Já brincou com a Apple, transformou queijo suíço em alta-relojoaria, criou um Frankenwatch abortado à nascença e, ultimamente, tem andado com um modelo ecológico mergulhado em vegetação. Edouard Meylan pertence à nobreza relojoeira, tem pose e postura; mas, sendo suave e fleumático, é também a personalidade mais subversiva do universo da alta-relojoaria — graças a uma ousada estratégia de comunicação e produção, que faz com que as suas marcas H. Moser & Cie. e Hautlence sejam verdadeiramente diferentes.
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Miguel Seabra, em Neuhausen am Rheinfall
Postura suave. Olho vivo. Sorriso traquinas. Edouard Meylan, 40 anos, ostenta uma confiança natural que lhe advém das origens e educação: é alguém que tem plena consciência do seu valor e do seu conhecimento. E isso vê-se pela maneira como fala, como se comporta e até como se veste. Nasceu em berço de ouro, no berço da alta-relojoaria. Filho do antigo CEO da manufatura Audemars Piguet, cresceu nesse local de grande tradição relojoeira que é Vallée de Joux e tornou-se num dos mais relevantes opinion makers da indústria na presente década — liderando as marcas H. Moser & Cie. e Hautlence, a par da Precision Engineering AG (produção de componentes de alta-relojoaria, incluindo espirais).
As origens e o meio ambiente poderiam perfeitamente ter feito de Edouard Meylan um conservador. Mas não. Tomou uma posição pública dura em face da sobrevalorização do Franco suíço relativamente ao Euro, e contra-atacou de maneira engenhosa a ameaça dos smartwatches; desde então, têm-se sucedido as imaginativas e iconoclastas campanhas de marketing, acompanhadas por relógios únicos: os chamados talking pieces. Um deles tem uma caixa feita de queijo e o mais recente é um minijardim. Pelo meio, ficou um Frankenwatch que causou controvérsia no seio da alta-relojoaria, e que levou mesmo marcas poderosas a pressioná-lo para matar o assumido aborto à nascença, num processo que deixou o agente provocador emocionalmente de rastos.Afinal, quem é Edouard Meylan? Formou-se em engenharia micromecânica no Instituto Federal Suíço de Tecnologia em Lausanne, trabalhou na distribuição de marcas independentes de luxo na Ásia, fez o mestrado na Universidade da Pensilvânia e fundou a marca de telemóveis de luxo Celsius X-VI-II, em 2008. Entretanto, o seu pai — Georges-Henri Meylan — comprou a Hautlence e a Moser através da MELB Holding, em 2012. Naturalmente, Edouard e o seu irmão Bertrand tomaram conta do negócio, que, hoje em dia, tem um volume triplicado de faturação e uma clientela cada vez mais jovem para as suas marcas de alta-relojoaria — a secular e mais tradicional Moser, sob a assinatura ‘Very Rare’ e com modelos tornados famosos pelos mostradores minimalistas, fumados e coloridos; a contemporânea e concetual Hautlence, com o mote ‘Cross the Line’, e relógios ousados, sendo que alguns nem sequer dão… o tempo.
Tanto a Moser como a Hautlence são marcas independentes, de nicho, com uma produção conjunta à volta de 1500 exemplares. Edouard Meylan veio dar-lhes uma presença e uma voz mais relevantes. «Ter nascido no seio da relojoaria dá-me mais legitimidade para criticar. Mas é como se fosse uma autocrítica. Herdei isso do meu pai: ser direto e provocar uma boa discussão», sublinha. «Mesmo sendo pequenos, temos de fazer ouvir a nossa voz. Precisamos de ser diferentes e de perguntar o que estão os outros a fazer. As nossas campanhas ousadas, sexy e provocadoras tornaram-se na nossa imagem de marca. E agora já estamos no mapa relojoeiro». Eis como:
As marcas
Fundada em 1828 pelo helvético Heinrich Moser em São Petersburgo e transferida para a Suíça após a revolução soviética, a H. Moser & Cie é uma marca secular recuperada no arranque do novo milénio que hoje em dia personifica de maneira ideal a dicotomia inerente ao conceito clássico-moderno; está sediada em Neuhausen am Rheinfall, onde existe um museu dedicado ao fundador, e é caraterizada por relógios de visual minimalista com mostradores fumados ou coloridos de preços que começam nos 11 mil e vão sobretudo até aos 100 mil, mas podem que ultrapassar largamente essa fasquia. Lançada em Neuchâtel no ano de 2004, a Hautlence assumia-se uma marca contemporânea de alta relojoaria alternativa na senda do conceptual que eclodiu na altura; hoje em dia já apresenta modelos menos caros, mas mantém a originalidade e a irreverência através de um design arriscado.
A tecnologia
A par das duas marcas relojoeiras, a estratégia do mini-grupo liderado por Edoaud Meylan é alicerçada por uma empresa que partilha a sede da Moser em Neuhausen am Rheinfall: a Precision Engineering, especializada na produção de sistemas osciladores e reguladores (espirais, balanços, escapes) para marcas de alta relojoaria. “Fazemos espirais e componentes para o sistema de escape. Mas podemos fazer platinas, pontes, rodas dentadas, parafusos – praticamente todos os componentes de um movimento relojoeiro”, refere.
