A. Lange & Söhne Zeitwerk: a obra do tempo

Em Glashütte e Dresden — Há um ano, a A. Lange & Söhne estava a apresentar o Zeitwerk Minute Repeater  uma obra-prima de meio milhão de euros que foi claramente um dos mais destacados relógios apresentados em 2015. A Espiral do Tempo teve a oportunidade de visitar em Glashütte o atelier dedicado à linha Zeitwerk e desvelamos alguns dos seus segredos. Para além de algumas notas pendentes da celebração do 200.º aniversário de Ferdinand Adolph Lange, em Dresden.

A.Lange & Söhne Zeitwerk Minute Repeater
O Zeitwerk Minute Repeater em destaque no âmbito das celebrações dos 200 anos de F.A. Lange.

A linha Zeitwerk ocupa um lugar muito especial no seio da coleção da A. Lange & Söhne e, por inerência, no âmbito da alta-relojoaria. Há alguns puristas que não a consideram tão representativa da manufatura saxónia como vários outros modelos de tradicional disposição analógica, desde o incontornável Lange 1 até ao Datograph, passando pelas excecionais versões Pour le Mérite com fuso de corrente. Pessoalmente, considero o Zeitwerk um relógio extraordinariamente representativo da A. Lange & Söhne — de tal modo que é mesmo o meu modelo preferido da marca: enquanto jornalista especializado em relógios, há muito que me habituei a encará-los de modo mais profissional e pragmático, mas num qualquer lote que poderia batizar de ‘Relógios de Sonho’ teria de incluir lá obrigatoriamente um, dois ou mesmo três Zeitwerks. E na minha última visita a Glashütte tive a oportunidade de visitar o atelier dedicado a essa linha tão atípica no novo edifício da manufatura.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Hoje em dia, à semelhança do que acontece em muitas outras manufaturas de topo mas também relativamente a marcas de gama média, a A. Lange & Söhne não permite que se tirem fotografias em várias áreas da linha de produção — mas deixa fazê-lo no atelier dos Zeitwerk, pelo que pude aproveitar a oportunidade para vos deixar aqui algumas imagens personalizadas.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Para mim, a linha Zeitwerk (Zeit é a palavra alemã para tempo; Werk significa trabalho, obra) apresenta um carisma muito especial decorrente de um visual singular que também está muito ligada às raízes da marca: se o Lange 1 apresenta uma janela dupla para a data que foi inspirada no relógio da Ópera de Semper, o Zeitwerk leva essa mesma inspiração histórica e estética para a indicação digital do tempo graças à apresentação das horas e dos minutos saltantes em duas janelas — num mostrador que inclui também uma escala de 200 graus para a reserva de corda e um submostrador analógico para os segundos.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
O Lange 1 apresenta uma janela dupla para a data que foi inspirada no relógio da Ópera de Semper. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Sem esquecer as aberturas que deixam ver os gongos nas versões acústicas, claro. Sim, porque após o Zeitwerk de base vieram o Zeitwerk Striking Time que se faz ouvir à passagem da hora e do quarto de hora e o Zeitwerk Minute Repeater que foi um dos principais protagonistas no universo da alta-relojoaria em 2015 ao arrebatar galardões um pouco por todo o lado, merecendo honras de destaque na mais recente edição da Espiral do Tempo dedicada à música e às complicações acústicas na relojoaria.

Zeitwerk Striking Time. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Zeitwerk Striking Time. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Comparativamente com o Zeitwerk Striking Time, o Zeitwerk Minute Repeater oferece um campo sonoro naturalmente mais alargado por se tratar de uma repetição de minutos — embora com a nuance de, ao contrário das repetições de minutos habituais, fazer soar a pedido as dezenas ao invés dos quartos de hora (toca as horas, as dezenas e os minutos mediante a pressão de um botão).

