Nenhum outro modelo fez tanto pela eclosão da Isotope como o Hydrium — seja nas versões HydriumX mais lúdicas ou Hydrium mais sérias. Mas se o Hydrium é um dive watch de raiz, a mais recente versão Hydrium California quase que evoca mais road trips do que as profundezas aquáticas. Com uma pitada de história a condimentar e os segredos do autor para complementar.
A menção Califórnia conjura de imediato um mundo de aventuras — a corrida ao ouro, faroeste, cinema, praia, férias, deserto, road trips, San Francisco, Los Angeles, Hollywood. E, claro, aquela música:
«On a dark desert highway
Cool wind in my hair
Warm smell of colitas
Rising up through the air»
A alegoria de Hotel California pode significar a prisão da fama, das drogas ou simplesmente um universo que nunca mais se vai abandonar — uma vez entrado, o ‘hóspede’ que atravessou o deserto rumo ao seu destino já não consegue ir embora: «Podes pedir a conta quando quiseres, mas jamais poderás sair…», salienta o último verso. E o que é que o famoso tema de 1976 dos Eagles tem a ver com a relojoaria? Mais do que se possa pensar. Como se pode constatar através do novo lançamento da Isotope, a marca britânica fundada pelo portuense José Mendes Miranda.
California Dreamin’
Na relojoaria, a designação California evoca um tipo específico de mostrador que junta algarismos árabes a numerais romanos; à primeira vista, a ‘salganhada’ pode confundir… mas a combinação foi idealizada para afastar qualquer confusão e impedir erros de leitura do tempo em circunstâncias difíceis. Porque, nos primórdios do mergulho profissional, a gestão do tempo nas profundezas era algo de bem mais complexo: era uma questão de vida ou de morte. Nas primeiras décadas do século XX, e à medida que os relógios passavam do bolso para o pulso, a exploração dos oceanos fez com que o relógio se tornasse numa peça de equipamento vital para os mergulhadores especializados. E até aos anos 40 e 50, quando a estanqueidade ainda não era suficientemente aperfeiçoada, os mergulhadores profissionais estavam sobretudo associados a atividades militares — pelo que os relógios eram produzidos por requisição governamental e com diretrizes muito específicas relativamente à legibilidade.
As marcas relojoeiras foram testando diversos tipos de grafismo e luminescência que pudessem proporcionar a melhor leitura possível em ambientes de visibilidade precária; a 15 de julho de 1942, a Rolex recebeu a patente (Brevet Nº.221643, já extinto) para um mostrador com algarismos romanos na metade superior e árabes na inferior, publicitando-o como error-proof dial — um mostrador à prova de erro de leitura em precárias condições de visibilidade, limitando sobretudo a confusão entre os numerais 6 e 9 quando observados de ângulos distintos ou entre indexes demasiado parecidos entre si. A Panerai usou alguns desses mostradores híbridos na fase terminal da Segunda Guerra Mundial, até porque os seus relógios eram fornecidos pela Rolex com mostradores feitos na Stern Frères, embora a marca de origem italiana alegue ter um protótipo de mostrador California que remonta a 1936.
A partir da Segunda Guerra Mundial, o mergulho profissional passou da esfera quase exclusivamente militar para o campo da investigação científica e até comercial — enquanto os relógios foram adquirindo cada vez maior estanqueidade e documentários sobre o silencioso mundo submarino foram capturando o imaginário do público. Os mostradores híbridos mantiveram-se no anonimato até que, aquando do ressurgimento da relojoaria mecânica na década de 80 após a crise do quartzo, os exemplares vintage da Rolex e da Panerai com numeração mista romano-árabe suscitaram grande interesse. Não se sabe exatamente como é que surgiu então a designação ‘mostrador California’; uma das versões prende-se com um restaurador chamado Kirk Rich, que estava baseado na… Califórnia (e ainda está em atividade). Como uma boa alcunha é sempre carismática, o nome pegou. Mas a origem de tais mostradores, como a origem do próprio nome, é algo pantanosa — como as águas a que se destinavam. Os musicólogos poderão aqui inventar uma ligação entre Muddy Waters e o Hotel California dos Eagles, acrescentada de uma pitada de California Dreamin’ dos The Mammas & the Papas (Californication, dos Red Hot Chili Peppers, pode ficar de fora da playlist…).
