu contagiar-me e lançar-me de vez na paixão e colecionismo relojoeiro. Portanto, posso dizer que o grande causador desta ‘doença’ foi António Tavares de Almeida, que a sua alma descanse em paz.

Como descreve a sua coleção?

Apesar de ser constituída por todo o tipo de relógios, atualmente o meu enfoque é em relógios de bolso muito antigos com vários tipos de complicações e, se possível, com caixas fabricadas em materiais nobres. A originalidade e a raridade também continuam a ser para mim importantes na aquisição de exemplares e aqui incluo também outro tipos de relógios. A esqueletização, principalmente nos relógios de mesa e de parede, também é outra área que me fascina e à qual dou muita importância na altura da escolha de exemplares para a coleção. Portanto, posso descrevê-la como sendo uma coleção politemática, com enfoque em quatro áreas: história, originalidade, raridade e complexidade.

Confissões de um colecionador

Coleciona relógios para os usar ou para deixá-los bem fechados na gaveta?

Nem uma coisa nem outra. Coleciono relógios para me deleitar a observá-los, a manuseá-los, a limpá-los, a poli-los, a investigar a sua história, etc. Para mim é impensável ter os relógios armazenados dentro de gavetas. Todos os meus relógios encontram-se em vitrinas, nas paredes ou sobre os móveis. Todas as divisões da minha casa têm relógios e, por outro lado, tenho uma divisão só para eles. É complicado gerir o espaço para os quase 500 relógios que a coleção possui. No pulso, tento variar e dar uso aos mais de 100 que tenho, mas como não é uma área que me fascina muito. Não dou muita importância ao relógio que uso no dia a dia.

Relógio de bolso
Relógio pertencente a Sílvio Pereira | © Cesarina Sousa / Espiral do Tempo

Quanto tempo aguenta sem adquirir um relógio?

Como colecionador penso que já ultrapassei essa fase de comprar porque é hábito e tenho mesmo de o fazer, independentemente do que me motiva. Atualmente é conforme as oportunidades que podem ou não surgir para adquirir ‘aquela’ peça que ando, há meses, à procura.

Se voltasse atrás, que erros que não voltaria a cometer enquanto colecionador?

Não teria comprado os cerca de 100 relógios de bolso de quartzo que adquiri no início da coleção e dos quais agora não tenho coragem para me desfazer. Na fase posterior, quando comecei a comprar relógios de bolso mecânicos, comprava tudo, sem critério. Foi a fase do acumulador. Mas penso que tudo isto faz parte das ‘dores de crescimento’ pelas quais todos os colecionadores passam.

Tem algum relógio que o faça sorrir pela história que guarda?

Tenho um relógio em ouro, fabricado em França, no final do século XVIII, com dupla caixa, uma delas em carapaça de tartaruga, com dias do mês e da semana, complicação que, na altura, já era uma maravilha da micro-mecânica. Adquiri o relógio na Áustria, mas o que mais me chamou a atenção foi o facto de os dias da semana estarem escritos em português. Com a ajuda do Nuno Margalha, fundador do Instituto Português de Relojoaria, e da investigadora Cláudia Paiva, conseguimos seguir o rasto do relógio e saber, com algum grau de precisão, que este pertenceu a Juliana Maria Luísa Carolina Sofia de Oyenhausen e Almeida, filha da quarta Marquesa de Alorna e do conde Karl Peter Maria Joseph August von Oyenhausen-Gravenburg, embaixador de Portugal na corte da Imperatriz Maria Teresa de Áustria. O relógio foi oferecido à nobre portuguesa pelo Conde de Strogonoff, com quem se viria a casar, passando a ser Juliana Condessa de Strogonoff. Há dois artigos muito interessantes acerca da história deste relógio escritos pelo Nuno Margalha no blogue do site do Instituto Português de Relojoaria que recomendo vivamente a leitura. Podem ser encontrados através destes links:
Parte I – https://www.institutoportuguesderelojoaria.pt/post/juliena-fila-a-paris
Parte II – https://www.institutoportuguesderelojoaria.pt/post/juliena-fila-a-paris-ii

Sobre futuros e impossíveis possíveis

Qual o seu grail watch?

