A primeira edição da Milano Watch Week correspondeu às expectativas e foi mesmo além do esperado no que diz respeito à adesão de marcas e do público. O que só prova que os eventos presenciais estão mais fortes do que nunca no universo relojoeiro. Porquê? Aqui ficam as razões e o rescaldo ao evento.
O colapso de Baselworld enquanto maior feira mundial de relojoaria e a crescente importância da revolução digital na indústria do setor prometiam desatualizar o tradicional modelo das feiras relojoeiras, mas… a paixão prevaleceu. A paixão dos aficionados, precisamente alimentada pela internet e suas redes sociais. E nem a pandemia acabou por impor o tal ‘novo normal’ virtual que se adivinhava — pelo contrário: os eventos relojoeiros presenciais continuam a nascer que nem cogumelos, desde reuniões de aficionados (desde os eventos do Red Bar Group aos nossos Encontros Espiral do Tempo) até feiras organizadas de maneira mais institucional. Como se pôde constatar na Milano Watch Week, que voltou a confirmar a importância da experiência táctil e do sentido de comunidade.

A Itália é um mercado que tem sido injustamente subestimado pelas grandes marcas nos últimos tempos — injustamente porque a sua importância no contexto da relojoaria e das tendências relojoeiras é muito maior do que se pode supor. Foi a Itália que ‘salvou’ o Reverso da extinção. Foi a Itália que esteve por trás da necessidade de criar o Royal Oak. Foi a Itália que fez crescer o mercado leiloeiro e de pre-owned. É certo que as duas edições anuais da Vicenzaoro incluem os eventos relojoeiros paralelos VO’Clock, mas a predominância é joalheira. Faltava um evento mais significativo, ou que fosse especialmente representativo das marcas independentes da alta-relojoaria. E nasceu a Milano Watch Week.

A Milano Watch Week surgiu associada a dois ragazzi (Fabrizio Buonvicino e Vittorio Loreto) que fundaram a plataforma Italian Watch Spotter, que começou por ser uma página no Instagram destinada a identificar relógios no pulso de pessoas famosas, e os amigos empreendedores Edoardo Armentano e Stefano Mantovani. O projeto foi inspirado na Dubai Watch Week, que desde meados da década passada se tornou no melhor evento relojoeiro do mundo e a bitola a seguir por todos os outros em múltiplos parâmetros.

No total, a Terrazza Martini albergou 22 marcas expositoras mais outras duas (houve um evento específico da Daniel Roth, que não foi marca expositora; a Lederer esteve numa soirée do evento dedicada ao design num espaço distinto). Várias outras marcas ficaram de fora… porque não houve espaço para elas.

Por outro lado, o local escolhido também se revestiu de particular importância. A Terrazza Martini é um sky bar bem conhecido em Milão com dois andares no topo de uma torre próxima do centro nevrálgico da cidade e com vista para a praça do Duomo e para a Galeria Vittorio Emmanuele. Uma localização emblemática e de fácil acesso, com o andar superior a ser destinado a fóruns de debate e a cocktails, com saída para uma varanda exterior ideal para wristshots com o Duomo por cenário de fundo. Pena foi a inclemência meteorológica dos primeiros dois dias, mas Milão também não é uma cidade propriamente conhecida por ser ensolarada.

Uma boa descrição da Milano Watch Week foi proporcionada por um jovem colega italiano, que disse ser o evento milanês «um belo bebé italiano nascido da Watches & Wonders com o Geneva Watch Days», destacando a conveniência de estarem todas as marcas concentradas num único local, como sucede na Watches & Wonders, e a convivialidade inerente ao ambiente estival do Geneva Watch Days. Com razão. Para além do facto de as marcas aderentes serem de elevadíssima qualidade — na sua esmagadora maioria, marcas independentes de alta-relojoaria com produção exígua e relógios muito especiais ou mesmo muito raros de se terem na mão.

E houve mesmo algumas edições especiais lançadas no contexto da Milano Watch Week.
Peças muito especiais
Uma delas foi uma peça única da Ferdinand Berthoud preparada exclusivamente para a Milano Watch Week, um FB 2T em ouro amarelo que prolonga a aura de um relógio dotado de sistema de força constante e transmissão por fuso e corrente que foi galardoado um pouco por todo o mundo. Outro caso foi o lançamento de um Czapek Antarctique Milano, o elogiado exemplar de design integrado da Czapek especificamente declinado para o evento numa tiragem limitada com mostrador Franciacorta entre o dourado e o salmão (em parceria com a GMT/Great Masters of Time, distribuidora especializada em marcas independentes de luxo).

