Numa era em que o politicamente correto parece cada vez mais castrante e qualquer conotação sexual pode ter uma censurável interpretação sexista, a relojoaria erótica esboça uma tímida reação revivalista — dois séculos e meio após ter surgido como segredo de alcova. Algumas marcas, da Ulysse Nardin à Richard Mille, e alguns criadores, de Svend Andersen a Antoine Preziuso, têm-se notabilizado na divulgação do prazer mecânico.
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Foto de abertura: No SIHH 2019, a Ulysse Nardin expôs a sua nova coleção de inspiração erótica que inclui dez relógios cujos mostradores são personalizados com miniaturas de ilustrações da autoria de Milo Manara. © Ulysse Nardin
Gustav Klimt afirmava que «toda a arte é erótica». Não terá sido a pensar no pintor austríaco do século XIX que o cantor canadiano Drake surgiu recentemente no jogo cinco das finais da NBA com um Richard Mille RM69 Erotic Tourbillon no pulso, um dos mais originais exemplares da secular arte relojoeira erótica — foi mais para ostentar (o preço anda à volta dos 750 mil euros) e para escandalizar (o oráculo do relógio estava ajustado para ‘I’d love to kiss your pussy’). Afinal de contas, Drake é um rapper.
O universo específico do rap anda muito à volta do que é explícito e chocante, dois termos desde sempre associados à pornografia. Na relojoaria, a terminologia é menos hardcore e mais eufemística: exemplares sensuais e eróticos fazem parte de uma longa tradição que tem acompanhado a arte relojoeira ao longo dos últimos dois séculos e meio, mas que acaba por ter uma expressão assaz reduzida devido à sempre delicada temática. Tão delicada que a maior parte das criações relojoeiras com uma conotação mais sexual são feitas especificamente para cumprir desejos de colecionadores marotos e não chegam sequer ao conhecimento da imprensa ou do público; servem, sobretudo, para satisfação pessoal, para originar debate em círculos fechados e lançar a conversa para patamares mais ousados. São as chamadas conversation pieces, outrora relógios indecorosos que ajudavam a passar das palavras aos atos em tempos idos.

Perverso fascínio
Associada à ciência da precisão, a arte relojoeira teve um desenvolvimento decisivo no Século das Luzes; com o aperfeiçoamento da mecânica e a sua consequente miniaturização, surgiram autómatos que faziam as delícias das cortes, como os de Jaquet-Droz — e com eles, invariavelmente, os autómatos de pendor erótico. A relojoaria libertina floresceu sobretudo a partir de finais do século XVIII, quando o advento dos mecanismos de repetição de minutos foi aproveitado para, através dos respetivos martelos, representar o vai-e-vem do ato sexual… até porque o espírito mais aberto do Século das Luzes promoveu uma maior laicização da sociedade europeia e uma certa democratização da libertinagem. Os escritos de Choderlos de Laclos e do Marquês de Sade também ajudaram a soltar a imaginação dos artesãos e a tornar mais populares esses mecanismos relojoeiros de pendor mais pornográfico.
Entretanto, surgiram novas e austeras correntes religiosas que iam contra a ostentação e a luxúria. Em Genebra, a cidade de Calvino, os relógios de índole erótica foram mesmo proibidos em 1817, para contrariar a moda burguesa de se oferecer aos noivos peças de mecânica subversiva. Os relojoeiros foram então forçados a recorrer a imaginativos estratagemas para satisfazer pedidos de clientes sem os denunciar e ao mesmo tempo escapar às sanções que invariavelmente acompanhavam qualquer atentado ao pudor. Desde tampas mais ou menos óbvias a cobrir cenários despudorados até mecanismos que tinham o condão de esconder protagonistas depravados do olhar da censura. O perverso fascínio do que é proibido transformou os relógios eróticos em objetos de culto; os objetos de culto são altamente colecionáveis…
Do bolso para o pulso contemporâneo
Produzido em 1810, o Musique d’Amour, de Henry Capt, é um dos mais cobiçados exemplares devido ao seu cenário poliamoroso e musical; ao abrir-se o mostrador, vê-se um monge e uma freira a conhecerem-se no sentido bíblico, enquanto nas traseiras do relógio a paixão se estende a outros elementos do convento acompanhados por músicos e pássaros. Desde o rei Farouk do Egito até Henry Ford, houve grandes colecionadores de relojoaria erótica entre o século XIX e o século XX. Como o ator suíço Michel Simon, que acumulou um belo acervo a partir da coleção do seu pai, que seria leiloado após a sua morte. Esse leilão, no final da década de 70, foi muito publicitado e capturou o imaginário de jovens relojoeiros que então tentavam sobreviver em face da ameaça dos relógios de quartzo baratos.

O mestre Antoine Preziuso foi um deles. «Participei no leilão do ator Michel Simon e disse a mim próprio que um dia faria algo do género numa versão mais contemporânea», recorda-nos, no seu atelier nas imediações de Genebra. «A minha coleção Hours of Love inclui 15 modelos diferentes, incluindo variantes de cenários que faço a pedido, desde um carro de coleção até ao convés de um iate. Devo dizer que, inicialmente, pensei que este tipo de relógios eróticos teria uma clientela mais masculina, mas, para surpresa minha, muitas senhoras foram seduzidas por relógios marotos…».
O outro grande vulto da relojoaria erótica é Svend Andersen, cofundador da Academia Relojoeira de Criadores Independentes (AHCI) e que chegou a passar pelo atelier de complicações da Patek Philippe. Especializou-se na arte da relojoaria erótica, depois de ter sido desafiado por um colecionador italiano, que lhe mostrou um antigo exemplar de bolso. «Um cliente perguntou-me se seria possível fazer autómatos complicados para o pulso», recorda. O primeiro passo foi criar um mecanismo que não fosse demasiado espesso e que tivesse suficiente força para animar durante tempo suficiente os intérpretes sexuais.

