Edição impressa | Ainda os instrumentos do tempo não tinham sequer ponteiros para os minutos e já eram dotados de uma complexidade mecânica sonora capaz de chamar o utilizador à atenção. Os despertadores de mesa cedo se tornaram populares, mas a transição do relógio para o pulso no decurso do século XX não se revelou fácil para a função de alarme: foram escassas as companhias relojoeiras que se mostraram capazes de dominar a sua miniaturização — e a tendência de nicho mantém-se.
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Versão completa da reportagem publicada no número 53 da Espiral do Tempo.
Das várias complicações acústicas associadas à relojoaria mecânica, a mais básica é a do alarme. No entanto, sendo a mais básica na sua essência, aparentemente tem-se revelado difícil de ser concretizada com eficácia a um plano industrial: atualmente, é possível constatar que muitas marcas de topo têm disponíveis no seu portefólio execuções de alta-relojoaria equipadas com repetições de minutos ou sonneries, ao passo que são bem mais raros os modelos dotados de um simples alarme. Uma grande e pequena sonnerie (mecanismo que toca à passagem das horas e quartos) ou uma repetição de minutos (mecanismo que toca ao acionar-se um botão) são delicadas obras de arte relojoeira que, apesar de serem promovidas por várias marcas de topo (noblesse oblige), não são distribuídas em massa — até porque o preço é substancial. Um relógio dotado de alarme é sobretudo um prático instrumento do tempo com um aviso sonoro básico que deve apresentar um preço razoavelmente acessível e que não só tem de ser suficientemente bom para se detetar com eficácia, mas também suficientemente robusto para aguentar o vigoroso uso diário sem ser desmantelado. Esses três vetores combinados têm-se revelado uma equação difícil de resolver pela indústria relojoeira tradicional numa era moderna que começou com os primeiros relógios de quartzo multifunções e que é atualmente dominada pelos smartphones. Para quê gastar milhões no desenvolvimento de calibres com alarme mecânico (que têm de ser integrados, já que qualquer sistema modular é ineficaz) que não dão significativas mais-valias sobre os custos de produção, como sucede no caso dos onerosos modelos dotados de repetição de minutos e de sonneries?
Hoje em dia, há sobretudo duas casas relojoeiras com tradição e especialização no campo dos alarmes mecânicos: a Jaeger-LeCoultre, que apresenta um catálogo reconhecidamente abrangente e cuja competência técnica vai muito além dessa área específica; e a Vulcain, que ficou tão associada à função que desenvolveu toda uma estratégia industrial à sua volta, embora nos últimos anos esteja a tentar fugir ao estigma do monoproduto para apresentar uma oferta mais alargada. Juntamente com a Eterna, formaram um trio fundamental para os progressos do sistema de alarme — sendo mesmo as primeiras marcas a dominar com consistência os frequentes problemas que lhe estão diretamente associados: a propagação do som, a duração do toque, a intensidade do som, a alquimia das ligas metalúrgicas, o desregular provocado pelas vibrações, o consumo de energia e a estanqueidade.
Dos primórdios ao new old stock
A Eterna foi mesmo a primeira a desenvolver protótipos portáteis de alarme nos primórdios do século XX — com patentes para relógios de bolso em 1908 e 1914. No decurso do século, e além da sua produção própria, a Eterna também se destacou como uma das principais fornecedoras de mecanismos de base para grande parte da indústria relojoeira suíça — dando mesmo origem à ETA, que atualmente pertence ao Swatch Group. O popular calibre de alarme AS 1475, projetado por Adolf Schild (daí as iniciais) e que equipava 70 por cento dos modelos de alarme, foi apresentado em 1954, e a grande maioria dos despertadores de pulso que surgiram aquando do renascimento da relojoaria mecânica no final do século XX foi equipada com mecanismos new old stock (NOS) da marca; existiam muitas centenas de calibres novos que estavam armazenados desde a época da crise do quartzo entre as décadas de 70 e 80 que foram recuperados ao longo dos anos 90.