O meu grail watch é, sem dúvida nenhuma, o Calibre 89 da Patek Philippe, um relógio de bolso com 33 complicações que, na altura do seu lançamento, era o mais complicado relógio do mundo. Apresentado em 1989 como edição comemorativa dos 150 anos da Patek Philippe, dele foram produzidos apenas quatro exemplares, um em ouro rosa, outro em ouro amarelo, outro em ouro branco e outro em platina, com cada um a valer alguns milhões de euros. É o sonho de qualquer colecionador.

Relógio de bolso
Relógio pertencente a Sílvio Pereira | © Cesarina Sousa / Espiral do Tempo

Neste momento, que destino imagina para a sua coleção?

Devido à qualidade, quer histórica quer de valor associado do acervo da coleção, mas também ao tipo, origem, raridade e estado de conservação de muitas das peças, o ideal era que fossem apreciadas pelo maior número possível de pessoas e isso só seria possível sendo expostas num museu. Não um museu fixo num local, com as respetivas limitações, que valoriza somente o local onde está implantado, mas sim um museu itinerante que percorresse, periodicamente, várias localidades em vários pontos do país. Basicamente, o conceito de ser o museu que ia ter com as pessoas e não as pessoas a deslocarem-se ao museu. Há autarquias que dispõem de espaços culturais, como bibliotecas, museus municipais, espaços de exposições e outros onde se podem incorporar museus temporários que seriam uma mais- valia, em termos de diversidade de oferta cultural, não só para as autarquias em si, mas fundamentalmente para os seus munícipes, enriquecendo, desta forma, a cultura nessas localidades que, em muitos casos, têm um défice gritante de oferta nesta área.

Que pergunta faria a alguém que está agora a começar a ficar ‘irremediavelmente perdido’ pelo mundo dos relógios?

Eu diria de outra forma: «que conselho é que daria a alguém que se está a iniciar neste mundo do colecionismo relojoeiro?» E aqui, indubitavelmente, seria este: deve primeiro certificar-se que todo o seu núcleo familiar está em consonância. Seria ideal partilhar esta paixão, porque, se assim não for, podem ocorrer desentendimentos com frequência e com consequências imprevisíveis. De resto, é seguir os instintos, informar-se o mais possível sobre a relojoaria em geral e o colecionismo relojoeiro em particular, sobre a peça que pensa adquirir, a sua história e o que de mais-valia poderá trazer à sua coleção. Irá cometer erros, é verdade, mas que colecionador nunca os cometeu?

O colecionador de relógios Sílvio Pereira
Sílvio Pereira | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Autorretrato

Identifica-se com algum ou alguns dos estilos de colecionador que tentámos isolar [no artigo «Eu e os Outros» publicado no número 79 da Espiral do Tempo] ?

Como colecionador identifico-me com todos. Passei por todos eles em alguma fase do meu percurso como colecionador de relojoaria:

Narciso: Um colecionador é sem dúvida um narcisista. Como dá muito valor à beleza e pretende que esta se reflita em si próprio tenta adquirir peças que, segundo o seu conceito de beleza, sejam uma emanação de si. Acho que tenho um pouco dessas características, porque, como dou muito valor à estética e ao equilíbrio de cada peça que aprecio, apesar de ser um conceito subjetivo, tento que tenham um fio condutor e se coadunem com a minha maneira de encarar a beleza.

Meticuloso: Como colecionador, todos os relógios devem funcionar. Esse é o objetivo de quem os concebeu e fabricou. Não faz sentido um relógio, por muito antigo que seja, não funcionar, senão deixa de ser um medidor do tempo e passa a ser um bibelot. Com relógios muito antigos a precisão é muito difícil, ou mesmo impossível de obter, como tal, sou menos exigente nessa área. No entanto, valorizo uma máquina limpa, isenta de sujidade e de ferrugem nos componentes que utilizam o aço. As caixas têm de estar impecavelmente limpas e reluzentes, pois não faz sentido caixas em metal nobre, como o ouro, estarem sujas, baças e com pouca vida. Muito do tempo que passo com a coleção é dedicado ao polimento das caixas para que se encontrem sempre imaculadas.