Também foi possível ver as mais recentes criações de marcas como a De Bethune ou a Moser — ou mesmo colocar no pulso relógios que só seriam comunicados à imprensa alguns dias depois, como foi o caso do Urwerk UR-150 Scorpion, numa evolução de caixa mais arredondada do que a do UR-100.

No que diz respeito aos visitantes, houve mais aficionados e colecionadores do que imprensa propriamente dita. O número de visitantes foi tal que se tornou necessário escalonar um horário de visita, com limite de tempo para cada pessoa — e esse limite foi respeitado. A Itália, com toda a sua história associada às artes, é um país culturalmente propenso ao colecionismo e a esmagadora maioria dos visitantes eram profundos conhecedores do fenómeno relojoeiro. Mesmo assim, tiveram a oportunidade rara de lidar com marcas e relógios quase de nicho, tão elevado que é o seu posicionamento e reduzida produção.

Entre os muitos parceiros de destaque que a organização arranjou, contaram-se a Maserati, que transportou convidados de um lado para o outro, e a MV Agusta, com um motociclo em exibição no andar superior da Terrazza Martini (ou seja, o 16º andar do edifício). Várias outras marcas conhecidas pela sua ‘italianidade’ se juntaram ao evento, numa lógica de parcerias de luxo que funcionou muito bem para todas as partes envolvidas.

O caso Daniel Roth
No plano relojoeiro, e para além das novidades e das várias palestras agendadas, houve um acontecimento que se destacou particularmente: uma apresentação especial da Daniel Roth, com a presença de Michel Navas — o mestre relojoeiro que, com Enrico Barbasini, fundou a La Fabrique du Temps que atualmente pertence à LVMH e se tornou numa espécie de viveiro de alta-relojoaria do grupo.

A Bulgari tinha adquirido a Gerald Genta e a Daniel Roth há mais de duas décadas e inicialmente executou peças em double branding até elas acabarem por perder a sua identidade; com a integração da Bulgari no grupo LVMH e a maior intervenção dos irmão Arnault nos últimos ano, a estratégia mudou e ambas as marcas — com o nome de dois grandes protagonistas relojoeiros das décadas de 70 a 90 — a serem agora preservadas no âmbito da La Fabrique du Temps, com um maior respeito pelo passado.

O novo Daniel Roth Tourbillon de Souscription é um excelente exemplo de respeito pelo passado, sendo uma reprodução atualizada mas fiel ao original que vale por si só — sem perder valor comparativamente com o relógio que o inspirou. O movimento foi desenvolvido por Michel Navas e Enrico Barbasini, sendo que Michel Navas substituiu precisamente Daniel Roth na Audemars Piguet quando ele saiu para criar a sua própria marca e foi mesmo o primeiro relojoeiro a meter um turbilhão num relógio de pulso, em 1986.

O evento da Daniel Roth na Milano Watch Week contou com uma conversa entre o jovem Fabrizio Buonvicino (um dos organizadores da Milano Watch Week) e Michel Navas, para além da exibição de alguns modelos históricos da marca que se distingue pela sua caixa em dupla elipse e pelo ponteiro em hélice (de três pontas) dos pequenos segundos.
Números finais
No total, houve mais de 4.000 registos de visitas via online e 3.000 visitas efetivas ao longo dos três dias e meio (a noite de estreia na quinta e depois de sexta a domingo) do evento — com visitantes de mais de 30 países. Sem esquecer a presença de vários fundadores ou CEOs de muitas marcas protagonistas do evento.

De Pierre Jacques (De Bethune) a Xavier de Roquemaurel (Czapek), passando por Michel Nydegger (Greubel Forsey); de Felix Baumgartner (Urerk) a Benoit Mintiens (Ressence), passando por Marco Borracino (Singer Reimagined); de Ludovic Ballouard (Ballouard) a Romain Gauthier (Romain Gauthier), passando por Rémi Maillat (Krayon), Vahé Vartzbed (HYT) ou Volcy Bloch (Trilobe). Mestres relojoeiros e designers, dirigentes e ainda relações públicas de renome. Velhas amizades foram fortalecidas, novas amizades foram forjadas num reforço do sentimento de comunidade que cada vez mais carateriza o universo relojoeiro.

Ou seja, o saldo é extremamente positivo. As expectativas foram ultrapassadas. E confirmaram aquilo que se viu de seguida no SIAR da Cidade do México, no IAM Watch de Singapura e na Windup Fair e WatchTime New York em Manhattan. Com o Horology Forum da Dubai Watch Week a bater à porta. E, até ao final do ano, teremos mais um ou outro capítulo dos nossos eventos Espiral do Tempo. Viva a relojoaria!