O outro Autavia

Um dos mais relevantes lançamentos da TAG Heuer nos últimos tempos foi o da reedição do chamado Autavia ‘Rindt’ de 1964. Mas, para mim, a geração mais simbólica do Autavia é a de 1969 – com a chamada ‘caixa em C’ e coroa à esquerda. Como tenho usado o ‘Orange Boy’ nas férias, é uma boa altura para revisitar essa reedição em particular e compará-la com o mais recente Autavia no catálogo da TAG Heuer.

É frequente questionarem-me sobre qual é o meu relógio de sonho ou qual é o relógio que mais gosto entre aqueles que compõem o meu pequeno acervo. Por mais vezes que façam essas duas perguntas, a resposta nunca é fácil – relativamente ao relógio de sonho há demasiados parâmetros e modelos a ter em consideração até se chegar a uma conclusão final, enquanto os relógios que tenho na minha coleção foram criteriosamente escolhidos e por isso existe uma relação demasiado afetiva com todos eles… não digo que seria como escolher um entre vários filhos, mas quase. E, no entanto, tenho de reconhecer que há alguns mais especiais do que outros. As minhas duas versões da reedição de 2003 do Autavia estão seguramente no lote dos mais favoritos (mas não digam nada aos outros relógios, senão eles ficam ciumentos).

As duas reedições de 2003 do TAG Heuer Autavia.
As duas reedições de 2003 do TAG Heuer Autavia.

Autavia

Ao longo do último ano, o nome Autavia regressou em força ao panorama relojoeiro, com a TAG Heuer a apresentar no mês de março em Baselworld uma reedição inspirada por uma variante do cronógrafo de 1964 então apelidada de ‘Rindt’ – por ter sido vista frequentemente no pulso do malogrado campeão de Formula 1 Jochen Rindt em meados da década de 60. A reedição desse modelo específico de mostrador preto com três totalizadores brancos foi decidida maioritariamente pelos aficionados da marca num processo tão democrático quão original, decorrido no site da marca ao longo de 2016 e que recebeu o nome de Autavia Cup; foi uma espécie de torneio virtual em que 16 diferentes modelos Autavia de primeira geração (ou seja, antes da adoção do movimento automático Chronomatic a partir de 1969) foram emparelhados de modo a defrontarem-se entre si num mano-a-mano virtual durante três rondas de eliminação até à grande final. Já escrevi sobre essa mais recente edição do Autavia tanto para o nosso website da Espiral do Tempo como para a edição impressa.

© Espiral do Tempo / Miguel Seabra
O Autavia que foi lançado em 2017 e acabou também por ser capa da edição de primavera da Espiral do Tempo. © Espiral do Tempo / Miguel Seabra

As décadas de 60 e 70 foram um período dourado para o desporto automóvel e, sendo um apaixonado pelas competições automobilísticas, Jack Heuer não perdeu a oportunidade de se associar a corridas míticas ou pilotos famosos – também abordamos essa associação pioneira várias vezes no site e na revista, incluindo em entrevistas ao próprio Jack Heuer. Quando foi lançado como relógio de pulso em 1962, o Autavia recuperou a designação de um antigo instrumento de bordo da marca (o nome é a contração de ‘Automobilismo’ com ‘Aviação’) e foi recebendo movimentos cronográficos de corda manual até à ‘revolução’ de 1969, quando a marca apresentou o seu novo calibre cronográfico automático em três diferentes modelos que na altura já refletiam o espírito e a estilo da década seguinte – o inédito Monaco quadrado e os remodelados Carrera e Autavia, ambos dotados de uma nova caixa em C (ou formato ‘cushion’).

