Panerai, o mito e o adeus do mentor

Angelo Bonati pode ser considerado o ‘fundador’ da Panerai dos tempos modernos e foi uma figura determinante na ressurreição da relojoaria mecânica enquanto objeto de culto. Era um veterano da indústria — e deixou-nos ontem, aos 74 anos. Recordamos a sua obra fundamental à frente da marca e uma entrevista em Cascais.

Foi o homem que fez a Panerai como a conhecemos atualmente. Angelo Bonati pegou no nome histórico de um atelier relojoeiro de Florença que fornecia relógios de mergulho à marinha italiana, desenvolveu a sua lenda conhecida apenas de alguns colecionadores e criou uma das mais apetecidas marcas na transição do milénio. Angelo Bonati era o Signore Panerai. Depois de se ter reformado em 2018 e de ter passado o cargo de CEO a Jean-Marc Pontroué, morreu a 15 de maio de 2025. Aos 74 anos de idade.

Angelo Bonati: o homem que fez da Panerai a marca que é atualmente | Fotos: Panerai
Angelo Bonati: o homem que fez da Panerai a marca que é atualmente | Fotos: Panerai

Angelo Bonati nasceu em Milão, no ano de 1951. Estudou economia e começou no setor da joalharia nos anos 70. Em 1980 entrou para o grupo Vendôme (que depois passou a ser designado Richemont) e trabalhou como sales manager para várias marcas até ser nomeado Diretor de Vendas e de Marketing da Cartier em 1987. Passou para o mundo da moda em 1993 e regressou ao grupo em 1997 para o lançamento oficial da Officine Panerai, que nos anos anteriores tinha sido um projeto seu. No início, era apenas ele, um computador, uma secretária e uma sala — mas rapidamente capturou o imaginário dos aficionados, fazendo com que o estilo military chic se tornasse numa tendência na relojoaria e protagonizando a moda dos relógios sobredimensionados que caraterizou o início do século.

O Luminor, com o seu sistema de ponte protetora da coroa e mostrador em sanduiche, foi o modelo que popularizou a marca | Foto: Panerai
O Luminor, com o seu sistema de ponte protetora da coroa e mostrador em sanduíche, foi o modelo que popularizou a marca | Foto: Panerai

«Os meus amigos diziam que eu usava um despertador no pulso!», gostava de dizer Angelo Bonati. A homogeneidade da coleção inspirada nos modelos de mergulho dos anos 1930 foi um dos seus grandes trunfos. «Esteticamente, a Panerai congelou o seu estilo. Nunca atraiçoou o seu design histórico, apesar de termos uma caixa que teve de se adaptar aos mecanismos que a marca foi adotando». Num ápice, uma clientela habituada a modelos de 36mm passou a cobiçar peças de 44mm ou mais de diâmetro; de um momento para o outro, toda a gente queria ter um Luminor Marina ou um Radiomir. E, de relógios essenciais de mergulho, rapidamente se passou a complicações e até mesmo grandes complicações. O catálogo atual da marca é particularmente extenso e há boutiques por todo o mundo, incluindo duas em Portugal.

Angelo Bonati: o Signore Panerai | Fotos: Panerai
Angelo Bonati deixou-nos aos 74 anos de idade | Fotos: Panerai

À sua maneira, Angelo Bonati também se transformou num mito. Soube interpretar o sinal dos tempos e a evolução do setor relojoeiro para estabelecer paulatinamente a Panerai como marca de culto. Desenvolveu a mais fanática comunidade de colecionadores do universo relojoeiro, os tifosi Paneristi (que até tiveram um encontro mundial P’Day em Lisboa, para além da comunidade local Paneristi Portugal). Teve um empurrão de Sylvester Stallone no caminho para a fama, quando o conhecido ator americano (de ascendência italiana, convém sublinhar) fez uma grande encomenda para oferecer aqueles tão peculiares e grandes relógios de mergulho a amigos de Hollywood. O resto é história, como se costuma dizer.

