Fabuloso British Watchmakers’ Day: o rescaldo

A segunda edição do British Watchmakers’ Day realizou-se no passado fim-de-semana com bilheteira esgotada, entusiasmo transbordante e edições limitadas. A cultura relojoeira está mesmo em alta, empurrada pela criatividade e frescura de micromarcas — no caso britânicas, mas com reflexos significativos no universo dos aficionados.

Foi uma grande demonstração de vitalidade. Organizado pela Alliance of British Watch and Clock Makers, o British Watchmakers’ Day realizou-se no passado dia 8 de março em Londres com meia centena de marcas britânicas e lotação esgotada — com a casa cheia a ser assegurada com grande antecedência devido à adesão das marcas e à compra antecipada dos ingressos disponíveis para as duas sessões (manhã e tarde). O facto de a bilheteira ter esgotado em 12 horas e de a divulgação das edições limitadas exclusivamente dedicadas ao evento ter suscitado grande entusiasmo prévio foram dois fatores que deixavam entrever que o evento seria um sucesso. E foi mesmo um enorme êxito.

Filas à entrada do Lindley Hall para a sessão vespertida do British Watchmakers' Day | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Filas à entrada do Lindley Hall para a sessão vespertina do British Watchmakers’ Day | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

A Alliance of British Watch and Clock Makers tem por missão representar e defender a cultura relojoeira britânica, desenvolvendo uma forte rede de apoio para reforçar o ecossistema britânico de relojoaria. A presença de 50 marcas que lotaram o Lindley Hall (na zona dos Jardins Botânicos, em St James) foi logo uma demonstração de pujança, mas as vedetas acabaram mesmo por ser as edições especiais de relógios criados exclusivamente para os visitantes do British Watchmakers’ Day — modelos para todos os pulsos, bolsos e estilos. Obviamente, a sua divulgação na internet deixou os aficionados com água na boca e é sempre apetecível ter um relógio de tiragem exclusiva a um preço acessível…

Rule Brittania: o mostrador em marqueteria da edição especial BWD da Isotope | Foto: BWD
Rule Brittania: o mostrador em marqueteria da edição especial BWD da Isotope foi inspirado na Union Jack | Foto: BWD

Nos dias que antecederam o evento, os ingressos já quase que valiam ouro — em vários grupos de aficionados no WhatsApp, faziam-se ofertas muito generosas para a compra de um bilhete que nominalmente valia 11 libras (os membros da ABWCM tiveram acesso gratuito), mas que chegou a valer 50 para quem queria mesmo um ingresso de última hora. Os eventos presenciais de relógios continuam em grande demanda e, após a extinção do antigo SalonQP na Saatchi Gallery, faltava algo em Londres capaz de arregimentar os entusiastas; a possibilidade de conhecer fabricantes, fundadores ou designers, ouvir as explicações e histórias por trás das suas criações e experimentar pessoalmente os relógios é o que faz com que esses certames sejam verdadeiramente especiais. Em suma: a partilha.

A apetência pelo Stdio Underd0g x Fears 'The Gimlet' também contribuiu para a afluência | Foto: Studio Undeerd0g & Fears
A apetência pelo Stdio Underd0g x Fears ‘The Gimlet’ também contribuiu para a afluência | Foto: Studio Undeerd0g & Fears

O British Watchmakers’ Day também proporcionou uma espécie de regresso ao passado, quando as principais feiras de relojoaria apresentavam um contacto direto entre os responsáveis das marcas e os seus distribuidores, clientes e colecionadores — até que surgiram os conglomerados de empresas e a relojoaria se transformou num grande espetáculo de luxo, com stands do tamanho de castelos em Baselworld e uma acessibilidade muito restrita. No Lindley Hall, o que se viu foram mesas em espaço aberto e sobretudo uma entusiasmante interação entre as marcas expositoras e os 1.300 visitantes.

Davide Cerrato no espaço da 'sua' Bremont | Foto: BWD
Davide Cerrato no espaço da ‘sua’ Bremont com a linha Terranova em destaque | Foto: BWD

Na grande maioria, as firmas expositoras eram micromarcas, mas também marcas de produção mais robusta como a Bremont e a Christopher Ward — com a exclusiva Roger Smith do consagrado mestre do mesmo nome (e digno sucessor de George Daniels) a figurar no vértice do que de melhor se faz na alta-relojoaria clássica em todo o mundo.

Mudança de paradigma

O último relatório da indústria relojoeira assinado pela Morgan Stanley destaca o declínio nas vendas das principais marcas de luxo de ‘nível médio’ (entre 1500 e 5.000 euros) — devido não só às condições económicas impostas pela adversa conjuntura internacional, mas também a uma mudança nas preferências do consumidor. Os entusiastas estão a migrar para designs independentes e de nicho que oferecem exclusividade, acessibilidade e qualidade cada vez mais competitivas.

