Relojoaria rumo ao infinito (Parte 1)

Como sucede em qualquer indústria, a relojoaria alimenta-se da inovação e renova-se com o estabelecimento de novas fronteiras. Rumo ao infinito. Embora a obtenção de recordes não signifique automaticamente uma melhoria absoluta, desbravar novas vias ou soluções acaba sempre por ter um mérito incontornável. Aqui ficam as primeiras três de ‘Nove Maravilhas’ da técnica associadas a alguns dos mais relevantes marcos relojoeiros da atualidade.

A transcendência é uma caraterística inerente ao homem, e o lema dos Jogos Olímpicos traduz bem essa natureza. Citius, Altius, Fortius: mais longe, mais alto, mais forte. Frequentemente consagrados no Guiness Book of Records, os recordes existem para se baterem e são sempre um sinal palpável ou mensurável de realização — e isso é particularmente evidente na relojoaria mecânica, com as marcas a ostentarem orgulhosamente os seus feitos técnicos para se evidenciarem perante a concorrência. Mesmo que a concorrência histórica seja de monta: Abraham-Louis Breguet (1747-1823), considerado o maior relojoeiro de todos os tempos e inventor das principais complicações mecânicas ainda hoje utilizadas, criou um relógio minúsculo para integrar um anel que incluía uma espécie de alarme ao picar o dedo do utilizador com uma agulha. A persecução de recordes deu azo à criação de alguns dos mais espetaculares relógios de pulso, alguns dos quais se encontram nos nove parâmetros que escolhemos para definir várias fronteiras da superlatividade relojoeira. Hoje apresentamos três exemplos deste caminho que muitas marcas percorrem, quase rumo ao infinito. Em breve publicaremos a segunda parte deste artigo — originalmente publicado na sua totalidade no número 70 da Espiral do Tempo.

1 | Mais forte: resistência aos choques

Richard Mille RM 27-03 Tourbillon Nadal.
Richard Mille RM 27-03 Tourbillon Nadal. © Richard Mille

O Richard Mille RM 27-03 Tourbillon Nadal é considerado o relógio que atualmente apresenta a maior capacidade de resistência — para mais integrando um dispositivo mecânico tão hipersensível como o turbilhão. Para que se tornasse num instrumento do tempo fiável tendo em conta os choques brutais a que estaria submetido no pulso de um tenista tão possante como Rafael Nadal, a Richard Mille estreou no pulso do campeoníssimo espanhol um primeiro exemplar em 2010; o atual RM 27-03 é o quarto da série, sendo naturalmente aquele que é tecnologicamente mais desenvolvido. A sua construção permite-lhe enfrentar choques na ordem dos 10.000 Gs, o dobro do antecessor, graças à escolha de materiais e à peculiar arquitetura; ultrapassou intermináveis horas de teste — tanto efetuados pela própria marca (designado ‘Pendulum Impact Testing’, basicamente, um tipo de martelo que causa um impacto de 10.000 Gs), como através do feedback proporcionado pelo próprio Rafael Nadal.

Richard Mille RM 27-03 Tourbillon Nadal.
Richard Mille RM 27-03 Tourbillon Nadal. © Richard Mille

A base do relógio é concebida em carbono TPT, numa estrutura monocoque com pontes em titânio; inclui um tambor de corda de rotação rápida, um balanço Glucydur de inércia variável (com momento de inércia 11.50 mg por cm2, ângulo de 53°) com dois braços e quatro parafusos, uma espiral Elinvar da Nivarox e um dispositivo antichoques Kif Elastor KE 160 B28. O primeiro modelo dedicado a Rafael Nadal e os seus sucedâneos abriram caminho para outros exemplares com turbilhão também resistentes aos choques e à aceleração linear dedicados a campeões como Bubba Watson (golfe) e Pablo MacDonough (polo).

2 | Mais extremos: turbilhão

Kerbedanz Maximus
Kerbedanz Maximus. © Kerbedanz Maximus

Em 2017, a relativamente desconhecida marca Kerbedanz saltou para a ribalta relojoeira ao apresentar o maior turbilhão jamais colocado num relógio de pulso. Com uma caixa sobredimensionada de 49 mm de diâmetro sem luneta, o turbilhão volante colocado ao centro do Maximus ocupa a quase totalidade do mostrador; a indicação das horas e dos minutos, para não obstruir a hipnotizante rotação do turbilhão, é feita através de discos com indicadores (uma espécie de semiponteiros) que circulam na periferia do mostrador. A caixa do turbilhão mede 27 mm no centro, efetuando uma rotação completa a cada seis minutos. Obviamente, um tal tamanho requereu uma roda de balanço e uma espiral especiais. No total, o calibre KRB-08 integra 415 componentes e só a gaiola do turbilhão engloba 73 peças em titânio, com um peso total de 1,35 gramas. É alimentado por quatro tambores de corda e funciona à frequência de 18.800 alternâncias/hora, com uma reserva de corda de 54 horas.