Desses calibres NOS, os movimentos manuais AS 1475 e AS 1930/1 ou o derivado automático AS 5008 com rotor de carregamento duplo (que alimenta simultaneamente o relógio e o alarme) equiparam muitos relógios de gama alta com atualizações e adaptações de fabricantes especializados em módulos (como a Jaquet, agora La Joux-Perret); a complementaridade mais frequente foi a acoplagem de um segundo fuso horário de modo a tornar esses modelos mais vocacionados para as viagens. Mas, como sempre acontece, os stocks — novos ou velhos — não duram para sempre…
O som da Grande Maison
Os primeiros protótipos da Jaeger-LeCoultre surgiram em 1925, melhorando a débil sonoridade dos primeiros alarmes de pulso com uma sineta circular desenvolvida a partir de uma ancestral receita metalúrgica chinesa que a Grande Maison tem mantido em sigilo. De modo a alcançar uma excelente propagação do som, o mecanismo surgia dotado de um diapasão em aço temperado e o som produzido pela percussão do martelo de bronze era é límpido e agradável; a qualidade desse sistema foi sancionada pela longevidade.
Após o marcante Calibre 489 de 1950, a Jaeger-LeCoultre desenvolveu o primeiro mecanismo automático com alarme de carga manual em 1956: o lendário Calibre 815, batizado ‘Memovox’ (voz da memória, em latim) e posteriormente aperfeiçoado nas suas versões subsequentes — o 825 (1959), o 916 (1970), o 918 (1994) e o 956 (2008), que surge atualmente como a versão mais aperfeiçoada.
No seu portefólio atual, a Jaeger-LeCoultre apresenta vários relógios com alarme, modelos de mergulho (as reedições Deep Sea) ou combinações alarme/calendário perpétuo e alarme/worldtimer que exaltam o seu histórico virtuosismo na especialidade — todos sem fundo de vidro de safira, para que o fundo fechado funcione como uma caixa de ressonância ideal para otimizar a eficácia do alarme. Um minúsculo martelo faz vibrar o timbre suspenso na periferia do interior da caixa e a qualidade sonora é deveras cristalina, com uma frequência ideal para agradar ao ouvido (nem demasiado baixa para o utilizador, nem excessivamente alta para incomodar o ambiente) devido à tal liga metálica especial mantida em segredo e à invenção de uma forma particular para o timbre.
O conceito Memovox, herdado do calibre histórico de 1956, assenta num calibre automático de frequência comparativamente elevada (28.800 alternâncias/hora) e um balanço sobredimensionado (10 mg/cm²); a precisão não é influenciada pela dispensa de energia associada ao alarme, já que dispõe de um tambor de corda distinto para cada função, e a sua ergonomia proporciona facilidade de regulação e montagem. Relativamente ao calibre original, a liga para o timbre é diferente, a frequência passou de 3 para 4 Hz, utilizam-se dentes tipo Spyr para as rodagens e há um sistema que bloqueia o timbre quando a reserva de corda do alarme é mínima. O som é cristalino e distinto, com o alarme a durar 16 segundos para uma frequência de 100 decibéis.
O acordar dos presidentes
O caso da Vulcain é emblemático. Começou por apresentar um protótipo em 1942 para, cinco anos depois, anunciar «o primeiro relógio despertador de pulso verdadeiramente funcional», dotado de um alarme patenteado com potência suficiente que seria adoptado por vários presidentes americanos dos anos 50 a 70 (com destaque para Truman e Eisenhower). O nome de batismo do calibre — Cricket — está diretamente relacionado com a inspiração que conduziu ao desenvolvimento do Calibre 120: o cientista Paul Langevin sugeriu ao engenheiro Robert Ditisheim, então patrão da Vulcain, que estudasse a anatomia do grilo. Ao esfregar as patas, o inseto produz um som amplificado por uma cavidade localizada no seu abdómen — e a adaptação do fenómeno à relojoaria surgiu através de um fundo de caixa duplo: o som é emitido no primeiro fundo por um martelo e difundido para o exterior através do segundo.
