Opinião: o caso Studio Underd0g e a tendência ascendente

A Studio Underd0g acabou de apresentar o primeiro exemplar da sua Série 03, um cronógrafo três vezes mais caro do que o modelo com que a micromarca britânica se lançou. Duas semanas depois de uma colaboração com a marca de alta-relojoaria H. Moser. Há quem diga que há um desvirtuamento do conceito original. Será?

A Studio Underd0g tornou-se num caso à parte no cenário da relojoaria contemporânea. Foi lançada com sucesso no Kickstarter no mesmo dia em que a Furlan Marri se estreou com retumbante êxito. A Espiral do Tempo esteve atenta a esse lançamento duplo e documentou-o, tal como tem estado atenta ao desenvolvimento das duas marcas. E, enquanto a Furlan Marri estabilizou na sua maturação, a Studio Underd0g tornou-se num autêntico fenómeno mediático que a coloca num patamar muito especial — especialmente após o que se passou nas últimas três semanas, com o posicionamento numa nova fasquia de preço que tem gerado sentimentos contraditórios entre os aficionados.

Os três relógios do Studio Underd0g
Os três modelos inaugurais da Studio Underd0g: Deseet Sky, Watermel0n e Go0fy Panda | Foto: Studio Underd0g

Tudo começou nos Geneva Watch Days, com a apresentação conjunta de um dueto aparentemente improvável mas com irreverência em comum. A marca de alta-relojoaria H. Moser & Cie  e a Studio Underd0g, por intermédio dos respetivos CEOs, anunciaram uma ‘frutífera’ colaboração materializada num estojo de duas peças com mostradores de cromatismo inspirado no… maracujá. Um calendário perpétuo no caso da H. Moser & Cie e um cronógrafo da Studio Underd0g, comercializados em conjunto por um preço à volta dos 60.000 euros. Edouard Meylan e Richard Benc revelaram que o projeto já estava na forja há mais de um ano e não precisaram de se justificar muito: quem tem seguido o trajeto das duas marcas sabe que ambas mexeram com o status quo relojoeiro pelas arrojadas opções e lúdicas soluções.

maracujá watermelon H. Moser Studio Underd0g
Os dois relógios da dupla colaborativa recentemente desvelada nos Geneva Watch Days | Foto: H. Moser & Cie/Studio Underd0g

Mas se o modelo de base da H. Moser & Cie nesse dueto era uma peça já conhecido do catálogo da manufatura de Neuhausen, o cronógrafo da Studio Underd0g — embora visualmente parecido com os modelos inaugurais — surgia dotado de um movimento cronográfico suíço monopulsante. Esse cronógrafo foi agora lançado na coleção regular sob a designação 03Series e numa primeira declinação designada Salm0n, a um preço de 1800 euros. Ou seja, três vezes mais caro do que os cronógrafos da Série 01 e que trouxeram fama à micromarca britânica (em especial o melancia Watermel0n). Logo se levantaram vozes acusando a marca de desvirtuar as suas origens e de querer posicionar-se numa fasquia de preço que não é o seu. Mas, na verdade, não foi bem isso o que aconteceu.

o novo 03Series Salm0n | Foto: Studio Underd0g
Primeiro modelo da 03Series: o cronógrafo monopulsante Salm0n | Foto: Studio Underd0g

Para abordar mais profundamente o tema, convém começar por fazer um esclarecimento. A Espiral do Tempo foi um dos primeiros órgãos de comunicação especializados a documentar o lançamento da Studio Underd0g e o autor destas linhas estabeleceu uma relação de amizade com o fundador da marca, Richard Benc, de tal modo que colaborou numa edição especial denominada Strawberries & Cream (lançada em agosto de 2022). A Espiral do Tempo também teve conhecimento antecipado (em 20 de fevereiro de 2023) de um protótipo do Salm0n anunciado neste último fim-de-semana. Essa ligação pessoal e profissional não afeta a análise ao fenómeno; até contribui para um maior conhecimento de causa e possibilita a argumentação correta.

