Um dos mais notáveis artistas plásticos portugueses deixou-nos no dia 30 de junho. Manuel Cargaleiro foi pintor, gravador e ceramista — e foi também a personalidade escolhida para a capa da terceira edição da Espiral do Tempo, na sequência da sua colaboração com a Jaeger-LeCoultre na série Reverso Arte Portuguesa.
Manuel Cargaleiro deixou-nos com a proveta idade de 97 anos e um acervo que fez dele um dos mais relevantes artistas lusos do último século. E, obviamente, não podíamos deixar de prestar homenagem àquele que foi o rosto do terceiro número da revista Espiral do Tempo — devido ao seu papel na criação da segunda edição limitada da série Reverso Arte Portuguesa. Um ano depois de Júlio Pomar (2000) e antes de Paula Rego (2002), José de Guimarães (2003), Julião Sarmento (2012), Manuel Cargaleiro aceitou o desafio de traduzir o seu conceito de temporalidade numa imagem para a famosa caixa reversível do Reverso. No ano do 70.º aniversário do lendário relógio da Jaeger-LeCoultre que sabe virar as costas ao tempo, o pintor, gravador e ceramista luso optou por um conjunto pictórico de forte componente geométrica gravada em esmalte. Afinal de contas, o estilo que o tornou conhecido em todo o mundo.
A imagem escolhida por Manuel Cargaleiro para vestir 40 exemplares do modelo Reverso Or Déco em ouro branco apresentava uma espiral e três círculos acompanhados por formas triangulares e retangulares. O vermelho, verde e amarelo dominam o conjunto, sendo enquadrados pelo azul. Numa livre interpretação, a espiral representa a espiral do tempo e os círculos, de três tamanhos diferentes, podem representar as horas, os minutos e os segundos; os triângulos compõem várias ampulhetas. E as três cores do estandarte nacional são acompanhadas pela cor do mar, parte integrante da paisagem costeira portuguesa. O primeiro dos 40 exemplares do Reverso Or Déco/Cargaleiro foi leiloado para fins de beneficência — tendo a receita final do relógio e respetiva serigrafia (18.750 euros, uma quantia significativa para a altura) revertido a favor do Centro para o Estudo das Artes de Belgais, da pianista Maria João Pires.
«O que quis para o Reverso foi uma composição toda simbolista do princípio ao fim», referiu então Manuel Cargaleiro — que sempre definiu a sua arte como como ‘abstracionismo lírico’. «A parte de cima da composição tem lá o cosmos, as três manchas vermelhas; e tem a espiral, que para mim sempre foi a imagem do tempo, do eterno retorno, algo sem princípio nem fim. A primeira coisa que me veio à cabeça foi mesmo utilizar a espiral; fui fazendo estudos e acrescentei três esferas vermelhas: o cosmos e a cor que simboliza a alegria e a felicidade. Na parte de baixo surge a azulejaria, que foi onde a arte portuguesa se manifestou com mais força desde o princípio; o azulejo é a expressão mais importante da arte portuguesa. As cores são as da bandeira de Genebra, considerada capital mundial da relojoaria. E o azul representa o mar português. Um sobrinho perguntou-me se os losangos eram ampulhetas… só se foi o meu subconsciente!».
Devido ao seu conceito original de estrutura reversível, nenhum outro relógio de pulso está tão associado às artes como o Reverso — cujo segunda ‘face’ tem proporcionado um espaço portátil para personalizações e divagações artísticas desde o seu lançamento, em 1931. Cedo se tornou evidente que a arquitetura basculante da caixa se afigurava perfeita para devaneios criativos; as possibilidades técnicas e estéticas abertas pelas suas caraterísticas únicas têm sido oportunamente aproveitadas pela Grande Maison — que ao longo de quase cem anos (cumpre um século em 2031!) foi dotando o verso com prodigiosas complicações relojoeiras ou belas manifestações artísticas. O percurso do Reverso foi permitindo à histórica manufatura suíça de Le Sentier reunir no seu portefólio uma larga panóplia de personalizações artísticas à vontade do freguês, desde a simples gravação de iniciais até composições em esmalte.
As edições limitadas Reverso Arte Portuguesa, um projeto idealizado por Pedro Torres (que foi um reputado colecionador de arte e de relógios), assumem papel de relevo entre as mais belas interpretações de sempre do Reverso e os correspondentes exemplares são muito procurados — provando que a arte e o tempo são sempre um excelente investimento, como foi o caso do nosso leitor João Fernandes. A edição mais recente foi um modelo personalizado com uma obra de Almada Negreiros. A série com a assinatura de Manuel Cargaleiro passará a ter uma relevância ainda maior, enquanto herança portátil da genialidade do grande artista plástico que agora nos deixou.