Investigador: Uma das áreas a que me dedico mais no colecionismo é a investigação, principalmente investigação sobre a história de cada peça que adquiro e da marca que se encontra por trás dela ou do relojoeiro que a concebeu. Esta é, por vezes, a área mais angustiante com que se debate um colecionador cujo enfoque da sua atividade são peças muito antigas, algumas delas com séculos de história. Quanto mais antiga é a peça menos informação está disponível relacionada com a mesma e a nossa procura por conhecimento pode tornar-se, por vezes, infrutífera. Quando isso acontece parece que falta algo a essa peça, sentimos que não nos pertence na totalidade. É esse o sentimento que se apodera de mim quando não consigo ligar todas as pontas acerca da sua origem.

Relógio de bolso Repetição de horas e quartos com autómatos Jaquemarts
Repetição de horas e quartos com autómatos Jaquemarts | © Cesarina Sousa / Espiral do Tempo

Guardador de memórias: É isso mesmo o que um colecionador. Aliás, o meu lema como colecionador é: «um colecionador é um fiel depositário de estórias e da História.» Cada peça tem a sua história, o seu percurso até chegar às minhas mãos e o seu conhecimento é importante, permite-nos ‘falar com ela’ e perceber por aquilo que passou ao longo de muitas décadas e, em alguns casos, séculos, para que chegasse até mim e, o mais surpreendente, num estado imaculado de conservação. Todos os relógios juntos encerram uma história, altamente rica em engenho, criatividade, complexidade, originalidade e beleza: a história da relojoaria. E é essa história que, através das peças que temos a honra de guardar, temos também o dever de preservar para que continue a ser imortal, como toda a história é. Desta forma, permitimos que as gerações vindouras possam também continuar a reescrever essa história.

Engenhocas: Quando o motivo da nossa coleção são máquinas, quaisquer que elas sejam, o funcionamento das mesmas é ponto de honra para qualquer colecionador, portanto, faz todo o sentido que este perceba como funciona cada peça que possui. É muito importante para mim que isso aconteça, como tal, tenho despendido algum tempo em formação com esse objetivo. Como uma das áreas pelas quais me interesso é a aquisição de relógios que fazem mais qualquer coisa do que indicar as horas, os minutos e os segundos – a essas funções extra dá-se o nome de complicações. Na minha ótica, é essencial conhecer todas as funções que estão para além das três básicas referidas e, para isso, é preciso investigar para conhecer. É uma obrigação de um entusiasta que coleciona objetos que incorporam dentro de si uma máquina que faz funcionar qualquer coisa.

Investidor: Talvez seja a área com a qual eu menos me identifico, mas não posso negar que é uma componente importante, principalmente se o objeto da coleção forem peças com algum valor acrescentado. O belo, o raro, o complexo e o original normalmente estão associados a valoroso e é nesse contexto que abordo a temática do investimento, nunca como sendo o critério principal na altura da aquisição de cada peça.

Comprometido: Quando uma pessoa decide tornar-se colecionador, implicitamente assume um compromisso. Quem coleciona, por exemplo, relógios monomarca assume um compromisso em que toda a sua linha orientadora está virada para a aquisição de relógios dessa marca. No meu caso, o compromisso é diferente. Este é um compromisso para com a dignidade e a história que cada peça transporta, ressuscitá-la, se for caso disso, preservá-la, respeitá-la, bem como respeitar todo o percurso que levou até chegar a mim, divulgá-la e permitir a que outros com a mesma paixão a possam apreciar. Basicamente trazê-la de novo à vida como nos tempos em que encantou o seu detentor e todos aqueles que a admiraram.

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