O espaço da Isotope no  Lindley Hall durante o British Watchmakers Day | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
José Mendes Miranda e a mulher Joana no espaço da Isotope durante o British Watchmakers Day | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Com melhor atendimento pós-venda e um toque pessoal, as pequenas marcas estão já a rivalizar com conhecidas e até históricas companhias relojoeiras de preço médio. No caso particular do British Watchmakers’ Day, ficou evidente que a criatividade na relojoaria britânica está em crescendo e que as micromarcas locais estão a ganhar grande projeção internacional. Há cada vez mais gente a preferir usar um relógio original de uma pequena firma independente apenas conhecida pelos verdadeiros insiders do que modelos de marcas convencionais que toda a gente conhece e que são consideradas ‘comerciais’. As indies britânicas estão mesmo em alta.

O novo Isotope Moonshot Terra Maris nas suas duas versões de bracelete e o mais recente modelo da Schofield | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O novo Isotope Moonshot Terra Maris nas suas duas versões de bracelete e o Schofield Obscura | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Uma dessas micromarcas até foi fundada por um português: a Isotope, de José Mendes Miranda — coma qual a Espiral do Tempo até já participou em duas edições colaborativas (Old Radium UK/Portugal 650 e Old Radium ‘Black Ink’), e que esteve em destaque no British Watchmakers’ Day com duas edições especiais do seu modelo Mercury M com belos mostradores em esmalte cloisonné e em micromarqueteria, desenhados por uma artista britânica (Sophie Scott-Lewis); o mostrador em marqueteria foi confecionado pelo artista português Bernardo d’Orey, no seu atelier em Paris. Também gerou grande entusiasmo o novo Moonshot — o inovador primeiro cronógrafo da marca com discos nos submostradores, para já lançado nas versões Stealth e Terra Maris. Pena que a Escudo, outra micromarca com ligações a Portugal, não tenha estado presente.

O stand das colaborações da Studio Underd0g ao final do dia, após o assalto ao ‘The Gimlet’ | Foto: BWD

A Studio Underd0g foi a estrela da feira, sobretudo através da sua colaboração com a Fears na criação de uma edição limitada (denominada ‘The Gimlet’ e inspirada num cocktail de gin e lima) que fez com que muitas dezenas de aficionados passassem a noite toda ao relento para conseguir adquirir um dos 200 exemplares colocados exclusivamente à venda no British Watchmakers’ Day (100 na sessão matinal e 100 na sessão vespertina).

Originalidade e Variedade

A colaboração entre uma jovem marca com somente quatro anos e que rapidamente ganhou estatuto de culto e uma marca de considerável herança secular, também produto da amizade entre os respetivos responsáveis Richard Benc e Nicholas Bowman-Scargill, foi muito apelativa: o mostrador com sete camadas luminescentes e parafusos da linha 02 Series da Studio Underd0g ficou mesmo especialmente bem na caixa Brunswick de formato cushion da Fears.

O Fears x Studio Underd0g 'The Gimlet' | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Delicioso cocktail: o Fears x Studio Underd0g ‘The Gimlet’ | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

O Fears x Studio Underd0g‘The Gimlet’ comprovou a popularidade e a apetência pelas collabs, seduzindo os conhecedores e atingindo públicos totalmente novos. Também se viram nos corredores muitos projetos pessoais de edição limitada por parte de colecionadores conhecidos ou simplesmente entusiastas ‘anónimos’. Uma tendência que vem crescendo nos últimos anos, principalmente entre as comunidades de relógios no WhatsApp e no Instagram. Todos querem fazer e ter o ‘seu’ próprio relógio!

Exercícios cromáticos em modelos da Farer e da Clemence | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Exercícios cromáticos em modelos da Farer e da Clemence | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O geométrico Beaucroft x Penfold e o assimátrico Anoma A1 | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O geométrico Beaucroft x Penfold e o assimétrico Anoma A1 | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

De resto, destacaram-se a colaboração da Beaucroft com o artista Penfold ou a parceria artística da Mr Jones com o ilustrador Mister Phil, os fundos de caixa de esmalte artísticos da Schofield projetados por Benjamin Guffee, e o C1 Moonphase Mission to Maidenhead da Christopher Ward, que fincou com humor uma bandeira britânica na superfície lunar. A Bōken mostrou a sua linha Breacher com uma pintura de mostrador pelo The Dial Artist — um exercício de criatividade que, como tantos outros expostos no Lindley Hall, realmente tinha de ser visto ao vivo para ser devidamente apreciado.