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A versão do Autavia designada ‘Jo Siffert’ © Heuerville

Depois veio a crise do quartzo, a transformação da Heuer em TAG Heuer e o modernismo galopante que cavalgou entre as décadas de 80 e 90 – até que a marca lançou uma reedição do Carrera em 1996 e depois uma reinterpretação do Monaco em 1998, contribuindo precocemente para a onda de revivalismo new-vintage e neo-retro que tão acentuadamente está em voga nos dias de hoje. Fiquei imediatamente fascinado por essas reedições/reinterpretações na altura e sobretudo completamente seduzido quando o ‘novo’ Autavia foi apresentado em 2003 – o Autavia inspirado pelo tal modelo com caixa em C entre os que foram apresentados em 1969 com o primeiro movimento cronográfico automático (Chronomatic), nas versões ‘Jo Siffert’ e ‘Orange Boy’. Na altura, em 2003, ambos os modelos foram comercializados com uma bracelete em aço retro de excelente qualidade, mas que não foi bem ‘percebida’ pelo grande público e até dificultou o sucesso comercial de tão saudosista iniciativa.

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Mas eu, quando olho para um relógio, vejo-o sempre sem bracelete ou correia – e imagino logo que alternativas o modelo pode receber para melhorar o seu visual ou dotá-lo de uma personalidade mais vincada. No caso das reedições Autavia de 2003, imaginei-as logo sem a bracelete em aço e com uma correia de pele perfurada ou, melhor ainda, com uma bracelete em perlon ou de tipo NATO para lhe dar um aspeto mais vintage – isto muito antes do surgimento da febre das braceletes NATO a partir de 2009 e das de perlon a partir de 2014. Ou seja, tendo eu adquirido ambos os relógios com bracelete em aço, nunca os usei com a respetiva bracelete metálica original – nem me dei sequer ao trabalho de lhes retirar elos para as adaptar ao meu pulso, simplesmente passei logo ao perlon e às NATO. E também não os comprei em simultâneo: primeiro foi o ‘Jo Siffert’ e só uns dois ou três anos depois decidi adquirir o ‘Orange Boy’. Esses dois modelos também foram comercializados num estojo limitado a 70 exemplares que incluía uma das duas versões em aço e uma réplica condizente do relógio de bordo de 1933. Havia ainda uma edição limitada a 150 exemplares em ouro rosa com três contadores que gostaria muito de ter… talvez um dia vá à procura dela!

O nome Autavia implica uma herança histórica que vai muito para além da relojoaria de pulso; no início do século XX, a fusão entre automobilismo e aviação originou um nome que se tornou mesmo mítico: Autavia, primeiro como instrumento de bordo em 1933 e depois enquanto cronógrafo de pulso a partir de 1963. E um bom nome é algo de valor incalculável que se pode perder num ápice. Por isso é que se defendem reputações com desmesurado arreganho: custam tanto a construir como facilmente são arrasadas. A TAG Heuer apresenta uma herança histórica que data de 1860 e é uma escuderia obcecada em dar continuidade ao espírito inovador pelo qual sempre se regeu – mergulhando destemidamente no futuro porque sabe que está alicerçada num sólido passado. A par de projetos conceptuais avant-garde e de arrojadas gamas contemporâneas, tem um enorme orgulho no desenvolvimento da sua linha de clássicos composta por reinterpretações de modelos que entraram para a lenda. Depois do Carrera em 1996 e do Monaco em 1998, o Monza surgiu em 2000 e o Targa Florio foi apresentado em 2001. O Autavia representou em 2003 a quinta reedição/reinterpretação, inspirado na geração de 1969, inconfundível pela coroa à esquerda inerente à singular arquitetura do calibre Chronomatic e que foi objeto de fiel atualização – mantendo-se a coroa à esquerda, apesar de o calibre não ser o mesmo.

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Jack Heuer lançou o Autavia inaugural na década de 60 e supervisionou pessoalmente a reinterpretação, após ter sido seduzido para regressar à sua velha ‘casa’ no papel de presidente honorário: «O Autavia era originalmente um relógio de bordo. Nos anos 60 retomámos essa designação para baptizar um cronógrafo de pulso grande e robusto. Este ano, relançámos o modelo com um mostrador de grande beleza e coroa à esquerda como na versão automática de 1969 – no original, o mecanismo Chronomatic tornava mais fácil ter a coroa no lado oposto ao dos botões e esse facto diferenciava-o dos outros relógios, para além de mostrar às pessoas que era automático», disse-me então numa entrevista que lhe fiz na Quinta Patinho, em Sintra.