Zeitwerk Minute Repeater. © A.Lange & Söhne
Zeitwerk Minute Repeater. © A. Lange & Söhne

Para dar ainda mais ‘peso’ a um relógio extraordinário, o material precioso escolhido para o Zeitwerk Minute Repeater foi a platina e o mostrador prateado faz a diferença com uma combinação única relativamente aos outros modelos Zeitwerk. O diâmetro de 44,2 milímetros (que considero contemporâneo e perfeitamente aceitável para o modelo em questão, apesar de os tais puristas o acharem grande demais) é igual, mas a espessura de 14,1 milímetros é 1 milímetro superior ao que se verifica no Zeitwerk Striking Time tendo em conta a maior complexidade do calibre do Zeitwerk Minute Repeater. O Zeitwerk ‘normal’ é um pouco mais pequeno e menos espesso, ostentando 41,9 mm para 12,6 mm. Aqui fica a inevitável comparação entre os três modelos Zeitwerk assente em diferentes wristshots

Zeitwerk Minute Repeater. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Zeitwerk Striking Time. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Zeitwerk Minute Repeater. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Zeitwerk Minute Repeater. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Zeitwerk
O Zeitwerk da A. Lange & Söhne na sua versão mais clássica. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo


Zeitwerk, primeiro capítulo
Estreada em 2009, a linha Zeitwerk foi pioneira no sentido em que o Zeitwerk ‘essencial’ original se tornou no primeiro relógio a apresentar horas e minutos com algarismos saltantes — e não através de discos deslizantes, como sucedeu sobretudo na década de 70 e com algarismos pequenos que não eram perfeitamente legíveis devido não só ao tamanho, mas também ao ângulo de visão. No século XIX havia relógios de bolso com horas digitais em discos separados, mas o tempo era apresentado de modo vertical e a energia mecânica necessária provocava problemas de funcionamento. O design único do Zeitwerk acentuou o seu espírito inovador, com a coroa às 2 horas e sobretudo a sua ‘ponte do tempo’ central representada por uma peça em prata alemã galvanizada (que inclui a abertura para as horas e os minutos e ainda os pequenos segundos) que até faz parte do movimento. O indicador de reserva de corda faz o contraponto estético relativamente ao submostrador dos segundos.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Os três discos necessários (um para as horas, dois para os minutos) requerem um consumo de energia tremendo, apenas possível graças a um tambor de corda patenteado com uma mola especialmente comprida e um mecanismo patenteado de força constante. O Calibre L043.1 de corda manual é composto por 415 elementos e 68 rubis, dois dos quais inseridos em chatôns de ouro e pode ser visto em toda a sua glória através do fundo transparente, destacando-se as partes gravadas à maneira de Glashütte personalizadas com o padrão único do gravador e a engrenagem de salto do tempo a cada minuto.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

O princípio de funcionamento do Zeitwerk inclui o normal avanço do tempo em incrementos no seu ponteiro dos segundos (cinco avanços por segundo) mediante o sistema de escape tradicional, mas proporciona também um salto a cada minuto que pode fazer funcionar um, dois ou mesmo três discos no espaço de um mesmo intervalo — requerendo um mecanismo adicional que forneça uma quantidade bem maior de energia a cada 60 segundos para fazer avançar o(s) disco(s). Ou seja, dois sistemas de escape: a solução encontrada direciona a energia não para o sistema de escape mas para o escape de força constante, que retém a oscilação do balanço durante os 60 segundos para depois soltar a energia que faz saltar o(s) disco(s); o escape de força constante mantém o mesmo nível de tensão ao longo do arco da reserva de corda para uma superior precisão.


Zeitwerk, segundo capítulo
Em 2011, o Zeitwerk Striking Time veio dar uma dimensão acústica ao emblemático modelo — mantendo a estética do original mas acrescentando ao mostrador dois martelos e dois timbres que permitem ao utilizador ver o funcionamento da complicação sonora. Os martelos são bem visíveis às 4 e às 8 horas — a cada quarto de hora, o martelo da direita entra em ação batendo na parte do seu lado do tubo visível ao longo de quase todo perímetro do mostrador para um som agudo, ao passo que a cada hora o batimento é efetuado pelo martelo da esquerda para um toque grave.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