Manufatura Panerai nos arredores de Neuchâtel | Foto: Panerai
Manufatura Panerai nos arredores de Neuchâtel | Foto: Panerai

A pequena Officine Panerai que Giovanni Panerai fundou em 1860 tornou-se na manufatura Panerai com um impressionante centro de produção em Neuchâtel. E Angelo Bonati fará para sempre parte da história da marca de origens florentinas, perdurando na memória com o seu emblemático bigode e os caraterísticos blasers traçados.

Panerai Transat Classique

O mês de dezembro de 2012 foi particularmente importante para a Panerai — e talvez mesmo o mais importante mês de sempre da companhia florentina em Portugal. No espaço de dias inaugurou a sua Boutique Panerai na Avenida da Liberdade e deu partida, em Cascais, à Panerai Transat Classique. Angelo Bonati concedeu-nos então uma entrevista para falar da associação da marca ao mar e ao universo dos veleiros clássicos.

Veleiro Eilean visto do cimo do mastro, a navegar
O veleiro Eilean foi adquirido por Angelo Bonati e tornou-se num ex-libris da Panerai | Foto: Panerai

Na altura ainda havia muito poucas boutiques monomarca em solo luso e a Panerai tornou-se numa das primeiras companhias relojoeiras a concretizar um espaço próprio — e logo na cada vez mais cosmopolita e exclusiva Avenida da Liberdade, no início de quem sobe, do lado esquerdo, no nº 69 B. A abertura desse espaço próprio deu-se no dia 1 de Dezembro, sendo que a 2 de Dezembro deu-se a partida em Cascais para a segunda edição da Panerai Transat Classique; a 18 de Dezembro ocorreu a inauguração oficial da Boutique Panerai de Lisboa (complementada, em 2020, por um espaço próprio no Porto e depois por um corner no El Corte Inglés).

Iconografia Panerai: a loja original de Florença e os homens-rãs com relógios no pulso durante a Segunda Guerra Mundial | Fotos: Panerai
Iconografia Panerai: a loja original de Florença e os homens-rãs com relógios no pulso durante a Segunda Guerra Mundial | Fotos: Panerai

Angelo Bonati presidiu aos destinos da histórica marca florentina desde a sua ressurreição nos anos 90 e consequente aquisição pelo grupo Vendôme/Richemont, que lhe deu pujança para sair do nicho dos aficionados puros e duros e ganhar fama mundial mas mantendo um carácter exclusivo. No ensolarado dia de partida da Panerai Transat Classique, e depois de um bom almoço logo após a saída dos veleiros da Panerai Transat Classique rumo a Barbados, concedeu uma entrevista à Espiral do Tempo — da qual aproveitamos as partes relacionadas com a política de patrocínios da marca (na altura extremamente exígua por política da casa) e o seu apego às regatas clássicas.

Entrevista em Cascais

Porquê Cascais como ponto de partida?

Porque adoro Cascais. E porque seria um bom ponto de encontro para os participantes que viessem do mediterrâneo e os barcos da costa norte da Europa. Mas estou muito contente por termos decidido fazer a partida do Panerai Transat Classique em Cascais!

Angelo Bonati deixou-nos aos 74 anos de idade | Fotos: Panerai
Angelo Bonati: o Signore Panerai | Fotos: Panerai

A Panerai praticamente só patrocina regatas de veleiros clássicos, ao passo que há muitas marcas que patrocinam diversos desportos ou actividades e têm exércitos de embaixadores. Como explica uma política de patrocínios tão concentrada?

Nós queremos manter-nos concentrados, queremos respeitar a nossa casa, queremos respeitar o nosso ADN. O primeiro relógio que a Panerai construiu foi para fins militares e para ser utilizado debaixo de água. É por isso que mantemos a ligação ao mar; seremos sempre uma marca mais desportiva mas temos de manter o enfoque — eu sei que na indústria relojoeira andam todos da esquerda para a direita e de um lado para o outro, pode ser-se uma marca desportiva sem uma área de intervenção precisa e estar por todo o lado, mas se a Panerai estivesse em todo o lado não seria possível reconhecer mais a Panerai. Por exemplo, se associássemos a Panerai ao futebol, qual seria a legitimidade? Qual seria a nossa legitimidade se estivéssemos no golfe? Eu jogo golfe e adoro o golfe — e por vezes perguntam-me lá no meu clube porque é que não patrocino torneios de golfe como patrocinamos a vela, mas porque o faria? Não é a nossa praia. É claro que quem joga golfe é um potencial cliente Panerai, mas terão de se juntar à Panerai através da ligação marítima e não através do golfe. É por isso que queremos continuar fiéis ao projeto de patrocinar regatas clássicas e tornar-nos na referência da especialidade. E em todo o mundo não há comparação com a Panerai: patrocinamos muitas provas de barcos clássicos, especialmente no Mediterrâneo. A exclusividade e a qualidade que conseguimos exprimir através do nosso circuito é única.