Geralmente, as cenas eróticas patentes nas criações de Svend Andersen são inspiradas em desenhos da Grécia Antiga (muitos deles de teor homossexual), da banda desenhada japonesa Hentaï ou da literatura clássica erótica, graças a autómatos pintados pelo miniaturista Patrick Vesnier e por Andre Martinez. Alguns dos seus relógios apresentam uma caixa reversível (designada Eros 69) que faz com que os protagonistas passem do fundo para a frente ou então as cenas atrevidas são mesmo reveladas diretamente no mostrador. «Continuo a ter muitas encomendas», confessa o semirretirado mestre. «Criei um relógio para um colecionador chinês com 14 elementos que se movem. Há quem peça cores, decorações e cenas personalizadas, mas o pedido com o resultado mais espetacular foi mesmo o de Bill Clinton com a Monica Lewinski!».
Risco e especialização
Integrar autómatos no espaço exíguo de um relógio de pulso e produzir energia necessária para fazê-los praticar o ato com o desejado afã sexual é um desafio técnico complexo — daí a tradição da relojoaria erótica quase ter desaparecido, primeiramente com a transição dos relógios de bolso para os relógios de pulso em meados do século XX, e, depois, com a crise do quartzo. Svend Andersen, Antoine Preziuso e até Gerald Genta foram criadores independentes que recuperaram o erotismo mecânico, a par de algumas marcas que também se especializaram na matéria.
A Blancpain tem uma certa tradição (concebeu, em 1993, o primeiro repetição minutos erótico para o pulso à base do calibre 332) e a Jacob & Co. uma clientela propensa (o Caligula é um exercício de exibicionismo), mas — se o relógio de complicação mecânica mais emblemático dos tempos modernos talvez seja o Richard Mille RM69 Erotic Tourbillon, assente na rotação de três rolos com seis facetas gravadas cada um que permite um total de 216 frases sensuais — a companhia relojoeira que mais se distingue atualmente na especialidade é a Ulysse Nardin.
Desde que lançou o Eros em 1994, a Ulysse Nardin tem feito atualizações desse modelo até que o sucesso do Hourstriker Erotica Jarretière incentivou o seu jovem CEO, Patrick Pruniaux, a investir declaradamente na temática. Em 2018, chegou mesmo a apresentar uma sala vermelha no Salon International de la Haute Horlogerie, onde exibiu as suas criações eróticas com repetição de minutos, além de organizar duas festas sob o tema «Hot Horlogerie»!
Do San Marco Hour Striking Erotic ao Classic Voyeur, a Ulysse Nardin exibe a sexualidade em mostradores à vista de todos. Um calibre automático alimenta a complicação acústica que faz soar as horas e as meias horas, enquanto amantes copulam vigorosamente ao ritmo das batidas. E também podem fazê-lo a pedido, bastando, para isso, premir um botão às 4 horas. Este ano, a marca voltou a insistir na sensualidade com uma série especial dotada de mostradores desenhados pelo grande mestre da banda desenhada erótica que é Milo Manara.
Artes decorativas
A relojoaria erótica implica não só uma considerável complexidade mecânica, como uma assinalável sofisticação artística, necessária para a criação de autómatos e cenários miniaturizados. Essa faceta artística também esteve sempre presente nas variantes menos complicadas em que a luxúria é, sobretudo, exaltada pela imagética. Desde XVII que se produzem relógios de mesa com cenas voluptuosas pintadas em esmalte, acontecendo o mesmo depois com os relógios de bolso até aos relógios de pulso com tampa.
É na senda dessa tradição que se enquadra a série limitada Classico Manara da Ulysse Nardin, com dez mostradores que, juntos, contam a história da enfatuação subaquática da sereia Ulyssa com a jovem Nardia – mas que também funcionam em separado. «Os relógios prestam-se particularmente ao tema da sensualidade, porque o erotismo é eterno», diz o ilustrador italiano. As versões Erotic do Chronofighter 1695 da Graham ilustram o erotismo através do tempo; cinco edições limitadas com fundo gravado em baixo relevo apresentam gravações evocativas da literatura erótica inglesa, chinesa e italiana, do Kama Sutra indiano e do Ukiyo-e japonês.

Além do mostrador ou do fundo, há ilustrações sugestivas que são engenhosamente cobertas ou descobertas. Como o Perrelet Turbine Erotic que, entre as turbinas do mostrador, presta tributo ao Hentaï japonês. Ou como o Reverso à Rideau, da Jaeger-LeCoultre, dotado de uma espécie de cortina que se abre para deixar ver no fundo do mostrador uma sensual imagem pintada a pedido do freguês. E claro que os modelos Reverso regulares, com a sua estrutura reversível que pode receber no verso uma gravação ou ilustração à escolha passível de ser apreciada num simples virar de caixa, foram objeto de muitas divagações eroticamente personalizadas ao longo das suas mais de oito décadas de vida. O próprio reverso Arte Portuguesa, assinado por Paula Rego, tem uma enorme componente erótica. Qualquer espécie relojoeiro dotado de uma tampa ou fundo trabalhado pode dar azo a devaneios libidinosos.
A censura religiosa já não é tão castrante na cultura ocidental, mas a moral pública e o politicamente correto exacerbados pelas redes sociais podem condicionar muito a exibição de certas formas de deboche ou de objetificação da mulher. O que torna a relojoaria erótica numa contracultura que é sempre de exaltar, não só pela sua vertente disruptiva, mas também pelo exercício mecânico e artístico. E porque aborda uma temática que é eterna…
Texto originalmente publicado na edição impressa da Espiral do Tempo 67.
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