Hydrium California
O certo é que, devido a tão específico mostrador, o novo Hydrium California é o primeiro modelo Hydrium com laivos vintage — sendo a linha Hydrium sobretudo uma gama de relógios de mergulho de estilização moderna. Não é a primeira linha da Isotope de inspiração retro, já que a coleção inclui o Old Radium (e o ‘nosso’ Old Radium Portugal-UK 650 x Espiral do Tempo!) inspirado nos antigos field watches. Por isso, tornou-se inevitável consultar o fundador da marca luso-britânica para conhecer melhor as razões da aposta em tão singular tipo de mostrador, que acaba por encaixar que nem uma luva na caixa do Hydrium… pelo menos na interpretação da tipologia California escolhida por José Mendes Miranda e pelo seu designer António Teixeira.
«Raros são os relógios clássicos que aprecio, incluindo os de mostradores com algarismos romanos. O meu dress code é relaxado, e poucos são os relógios com numeração romana que se adaptam a uns jeans e uma camisa de mangas arregaçadas», adiantou. «Quando há uns anos descobri os mostradores ditos error-proof, rendi-me ao equilíbrio e elegância que aparentavam e iniciei a busca habitual para tentar adquirir um bom exemplar. Ter um Rolex ou um Panerai com um mostrador California legítimo sempre foi um dos meus grails enquanto colecionador. No entanto, os valores de mercado dos modelos originais atingiram um patamar impossível de alcançar e, depois de quase adquirir um falso, que era bom demais para ser verdade, optei por arrefecer a ideia», relembra.
«E o tempo foi passando… até que, há uns anos, quando o conceito Hydrium começou a tomar forma, tentámos um primeiro design de mostrador California com a assinatura Unobtainium, pois seria parte de uma coleção de designs que considero impossíveis de obter. A ideia ficou de parte e era boa demais para colar a algo que seria apenas considerado um relógio homenagem. Tive de dar tempo ao tempo para desenvolver o conceito e criar uma peça que, apesar de inspirada em designs de há 70 anos, parecesse jovial, desportiva e clássica ao mesmo tempo. Ou seja, um tool watch simultaneamente clássico e moderno!».
José Mendes Miranda tem razão. O produto final é apelativo e, para além de ser «simultaneamente clássico e moderno», é ao mesmo tempo um relógio de mergulho e um relógio de aventura com pitadas de field watch militar devido aos elementos de estilo conjugados no mostrador. «A superfície rugosa e os algarismos complementam-se e têm um equilíbrio perfeito, com dimensões e proporções ideais para um relógio de mergulho e do dia-a-dia. Escolhemos a luminescência Super-LumiNova C3 misturada com pigmentos de cor para se obter um efeito vintage. Não foi um exercício fácil, só concretizado dada a genialidade do nosso designer de longa data, o também português António Teixeira, que dedicou horas e horas até finalmente encontrarmos a estrutura e as cores perfeitas para este género de mostrador».
Há mais detalhes a sublinhar, para além da textura e da configuração dos algarismos: «A estrela antes da assinatura Hydrium foi retirada da bandeira do estado da Califórnia, cuja história está bem explicada no nosso website. E as letras CA acrescidas são a abreviatura de Califórnia, que convenientemente tem os carateres exatos para dar equilíbrio à metade inferior do mostrador», especifica José Mendes Miranda. «Os ponteiros Isotope em ‘i’ de aço escovado criam o contraste necessário para uma leitura rápida das horas. Ao mesmo tempo oferecem um ar descontraído e adulto ao relógio, realçando a sua componente desportiva. Os únicos brilhos e reflexos são dados pelos vidros de safira por cima do mostrador e na luneta rotativa unidirecional de 120 cliques. Ver o Hydrium California ao vivo, depois de tantos anos a tentar encontrar o mostrador error-proof perfeito, é a materialização de um sonho e o fim da busca de algo que, por mais que procurasse, nunca encontraria!».
Já aqui escalpelizamos anteriormente o lançamento das variantes HydriumX e Hydrium, alavancado sobretudo com o sucesso do Will Return. A típica caixa, em aço matizado de acabamento microjateado para um visual mais industrial, é robusta sem ser excessivamente grande como os bestiais divers da primeira década do presente século ou demasiadamente pequena como preconizam os hipsters novaiorquinos — é uma caixa de 40mm por 14,9mm com volume e presença no pulso, feita para bater todos os dias e com diâmetro de mostrador suficiente para se ler as horas debaixo de água ou numa tempestade na montanha… e não numa qualquer mesa de computador no Soho. Mas também dá para isso! Relativamente à roupagem, a Isotope disponibiliza duas opções: a bracelete Tropic de inspiração vintage em cauchu FKM perfurado (preta ou de qualquer outra cor disponível no catálogo da marca) e a correia com acabamento do tipo camurça em tons caqui — enquanto ainda não está disponível a bracelete metálica Hydrium que José Mendes Miranda tem vindo a testar.