© Espiral do Tempo / Miguel Seabra
Matchy-matchy de espírito retro: a reedição ‘Orange Boy’ e uma Vespa laranja  © Espiral do Tempo / Miguel Seabra

O Autavia de 2003 surgiu dotado de um mecanismo cronográfico (o Calibre 11) diferente e menos espesso do que o Chronomatic do original, mas foram operadas alterações de modo a manter a coroa à esquerda da poderosa caixa geométrica que tão bem personifica os ideais estéticos da altura. A coroa à esquerda é propositada e tem uma razão muito específica: aquando do lançamento do primeiro cronógrafo automático, numa corrida que o consórcio TAG Heuer/Breitling/Leonidas travou com a Zenith, Jack Heuer achou que o novo calibre Chronomatic deveria ser imediatamente reconhecido a partir do exterior – daí a arquitetura do mecanismo contemplar botões à direita e a coroa à esquerda, de modo a estabelecer uma óbvia diferença relativamente aos cronógrafos mecânicos de corda manual. Curiosamente, também a Breitling lançou recentemente uma reedição do seu modelo Chronomatic de 1969 com coroa à esquerda.

© Espiral do Tempo / Miguel Seabra
A reedição no pulso e o original no livro Heuer Chronographs do especialista Arno Michael Haslinger © Espiral do Tempo / Miguel Seabra

Delimitado pela escala taquimétrica, o mostrador está disponível em duas versões que tiveram o português Orlando Loureiro como responsável de produto na ArteCad (sucursal da TAG Heuer que fabrica mostradores para várias marcas). A versão ‘Jo Siffert’, de um branco opalino com totalizadores negros e algumas pinceladas de azul, tem para mim um dos melhores, senão mesmo o melhor, mostrador de sempre da marca (escrevi várias vezes sobre essa versão para o nosso website, num texto denominado Summer of 69 e noutro dedicado à sua ligação a Jo Siffert); a que destaco neste artigo é dominada por um preto mate com totalizadores brancos opalinos e um toque vermelho/alaranjado. Em ambos os casos, com índices metálicos aplicados à mão e janela para a data às seis horas. A superfície da caixa (de 41,2 milímetros de diâmetro por 13,45 de espessura) é alternadamente polida e escovada, enquanto a flexível bracelete de aço com fecho de segurança representou na altura uma estreia absoluta nos modelos reeditados.

FOTO 10 Autavia

O Autavia é um relógio original com muito carisma e que tem um tamanho que considero ideal; em fotografias ou na montra não revela a mesma força que apresenta quando usado no pulso e fica melhor com uma correia de pele ou as tais braceletes alternativas (perlon, tecido, NATO) do que com a bracelete metálica. Entretanto, tenho-me cingido à bracelete marrom em couro perfurado e forro laranja que ‘saquei’ a um modelo Carrera em edição limitada de há uns anos (o Carrera 300 SLR….); a combinação de cores é perfeita. Também as braceletes NATO e Perlon que tenho lhe assentam perfeitamente. O único detalhe menos perfeito é o branding ‘TAG Heuer’, sendo que a esmagadora maioria das reedições/reinterpretações do passado utilizam habitualmente o logótipo Heuer dessa altura…

© Espiral do Tempo / Miguel Seabra
© Espiral do Tempo / Miguel Seabra

E fica assim concluída a história sobre o meu ‘Orange Boy’. Com um pensamento adicional: seria bem bom colecionar todas as reedições Autavia – as de 2003 (duas versões regulares mais a edição limitada em ouro) e a que surgiu este ano na sequência da votação via internet, merecendo mesmo honras de capa da Espiral do Tempo. Porque é um relógio com muita atitude… e cheira-me que a sua descendência não vai ficar por aqui. Fiquem atentos!

Jack Heuer com a revista Espiral do Tempo © Espiral do Tempo / Miguel Seabra
Jack Heuer com a revista Espiral do Tempo © Espiral do Tempo / Miguel Seabra

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