A inspiração para a canalização da energia do calibre L043.2 surgiu quando os relojoeiros da Lange restauravam um complicado relógio de bolso com repetição de minutos (Calibre nº 42500). A forma dos martelos do Zeitwerk Striking Time é reminiscente da história de Glashütte, região metalúrgica antes de se transformar num polo relojoeiro após as minas terem ‘secado’. O martelo (juntamente com a picareta) faz parte do brasão da localidade, evocativo dessa vocação mineira. Já agora… aqui fica uma imagem da placa presente numa das vias de acesso a Glashütte com o tal brasão bem visível.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Se o Zeitwerk precisa de uma enorme produção de energia para fazer saltar os discos das horas e minutos, o Zeitwerk Striking Time — disponível em combinações caixa/mostrador idênticas à do Zeitwerk) necessita ainda mais para acionar os martelos que fazem soar o tempo. A afinação do timbre/gongo é feita à mão para um som límpido; para alcançar a melhor sonoridade, é necessário montar e desmontar o sistema acústico várias vezes até se alcançar o efeito desejado no tom, no nível e na harmonização dos dois toques. Tecnologias especiais de medição e um ouvido musicalmente treinado são essenciais para que os parâmetros acústicos individuais sejam otimizados até ao mais ínfimo pormenor


Zeitwerk, terceiro capítulo

Em Janeiro de 2015, a Lange apresentou o Zeitwerk Minute Repeater como vedeta das suas novidades na 25.ª edição do Salon International de la Haute Horlogerie. Se no caso do Striking Time o botão surgia às 4 horas, no Minute Repeater o botão localizado às 10 horas faz o martelo da esquerda bater as horas, o da direita bater os minutos e fazer ambos soar combinadamente as dezenas de minutos em dois tons. E é às 12h59 que se pode ouvir o máximo de toques: ao longo de 20 segundos, o Zeitwerk Minute Repeater bate 31 vezes — 12 num tom grave para as horas, 5 vezes em toque duplo para as dezenas e 9 vezes num tom agudo para os minutos.

Zeitwerk Minute Repeater. © A.Lange & Söhne
Zeitwerk Minute Repeater. © A.Lange & Söhne

Anthony de Haas — o holandês responsável pelo departamento de pesquisa e desenvolvimento da A. Lange & Söhne que me confessou ser um ‘loud guy’ (afinal de contas, para além de um relojoeiro excecional é também um excecional baterista) e daí preferir complicações acústicas a turbilhões ou calendários perpétuos — confessou-me que tinha aproveitado a tecnologia aplicada ao milionário Grande Complication de 2014 para o Zeitwerk ‘Decimal’ Minute Repeater.

Para além de uma maior necessidade de energia do que os seus antecessores, o Zeitwerk Minute Repeater necessita de outros requisitos — nomeadamente protetores do mecanismo. Um sistema de proteção impede o funcionamento acústico quando não há energia suficiente e outro faz com que o salto dos minutos só se dê após a conclusão do anúncio sonoro. E não se consegue puxar a coroa durante o funcionamento, de modo a proteger o calibre L043.5 de corda manual — formado por 771 componentes e criteriosamente decorado à boa maneira de Glashütte. Trata-se do primeiro relógio mecânico que associa uma disposição de algarismos saltantes com uma repetição de minutos decimal. É também um instrumento musical para o pulso devidamente afinado.

Zeitwerk Minute Repeater. © A.Lange & Söhne
Zeitwerk Minute Repeater. © A.Lange & Söhne
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© A.Lange & Söhne

Tal como acontece nos instrumentos musicais, as leis da física que governam os fenómenos acústicos de um relógio dotado de complicações acústicas são essenciais para se atingir uma sonoridade de qualidade superior e um volume reverberante. Numa repetição de minutos, cada detalhe é significante: o material da caixa, o tamanho e a forma dos gongos, o modo como estão ligados ao movimento e o número de peças móveis. O volume de som tem de ser percetível mas não incomodativo, a plenitude e pureza devem ser apelativas, o ritmo e a cadência dos sons têm de expressar uma agradável musicalidade. E os gongos devem estar em perfeita sintonia.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Zeitwerk Minute Repeater. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Durante a montagem do calibre na respetiva caixa, os relojoeiros têm de efetuar inúmeras afinações. Tal como sucede em instrumentos musicais de elevada qualidade, os gongos são afinados exclusivamente à mão até ficarem perfeitamente sintonizados entre si. E, ao mesmo tempo que se faz soar o tempo, qualquer ruído de funcionamento do mecanismo de toque — que é habitual, diga-se de passagem — deve ser reduzido a um mínimo absoluto. O preenchimento de todos esses critérios constituiu um formidável desafio para a equipa do departamento de pesquisa e desenvolvimento da Lange.