O modelo com mega fases lunares da Christopher Ward e o expositor da Zero Watches | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O modelo com mega fases lunares da Christopher Ward e o expositor da Zero West | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

A Farer é uma marca que tem um excelente domínio das cores e apresenta combinações cromáticas muito interessantes. A Bamford apresentou os seus novos relógios de mergulho com caixas em cerâmica. E a Anoma foi uma das estrelas da feira, com o seu relógio assimétrico A1 inspirado numa lendária mesa de design de interiores que o ano passado se cotou entre os relógios finalistas do Grand Prix d’Horlogerie de Genève. A Bremont exibiu os novos modelos em bronze da linha Terranova e as mais recentes versões GMT do Supermarine.

O novo Supermarine GMT da Bremont tem um belo dégradé horizontal | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O novo Supermarine GMT da Bremont tem um belo dégradé horizontal | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O D-300 Gloss White, um dos quatro modelos de mergulho em cerâmica apresentados pela Bamford | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O D-300 Gloss White, uma das quatro versões de mergulho em cerâmica apresentados pela Bamford | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Entre marcas que também são nomes associados a projetos média, a Time+Tide vendeu caixas de relógio em formato de donut e a Bark & ​​Jack expandiu-se para produtos de café de alta qualidade — provando que os criadores de conteúdo estão a alavancar a sua influência para construir os seus próprios negócios paralelos. A capacidade de misturar narrativa com comércio, mesmo que seja contra a ética do jornalismo tradicional, está a moldar novos modelos de negócio na indústria relojoeira. Novos tempos, novos costumes.

Mais cores: o Isotope Mercury M Marchetry e o Christopher ward com escala de mergulho | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Mais cores: o Isotope Mercury M Marchetry e o Christopher Ward C65 Super Compressor Elite com escala de mergulho | Fotos: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Relógios à parte, o British Watchmakers’ Day foi igualmente um festival de produtos relojoeiros alternativos, variando da mistura de t-shirts gráficas da Bamford às bases de copos da Studio Underd0g que espelham os seus mostradores (incluindo o do popular ‘Watermel0n’) e a motocicleta vintage da Vertex. Mas, apesar dos diferentes relógios e produtos relacionados em oferta, o evento constituiu um inesquecível rendez-vous para os aficionados — muitos dos quais só se conheciam pelas redes sociais ou em grupos de WhatsApp, e que depois foram jantar juntos e ficaram amigos para a vida. Gente vinda expressamente de todo o mundo, dos Estados Unidos a Singapura.

Síndrome do Segundo Álbum

A primeira edição do British Watchmakers’ Day foi tão bem sucedida que havia um pouco o receio do chamado ‘Síndrome do Segundo Álbum’ — as expectativas estavam mesmo muito elevadas. Quando a organização divulgou a lista de participantes no final de janeiro de 2025 para a segunda edição, começou a sentir-se todo o burburinho on-line à volta dos relógios em tiragem limitada dedicados ao evento e anunciados por 26 das marcas expositoras. Havia algo especial para todos e as marcas relataram uma atividade on-line sem precedentes antes e durante o grande dia.

O mestre Roger Smith e o organizador, com o Lindley Hall ao fundo | Foto: BWD
O mestre Roger Smith e o organizador Alistair Audsley, com o concorrido Lindley Hall ao fundo | Foto: BWD

O British Watchmakers’ Day revelou-se a oportunidade perfeita para testar conceitos, estéticas e preços nos compradores mais motivados do mundo. Por exemplo, a marca de relógios de inspiração automobilística Omologato vendeu todos os exemplares que trouxe. Houve gente a comprar cinco ou seis relógios de marcas diferentes, houve pais que levaram filhos para lhes oferecerem o primeiro relógio mecânico. E o fenómeno da Studio Underd0g e alguns modelos HydriumX da Isotope mostrou também que, embora as marcas sejam tecnicamente competitivas, estão coletivamente a fornecer modelos para cada tipo de humor, atividade ou dia. Desde o Elliot Brown ‘Holton Auto’ ao Mr Jones ‘Khaosify’. Sim, o famoso humor britânico também contaminou a relojoaria!

O salão de exibições do Lindley Hall e a enchente do British Watchmakers' Day | Foto: BWD
O salão de exibições do Lindley Hall e a enchente do British Watchmakers’ Day | Foto: BWD

Agora é esperar um ano até à terceira edição do British Watchmakers’ Day. E ver como é que a organização vai gerir a evidente crise de crescimento — possivelmente arranjando um espaço de exibição maior, para mais marcas e mais visitantes.

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