Bulgari Serpenti Seduttori Tourbillon
Bulgari Serpenti Seduttori Tourbillon. © Bulgari

O anterior recorde pertencia ao Giga Tourbillon da Franck Muller, desenvolvido pelos mestre Pierre-Michel Golay e dotado de uma gaiola de turbilhão com 20 mm de diâmetro. O turbilhão mais pequeno foi desvelado no início deste ano e é mais um recorde estabelecido pela Bulgari, que se tem distinguido mais pelos seus movimentos ultraplanos. O novo calibre BVL150 apresenta o mais pequeno turbilhão em produção corrente no Serpenti Seduttori Tourbillon (com uma caixa de 34 por 8,9 mm), já que o mais pequeno foi feito por Fritz-Andre Robert-Charrue em 1945, graças a um calibre redondo com 19,7 mm de diâmetro e uma gaiola de 8 mm. O calibre BVL150 com 40 horas de reserva de marcha é um movimento de forma, e o turbilhão, apesar da miniaturização propositada, foi feito para ser suficientemente visível para proporcionar o desejado efeito cénico. Não é um turbilhão volante, mas a ponte (necessária para  proporcionar maior estabilidade) mal se vê, por ser elaborada em safira transparente: uma ponte tradicional esconderia o turbilhão.

3 | Mais longe: autonomia de corda

A. Lange & Söhne Lange 31
Dar corda ao Lange 31 requer uma chave especial devido à tensão causada pela espiral desenvolvida pela marca com o fim de garantir a autonomia de 31 dias. A coroa é exclusivamente dedicada aos acertos e não à corda do relógio. © A. Lange & Söhne

A extensão da reserva de marcha sempre foi uma preocupação dos relojoeiros e das marcas — sobretudo uma extensão que mantenha um acentuado nível de precisão no arco da autonomia de corda. No plano dos relógios de pulso, há a considerar dois relógios específicos que apresentam caraterísticas bem distintas: uma tradicional, presente no Lange 1 da A. Lange & Söhne com 31 dias de autonomia, e outra híbrida, apresentada pelo Traditionalle Twin Beat Perpetual Calendar da Vacheron Constantin com 65 dias de reserva de corda. O Lange 1 só necessita de receber corda uma vez por mês para funcionar continuamente 744 horas ao longo de 31 dias, sem sofrer qualquer quebra de intensidade que comprometa a precisão, bastando fornecer corda ao relógio 12 vezes por ano. O calibre L034.1 bate à frequência de 21.600 alternâncias por hora e integra dois enormes tambores sobrepostos com 25 mm de espaço interior e molas principais de 1,85 m, além de um complexo dispositivo de força constante entre o tambor duplo e o escape, independentemente do estado de tensão da mola da corda. Devido à potência das molas, tornar-se-ia extremamente difícil fornecer corda ao relógio através de um sistema de coroa habitual — a Lange optou por uma chave com roda livre que permite uma rotação fluída e sem tensão suplementar.

Vacheron Constantin Traditionnelle Twin Beat Perpetual Calendar
O calibre 3610 que equipa o Vacheron Constantin Traditionnelle Twin Beat Perpetual Calendar com os seus dois balanços bem visíveis. © Vacheron Constantin

O Traditionnelle Twin Beat Perpetual Calendar tem dois balanços no seu calibre 3610: um de alta frequência que oscila a 36.000 alternâncias por hora, acompanhado por um segundo órgão regulador que funciona à baixíssima frequência de 8,640 alternâncias por hora para assegurar a tal autonomia de 65 dias de funcionamento contínuo (1560 horas). No entanto, apenas um dos órgãos reguladores se adequa a uma utilização convencional: de baixa frequência, é incapaz de assegurar uma amplitude de oscilação estável quando sujeito aos esforços de um pulso em movimento, mas é responsável pelo prolongamento da vida útil de cada carga manual que assegura o recorde; a Vacheron Constantin regulou-o para uma performance otimizada numa posição horizontal (que acontece quando o relógio é pousado, normalmente durante a noite). A troca entre órgãos reguladores é ditada pelo utilizador, bastando simplesmente pressionar um botão: uma espécie de ‘interruptor’ baseado num sistema de engrenagens associadas a um género de diferencial que gere as necessidades distintas de ambos os osciladores.

[ Fim da primeira parte. A segunda parte será publicada na próxima semana, aqui no nosso site. A versão completa deste artigo pode ser lida no número 70 da Espiral do Tempo. ]

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