Do bloco de notas
A visita à nova manufatura de Glashütte (inaugurada em agosto e estivemos lá nessa altura para vos contar como foi) foi o último de vários eventos associados à comemoração do 200.º aniversário do fundador Ferdinand Adolph Lange ao longo de três dias na área de Dresden e que contaram com quase duas centenas de convidados oriundos de 28 países — destacando-se a apresentação do 1815 Tourbillon Handwerkskunst em edição limitada na Opera de Semper (já vos demos conta dessa apresentação numa reportagem anterior), um primeiro jantar de boas vindas no palacete Schloss Albertsberg e sobretudo o jantar de gala no Albertinum.

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

Esse jantar de gala decorreu numa ampla sala onde se destacavam a reprodução das Portas de Bradenburgo — símbolo da reunificação alemã — e a representação dos quatro modelos que lançaram a A. Lange & Söhne da nova era em 1994. E, numa tradição que já é anual e que aconteceu pela sexta vez, o CEO da marca Wilhelm Schmid e o descendente do fundador Walter Lange entregaram o Prémio F.A. Lange de Excelência Relojoeira (um cheque de 10.000 euros) ao jovem finlandês Reima Koivukoski (23 anos) pela sua construção de um mecanismo de calendário semanal.

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Wilhelm Schmid, CEO da marca (à direita), e o descendente do fundador Walter Lange (à esquerda) entregaram o Prémio F.A. Lange de Excelência Relojoeira (um cheque de 10.000 euros) ao jovem finlandês Reima Koivukoski . © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
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Reima Koivukoski foi galardoado pela sua construção de um mecanismo de calendário semanal. © A.Lange & Söhne

Wilhelm Schmid anunciou também que a A. Lange & Söhne terá um papel ativo na reintegração de refugiados, oferecendo um futuro enquanto aprendizes de relojoaria a cinco elementos: «é a nossa maneira de manter o legado espiritual de Ferdinand Adolph Lange vivo», confessou o CEO da manufatura saxónica. Pessoalmente, fiquei emocionado com a prestação de uma ‘artista da areia’, uma senhora que — com desenhos construídos a partir de areia — apresentou o ‘filme’ simbólico dos 200 anos da história associada à marca, com notas especialmente relevantes para o período da Segunda Guerra Mundial e em especial a fase do derrube do Muro de Berlim que abriu caminho para a unificação da Alemanha e a ressurreição da A. Lange & Söhne. ET_simb

© Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
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E deixo-vos com algumas imagens emblemáticas de Dresden, que ao longo dos anos se tornou numa das minhas cidades preferidas. Se puderem, façam a visita… ET_simb

Dresden
Vista sobre a histórica ponte Augustusbrücke que liga Altstadt a Neustadt (a parte velha à parte nova) sobre o rio Elba. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Dresden
Um dos muitos mercados de Natal tão típicos por altura das festas natalícias. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Dresden
A Freuenkirche, símbolo do renascimento de Dresden. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Dresden
À direita, o mural ‘Procissão dos Príncipes’ na rua Augustusstrasse em direção à Frauenkirche que coloca em evidência todos os tiranos da casa de Wettin desde 1127 até 1904: 35 príncipes, duques e reis a cavalo junatmente com escudeiros a pé. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo
Dresden
A Hofkirche, a única igreja católica de uma Dresden eminentemente luterana. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Dresden
Mais um de muitos relógios em torres de igreja espalhadas por Dresden. © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

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