Alguns dos mais recentes lançamentos relojoeiros foram recebidos de maneira polarizante devido ao recurso a… parafusos. Utilizados de modo funcional e/ou estético, os parafusos são um fundamental componente da relojoaria que vai muito para além da sua utilização nos movimentos mecânicos.
Um dos mais cobiçados relógios a ser apresentados no British Watchmakers’ Day deste fim-de-semana em Londres é, indubitavelmente, o The Gimlet — um relógio de assinatura dupla Fears x Studio Underd0g que assenta na caixa tonneau Brunswick da Fears Watch Company (marca fundada em 1846 que fechou as portas em 1976 e foi ressuscitada em 1976) e num mostrador translúcido parente dos que a Studio Underd0g (micromarca nascida em 2021 que se tornou num case study de sucesso) implementou na sua linha 02 Series. Trata-se de um relógio diferenciado e apelativo com um diâmetro vintage de 38mm e motorizado pelo Calibre Sellita SW210-1 de corda manual; limitado a 200 exemplares exclusivamente vendidos no evento ao preço unitário de 1.000 libras, seguramente que vai esgotar num ápice e gerar especulação no mercado secundário. Mesmo com os seus parafusos no mostrador.

Sim, o tema que traz à baila o Fears x Studio Underd0g The Gimlet para este artigo nem é o evidente mérito de tão interessante colaboração: são os dois parafusos que se destacam claramente no mostrador e que fazem comichão a muita gente, como fizeram quando a Studio Underd0g lançou a 02 Series no outono de 2023. Nessa altura, houve muitos a proclamar que comprariam um dos quatro modelos se não tivessem os parafusos no mostrador; mas também houve muitos a comprar e a declarar não se importarem minimamente com o adereço… que tem sido sobejamente utilizado na história da relojoaria enquanto recurso estético, sendo mesmo componente fundamental no look de alguns dos seus principais ícones. Porque, no que diz respeito à inevitável utilização nos movimentos mecânicos de corda manual ou automática, não há qualquer controvérsia.

Vários compradores asseguram que, ao vivo, os parafusos dos modelos 02 Series não incomodam tanto como nas fotografias. E, perante a alegação dos aficionados que diziam que comprariam os relógios «se não tivessem os parafusos no mostrador», Richard Benc foi peremptório: «A razão dos parafusos? Na construção do mostrador dos modelos 02 Series temos a base, depois sete níveis de Super-LumiNova e ainda um vidro de safira de 1mm. É sobre o vidro em cima dessas múltiplas camadas que os algarismos são impressos e parecem flutuar, dando ao mostrador uma profundidade muito especial cuja dinâmica é precisamente reforçada pelos dois parafusos».

E acrescenta: «Esses dois parafusos seguram as diversas placas circulares e impedem a sua rotação, pelo que são completamente funcionais. Na verdade, até podia tê-los escondido ou optar por outra solução… mas decidi torná-los numa parte importante do visual do relógio para fazer deles uma indicação de que há algo de mais no mostrador para além daquilo que aparece à primeira vista».

Para além disso, os parafusos conferem uma identidade clara à linha 02 Series. Sem eles, a estética ficaria menos diferenciada e mais conservadora — e, potencialmente, mais comercial. Mas não é o conservadorismo ou a unanimidade que uma marca como a Studio Underd0g procura; afinal de contas, forjou inicialmente a sua reputação fresca e irreverente num relógio designado Watermel0n com cores de melancia! Enquanto designer, Richard Benc também procura algo que seja diferente. E os designers sempre seguem aquela máxima de que um design nunca é suficientemente bom se não cria impacto ou se não é polarizante, preferindo sempre a dicotomia amor/ódio à indiferença.
Símbologia parafusal

O parafuso é mesmo um símbolo industrial ou mecânico e, por consequência, da relojoaria mecânica — embora o seja menos do que o balanço ou a roda dentada, tantas vezes usados em logótipos relojoeiros. E se, grosso modo e em tantas outras áreas, o ideal é mesmo esconder os parafusos, na relojoaria podem tornar-se veículos fundamentais numa determinada linguagem decorativa. Os exemplos são numerosos.

Alguns dos grandes ícones da relojoaria recorrem aos parafusos enquanto elemento fundamental da sua estética, sendo que em vários casos eles têm também um papel funcional. O Royal Oak (e, por arrasto, o Royal Oak Offshore) poderá mesmo ser o mais laureado exemplo da utilização de parafusos, integrados por Gerald Genta no seu desenho da luneta e com a função de apertar precisamente a luneta octogonal à caixa e ao fundo para garantir a sua inviolabilidade. Empregou seguidamente o mesmo princípio no Ingenieur, da IWC.

Essa era também a função dos parafusos que adornavam aquele que foi considerado o primeiro relógio de pulso masculino, concebido por Louis Cartier em 1904 para que o seu amigo aviador Alberto Santos-Dummond ficasse com as mãos livres para pilotar; nesses tempos, a arquitetura do aço estava em alta e a então recente Torre Eiffel exercia grande influência nas artes. Note-se que a Cartier passou a comercializar o Santos a partir de 1911 e em 1978 relançou-o com uma bracelete metálica integrada contendo igualmente parafusos.

Muitos dos relógios desportivos de luxo integrados na tipologia do design integrado incluem parafusos bem visíveis na luneta ou na caixa. Como sucede com os Richard Mille (parafusos personalizados) desde 2002 e os Hublot (parafusos em H na luneta, embora no Big Bang Unico Novak Djokovic use parafusos em forma de bola de ténis!) desde 1980 ou a Bell & Ross com parafusos na caixa do BR-05 desde 2019, se bem que o BR-05 (que já tem uma variante mais radical BR-X5) seja uma espécie de adaptação dos quadriláteros BR-01 e BR-03 inspirados nos instrumentos de bordo com parafusos alinhados a 45 graus nos quatro cantos.