Três fatores

No pulso: o cronógrafo monopulante Salm0n da nova 03Series | Foto: Studio Underd0g

A primeira constatação é generalista e tem a ver com a evolução de praticamente todas as marcas de base mecânica para um segmento superior e para exercícios de estilo mais sofisticados. Desde grandes marcas como a TAG Heuer ou a Omega até, obviamente, micromarcas como a Studio Underd0g — e como a Furlan Marri e a Isotope, para falar apenas de micromarcas que ganharam projeção na presente década. E a tese do ‘desvirtuamento’ da Studio Underd0g (ou da Furlan Marri, ou da Isotope) não se revela correta por três razões fundamentais:

— a Studio Underd0g não vai deixar de fazer os seus relógios da Série 01 que lhe granjearam fama, nem os da Série 02. Ou seja, não vai deixar o segmento de preço com que iniciou a sua aventura e que está ao alcance de quem só pode ou quer pagar esse preço.

— muitos dos clientes que podem pagar mais por um Studio Underd0g (e o fenómeno da marca é tal que há milionários e grandes colecionadores que têm um Studio Underd0g de 600 euros porque acharam a ideia refrescante) pediram ao fundador Richard Benc que fizesse um upgrade ao seu conceito e utilizasse também movimentos suíços mais precisos/fiáveis do que o Seagul; esse tipo de pedidos de colecionadores que se tornam amigos das marcas é normal e já levaram marcas de topo a fazer modelos desportivos que anteriormente asseguravam que nunca iriam fazer (como a F.P. Journe e os LineSport, a A. Lange & Söhne e o Odysseus)

— mantendo a estética pela qual a Studio Underd0g ficou conhecida, a Série 03 é um relógio muito mais sofisticado no calibre utilizado (um Sellita suíço de corda manual, com acionamento monopulsante através de um único botão para as funções cronográficas; revestimento escurecido em ruténio) e no mostrador elaborado (por exemplo, nos Série 01 via-se de imediato a melancia no modelo Watermel0n; no Série 03 só sabemos que o mostrador é inspirado nas escamas dp salmão porque nos é revelado que essa é a inspiração da elaborada textura)

Acabamento escurecido em ruténio do calibre cronográfico de corda manual usado na Série 03 | Foto: Studio Underd0g

Ou seja, o passo dado pela Studio Underd0g é a coisa mais normal que existe na indústria relojoeira, sobretudo desde a sua fase de ‘renascimento mecânico’ após a crise do quartzo que transfigurou o mercado nas décadas de 70 e 80. Aliás, as próprias marcas que adotaram o quartzo e depois se reconverteram aos calibres mecânicos deram esse passo naturalmente… porque a relojoaria mecânica é sempre mais onerosa. E no caso específico da Studio Underd0g até se pode justificar mais do que noutros devido à perceção que, entretanto, a marca alcançou (para os referidos grandes colecionadores, dar 600 euros ou 1800 é praticamente igual, porque a sua realidade financeira é bem desafogada).

Um ‘salmão mecânico’ diferente do que se vê habitualmente | Fotos: Studio Underd0g

Talvez haja, no entanto, uma situação de overdose — ou seja, de sobrexposição — com a edição especial com mostradores de pizza e a recente edição especial passion fruit/maracujá a saturarem o conceito ‘alimentar’. Talvez uma das duas não devesse ter existido para evitar essa saturação. E uma delas não era para existir. A edição Passion Fruit com a H. Moser & Cie foi delineada antes da tal edição da pizza, e a edição da pizza começou por ser uma brincadeira de 1 de abril que não era para existir mas que ganhou vida própria. Porque as pessoas (fãs, amigos, clientes) quiseram que existisse. Tal como quiseram relógios e cronógrafos Furlan Marri mecânicos e bem mais onerosos do que os cronógrafos mecaquartzo inaugurais… e também a Furlan Marri fez essa transição com grande pertinácia e sucesso, como a Baltic também lançou cronógrafos seis vezes mais caros do que o seu modelo original e ainda como a Isotope está a lançar também um sofisticado cronógrafo Moonshot a 3000 euros.

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