Panerai Radiomir Venti com a bracelete personalizada junto a uma máquina fotográfica Leica
Panerai Radiomir Venti com bracelete personalizada | Foto: Paulo Pires/Espiral do Tempo

A Panerai também é conhecida por ser avessa aos tradicionais embaixadores. Porquê?

Não temos qualquer embaixador da marca. O único embaixador não é oficial: é o Sylvester Stallone. Ele adora a Panerai, compra relógios Panerai, por vezes usa Panerai nos seus filmes mas não lhe pagamos por isso. Poderemos eventualmente dar-lhe um relógio quando pede, mas é tudo. Não acho que necessitemos de ser apreciados pelo facto de pagar a alguém famoso para usar os nossos relógios. Os famosos têm de usar os relógios porque gostam deles — e, se gostam compram. O posicionamento da marca é muito importante. Se se trata de uma marca que ocupa um segmento alargado do mercado, tudo bem — todas as estratégias de marketing se justificam. Mas, sendo uma marca de nicho num segmento de nicho, temos de ser coerentes com as nossas raízes — não podemos sair por aí a patrocinar o golfe ou o ténis, por exemplo. Quero que a marca seja sinónimo de regatas de barcos clássicos. Cada barco clássico é diferente do outro, é único — e é isso que expressa a nossa marca, a sua autenticidade. Podemos dizer que cada relógio é único; cada exemplar do Bronzo, por exemplo, é único porque está sempre em mutação por causa da oxidação. Como um barco clássico. Compra-se um Panerai por que razão? No que diz respeito à técnica e aos conteúdos, temos conteúdos superlativos mas ainda somos uma marca relativamente nova para se afirmar somente pelos mecanismos — é preciso tempo para uma afirmação. Então, o que se pode fazer é valorizar a nossa autenticidade através do relógio, do posicionamento e também do nosso relacionamento com a vela. Achamos que a ligação funciona: queremos fazer sonhar as pessoas e achamos que estes belos veleiros clássicos fazem as pessoas sonhar.

Submersible Bronzo Blu Abisso em fundo escuro
A Panerai também pôs o bronze na moda: Submersible Bronzo Blu Abisso | Foto: Panerai

A Panerai ficou conhecida pelo tamanho dos seus relógios; qual é o protagonismo que acha que a marca teve na chamada moda dos relógios sobredimensionados que se começou a sentir por alturas da viragem do milénio?

A minha opinião pessoal: quando lançámos a Panerai, apercebi-me de que os relógios grandes não eram uma moda — eram a realidade. Os relógios pequenos já não são relógios. Os relógios grandes são melhores porque as pessoas podem ver melhor o tempo. E não é verdade que o peso seja u problema, porque o peso de um relógio mecânico é sinónimo de qualidade. As pessoas podem comprar relógios mais finos e relógios ainda maiores, mas Panerai continuará a ter a sua própria personalidade e coerência — e no dia em que fizermos algo de diferente dou-te autorização para vires ter comigo e dizeres-me: «és um estúpido».

Radiomir de 1940 | Foto: Panerai
Histórico: Radiomir de 1940 | Foto: Panerai

O Angelo Bonati é mais pró-Luminor ou Radiomir?

Agora estou com um Radiomir, mas tenho um Luminor no saco. Depende do momento, do estado de espírito. Mas no inverno prefiro usar mais modelos Radiomir, ao passo que no verão uso mais os Luminor. Não me perguntem porquê…

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