As nossas impressões
Os tool watches, e em especial os relógios de mergulho, são sempre uma aposta segura, tanto para as marcas como para os aficionados e compradores. O mais recente lançamento de impacto mundial na relojoaria foi precisamente um diver watch com espírito de aventura, o Pelagos FXD da Tudor. Coincidentemente, dois dias depois, a Isotope estava a lançar o Hydrium California com vários pontos de contacto — desde a aura militar ao mostrador preto, passando pela linha vermelha no grafismo. Obviamente que um lançamento nada teve a ver com o outro, já que (e não digam nada a ninguém) temos vindo a testar o Hydrium California desde julho. E recordam-se dos últimos versos de ‘Hotel California’?
«You can check-out any time you like
But you can never leave!»
Pois é. Isso quer dizer que o Hydrium California é um keeper… agarrem-no antes que a tiragem limitada de 200 exemplares se esgote. Entre os múltiplos modelos HydriumX e Hydrium já lançados, alguns ficarão para sempre na memória devido ao humor e originalidade — como o Will Return, o Exit, o The Judge e o Otopsie em colaboração com o irreverente designer francês Romaric André (aka Seconde/Seconde). O Hydrium California é dos que merecem ficar na coleção para não mais sair… até para aqueles que, como o autor destas linhas, nem acham os mostradores California tão apelativos ou tão error-proof como isso.
Claro que se trata de ‘mais um’ relógio de mergulho de mostrador preto, uma combinação tão usada e abusada que tem tudo para ser boring, mas que acaba por ser entusiasmante porque exala um perfume romântico que vai além da sua tipologia. E esse perfume, que é mais de aventura de superfície do que propriamente subaquática, é fornecido não só pelo mostrador granulado como pelos tons caqui nos algarismos e nas marcações de uma luneta redesenhada (em comparação com as dos outros modelos HydriumX e Hydrium) para transmitir uma fragrância especificamente vintage. No seu conjunto, e sobretudo se for utilizada a correia de camurça acastanhada (que ganha com o tempo uma patina caqui muito atraente), o Hydrium California conjura mais os great outdoors do que a Great Barrier Reef — evoca a Route 66, o Grand Canyon, o Mojave Desert, mas também o espírito militar de uma força de elite como a Legião Estrangeira.
Tendo a caixa asas curtas, o Hydrium California (como qualquer outro Hydrium) pode ser mesmo usado por pulsos menos grandes. Mas as suas proporções de 40mm x 14,9mm talvez ficassem ainda mais equilibradas num diâmetro de 41,5 ou 42mm — é um relógio que tem espaço para crescer e o mercado também tem espaço para acolher uma nova geração Hydrium de tamanho maior. Claro que a espessura tem diretamente a ver com a estanqueidade a 300 metros e a necessária maior grossura do vidro de safira (sem o tal vidro, é de 12,9mm); no entanto, seria esteticamente mais desejável um mostrador menos fundo… ou seja, paredes mais baixas e mostrador mais perto do vidro ou do nível superior da luneta. Nem que, para isso, a espessura do vidro diminuísse ligeiramente ou o vidro sobressaísse um pouco mais. Outro aspeto valorizador seria a inclusão de um bloco maior de luminescência na extremidade do ponteiro dos segundos. E um calibre com reserva de marcha mais prolongada.
Para finalizar, seria muito interessante uma auscultação junto de aficionados da marca e analistas da relojoaria para se estabelecer uma classificação dos Hydrium segundo as mais diversas preferências. Na nossa opinião, entre os 13 modelos entretanto lançados (cinco deles já esgotados), o Hydrium California salta imediatamente para o top 3 — sendo que no primeiro lugar deverá permanecer o Will Return, pelo simbolismo e originalidade. Qual seria o vosso ranking? Aqui fica aqui o repto…
Algumas caraterísticas técnicas:
Isotope
Hydrium California
Ano de lançamento | 2023
Edição limitada a 200 exemplares
Preço | 1.063,95 €
Movimento | Mecânico de corda automática. Calibre Landeron 24. 40h de reserva de corda, 28.800 alt/h.
Funções | Horas e minutos.
Caixa 40mm x 48mm (com asas) | Aço micro-jateado 316L. Luneta unidirecional com 120 cliques. Vidro em cristal de safira com tratamento antirreflexo. Estanque até 300 metros.
Mostrador | Preto texturado com numerais romanos e arábicos e ponteiros preenchidos com Super-LumiNova C3.
Bracelete | Cauchu FKM perfurado ou em Tan Suede de disponibilidade limitada. Ambas com sistema de troca fácil.
Visite o site oficial da Isotope para mais informações.