Nesses casos de parafusos na luneta ou na caixa, tal como sucede no mostrador, há marcas mais sofisticadas que os alinham de uma certa maneira ou marcas que não se dão ao trabalho — e o alinhamento ou não dos parafusos, que pode requerer muito tempo e tornar a peça mais onerosa, é algo passível de afetar muito o espírito dos aficionados mais picuinhas. A tal história do once you see it, you can’t unsee it.


No entanto, há um detalhe relevante quanto ao Royal Oak — inspirado em capacetes de mergulhadores com juntas vedantes e que parece ter sempre os parafusos da luneta alinhados: na verdade, esses parafusos são extremos contrários dos parafusos e que se alojam perfeitamente nas reentrâncias hexagonais… porque a cabeça do parafuso está do outro lado, no fundo, a fixar a estrutura. E, normalmente, as ranhuras não estão alinhadas. Mas, nesse caso e porque não estão constantemente à vista, já não causam tanta estranheza.

A Cvstos é outra marca do novo milénio cujo visual modernista assenta igualmente na utilização estética e funcional de parafusos na carrure das suas caixas de formato tonneau — sobretudo nas suas linhas Challenge, SeaLiner e JetLiner.

Também a Linde Werdelin, com um design de pendor fortemente nórdico com a assinatura de Morten Linde, inclui no seu formato geométrico quatro estratégicos parafusos que têm o condão de segurar as braceletes — sendo que na linha Oktopus a utilização dos parafusos estende-se ao contorno da luneta. Atenção: a linha Oktopus está em processo de renovação e os parafusos irão assumir um papel ainda maior na nova configuração da luneta.

Outro excelente exemplo da utilização predominante dos parafusos para compor uma estética é o do Alpine Eagle, da Chopard — já de si um herdeiro direto do St. Moritz de 1980, que até tinha mais parafusos! Para além dos quatro pares na luneta, os parafusos assumem grande preponderância funcional na estrutura muito original das braceletes metálicas da coleção.
Utilização clássica
Os parafusos fazem também parte integral da estética gizada pelo mestre François-Paul Journe para os seus cobiçados modelos, lançados a partir do estabelecimento da marca F.P. Journe no final da década de 90. Os parafusos que ‘seguram’ os submostradores — na maioria descentrados — que caraterizam os mostradores da marca não estão lá por acaso: foram inspirados na estética de velhos mestres que influenciaram François-Paul Journe, como Antide Janvier ou Ferdinand Berthoud.

A própria Ferdinand Berthoud, renascida há cerca de uma década sob a batuta de Karl-Friedrich Scheufele e com o suporte técnico da Manufatura Chopard, coloca os parafusos em destaque nos seus mostradores. Acaba por ser uma herança histórica de vários séculos que remonta ao fundador da marca e aos seus cronómetros de marinha com os respetivos parafusos no mostrador.

Outro relógio de elevado gabarito que coloca em evidência parafusos no mostrador é o excecional Zeitwerk, da A. Lange & Sohne — que entretanto evoluiu para uma linha que se tornou num ex-libris da manufatura saxónica. Esses parafusos têm igualmente a função de acoplar a chamada ‘ponte do tempo’ à base do mostrador; a colocação inversa de um parafuso relativamente ao outro proporciona uma velada irreverência ao visual decididamente germânico da peça.

Mais ainda povoado de parafusos no mostrador está o Chronomètre 27 de Kari Voutilainen, uma obra-prima do mestre finlandês assente numa edição de 27 exemplares de caixa retangular com asas evocativas das tradicionais asas em forma de gota que utiliza nos seus modelos redondos; no total, o mostrador de disposição regulador do Chronomètre 27 inclui oito parafusos azulados — que contrastam com a base prateada do mostrador e saltam verdadeiramente à vista.

O caso steampunk
A utilização criteriosa de parafusos também pode seguir uma via estética industrial e mesmo steampunk — e ninguém utilizou melhor essa influência estética na relojoaria do que Vianney Halter, o ‘relojoeiro do futuro anterior’. Os parafusos são fundamentais para o visual impactante de emblemáticos modelos seus, como o revolucionário Antiqua e o seu descendente Trio. Relógios que o capitão Nemo seguramente não desdenharia usar ao comando do submarino Nautilus no romance Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne!

Já agora, e passando de uma obra literária subaquática para uma marca que exibe as horas através de fluídos, a nova linha T1 da HYT também integra dois parafusos no mostrador — exatamente com o mesmo posicionamento dos parafusos na 02 Series da Studio Underd0g. Já os dois parafusos no mostrador tipo Sector Dial do Petermann Bédat x Auffret Paris Chronomètre d’Observatoire têm um posicionamento que deve ter posto a cabeça em água a muitos aficionados que não apreciam a sua inclusão em mostradores ou que padecem da síndrome da simetria: um está entre os índices da 1 e das 2h, o outro entre os índices das 7 e das 8h!

O veredito final? Utilizando uma expressão usual na língua portuguesa, quem «tem parafusos a menos» parece não se importar tanto com parafusos em mostradores; por oposição, quem tem parafusos a mais e alguma tendência para o transtorno obsessivo-compulsivo deixa-se afetar mais por eles enquanto recurso estético. Mas, qualquer que seja o caso, há mesmo parafusos para todos os gostos — tal como sucede com os relógios.