O tamanho
A Moser e a Hautlence são marcas independentes de nicho. A Moser produz cerca de 1500 relógios com um preço médio de 35 mil euros e uma faturação de 15 milhões de francos suíços; a Hautlence tem números muito mais residuais. Edouard Meylan veio dar-lhes uma presença e uma voz mais relevantes através não só da diferença e da originalidade do produto mas também graças a campanhas de marketing provocadoras.
Técnica epistolar
Em 2015, o Banco Nacional Suíço deixou de poder suportar o Franco suíço, que imediatamente transpôs a barreira artificial dos 1,20 por euro, para se colocar em igualdade de circunstância e quase dinamitar as exportações helvéticas. Numa carta aberta ao presidente do Banco Nacional Suíço, reproduzida internacionalmente em toda a imprensa especializada e económica, Edouard Meylan utilizou uma escrita sardónica para dar conta do efeito devastador da medida para pequenas empresas como a sua.
Swiss Alp Zzzz
Em 2016, na sequência da ameaça dos smartwatches, Edouard Meylan lança o Swiss Alp, a réplica mecânica do Apple Watch e da respetiva caixa retangular — incentivando as pessoas a tomarem conta da sua vida e a fazerem um upgrade para um relógio mecânico. «Dado não poder fazer chamadas nem mandar mensagens ou interagir nas redes sociais, acaba por ter a melhor interface, porque obriga as pessoas a falarem cara a cara». O Swiss Alp original foi vendido por 125 mil francos, e os proventos foram atribuídos à Fundação da Cultura Relojoeira.
O tamanho conta
Também em 2016, através de uma campanha ‘marota’ que clamava que ‘Size Matters’ e que ‘Bigger is Better’, Edouard Meylan vincou as virtudes do tamanho para exaltar a caraterística data sobredimensionada, presente nalguns relógios Moser. O vídeo de promoção, protagonizado por um agente da marca e por uma jornalista, começava com uma insinuação sexual, que depois revelava o relógio Venturer Big Date.
Swiss Made Watch
Em 2017, Edouard Meylan personificava Guilherme Tell num vídeo iconoclasta em que usava um chapéu com a inscrição ‘Make Swiss Made Great Again’ e desmistificava o ‘Swiss Made’, dizendo que o cacau do chocolate suíço não nascia nos Alpes, e até mesmo a Heidi não era helvética. Com o labéu ‘Swiss Made’ — cada vez menos exigente quanto à percentagem de componentes feitos na Suíça —, em cada vez mais marcas relojoeiras, Edouard Meylan criou um relógio 100% suíço, com uma caixa feita de queijo. E retirou a inscrição ‘Swiss Made’ do mostrador dos relógios Moser. «A campanha gerou debate e abriu os olhos a muita gente. Sabíamos que era difícil mudar a legislação, mas foi uma pequena vitória vermos os nossos clientes perceberem o nosso nível de swissness».
Swiss Icons Watch
Em janeiro de 2018, Edouard Meylan desvelou um relógio que prestava homenagem a ícones da relojoaria, ao mesmo tempo que brincava com eles, graças à introdução de típicos elementos de estilo de mais de dez marcas conhecidas. Para alguns, a campanha do Swiss Icons Watch foi excessivamente iconoclasta, e a sua apresentação no Salon International de la Haute Horlogerie foi boicotada por algumas personalidades influentes. «Muitas marcas, incluindo as históricas, não criam nem produzem nada de novo: só substituem a substância por tretas artificiais para se manterem relevantes, pagando fortunas a célebres embaixadores e a influencers com muitos seguidores nas redes sociais. Mas o essencial deve ser o produto, não o marketing». O relógio único ia ser leiloado por uma boa causa, mas acabou por nunca ser apresentado.
Nature Watch
Do ‘Make Swiss Made Great Again’ para o ‘Make Swiss Made Green Again’: a travessura de 2019 residiu no Nature Watch, um relógio que evoca a sustentabilidade e um regresso às origens: é ecológico por ser mecânico e dispensar a bateria, a caixa em aço é adornada com plantas da típica flora suíça, e o mostrador é feito de pedra. E a correia tem relva. Um exemplar único que exalta a conservação do ambiente e materiais fairtrade.
Cross the Line
Já no que diz respeito à Hautlence, a opção foi escolher embaixadores arriscados por não serem politicamente corretos — personalidades maduras que gostam de ‘pisar o risco’, e forjaram as suas carreiras com rebeldia, como o ex-futebolista Éric Cantona (que até desenhou alguns exemplares) e o antigo raguebista barbudo Sébastien Chabal. Mas a marca também lançou edições limitadas de relógios para brincar, que nem sequer davam o tempo. O Playground Labyrinth e o Playground Pinball.
Artigo originalmente publicado no número 66 da edição impressa da Espiral do Tempo (primavera 2019)
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