Após a falência ocorrida na período em que o quartzo asiático abalou os fundamentos da relojoaria tradicional suíça, a Vulcain ressuscitou em 2002 com uma estratégia totalmente alicerçada na atualização do calibre manual Cricket V-10 de 18.000 alternâncias/hora e na sua conjugação com outras funções (GMT, worldtimer, cronógrafo), lançando depois a versão de corda automática V-21. As melhorias relativamente ao calibre original são inerentes ao progresso industrial e evidentes na caixa de fundo duplo para superior ressonância, na regulação, no sistema antichoque (Incabloc), no exclusivo moderador de amplitude Exactomatic (originalmente registado em 1946), na utilização de diversos materiais com melhor desempenho e numa decoração mais nobre. A variante Nautical com fundo triplo reproduz o original de 1961, considerado o primeiro relógio com alarme audível debaixo de água, mas o modelo atualmente mais representativo da marca é o 50s Presidents’ .
O calibre Cricket utilizado dispõe de duplo tambor para uma reserva de marcha de 42 horas e cerca de 22 segundos de duração do alarme, com uma sonoridade constante ao longo de 20 segundos e uma intensidade de 111 decibéis. Os princípios patentes no V-10 são idênticos ao calibre original, mas melhorados — no sistema acústico, o martelo e a roda do alarme passaram a ser montados sobre rubis e a forma da âncora do alarme foi aperfeiçoada. O som não é cristalino, mas afigura-se muito distintivo e eficaz.
Os outros sistemas
Da popularidade dos alarmes mecânicos na década de 50, resultantes de um mundo novo que incluía parquímetros e voos para apanhar, sobreviveram as incontornáveis Jaeger-LeCoultre e Vulcain — sendo forçoso mencionar alguns modelos recentes que não estão dotados dos tais calibres A. Schild, com registos tão variados quanto a duração do alarme/da vibração, a sonoridade e o nível de som. A Breguet destaca-se através do notável Réveil du Tsar e Blancpain tem o seu Réveil Léman, ambos com um calibre modernizado Lemania-Omega 380 (o lendário Memomatic), enquanto a Harry Winston também fez uma incursão conceptual na especialidade graças ao Z06 idealizado por Jean-François Mojon. O Senator Diary da Glashütte Original permite programar um alarme com trinta dias de antecedência e soa durante 80 segundos. Num plano mais acessível, a Tudor lançou uma reinterpretação livre de um seu histórico modelo despertador — o Advisor.
E depois vêm as combinações. A especificidade dos calibres dotados de alarme e a necessidade de transformar a estrutura do relógio numa caixa de ressonância dificultam a sua conjugação com outras complicações. É mais fácil a acoplagem de um segundo fuso horário ou um módulo worldtimer, mas a sua conjugação com o cronógrafo é mais difícil. No final da década de 90, os cosmonautas da estação espacial EuroMir sugeriram à Fortis que estreasse o primeiro relógio mecânico com cronógrafo e despertador. O mestre Paul Gerber teve por base o tradicional calibre Valjoux 7750 e dotou-o de um alarme com 65 peças genialmente integradas sem a necessidade de se recorrer à construção modular para não alargar a espessura do mecanismo de base, graças ao melhor aproveitamento possível do espaço para a colocação do mecanismo despertador (martelo, um segundo tambor, sistema de corda e sistema de acerto) que ecoa durante 25 segundos. A Zenith foi um pouco mais longe e combinou a sua especialidade cronográfica El Primero com um disco worldtimer e o alarme no Pilot Doublematic.
Mais recentemente têm surgido vários modelos interessantes dotados de alarme com calibres de manufatura ou especialmente comissionados. Mas a produção fiável em grande escala continua a ser a mais exclusiva da indústria relojoeira e a estar ao alcance de muito poucos. E com um sistema de despertador verdadeiramente pessoal, já que só acorda o seu utilizador — ao contrário dos alarmes de telemóvel.
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