Há relógios de pulso que se estivessem emoldurados e expostos numa galeria talvez não defraudassem as expectativas de quem ali fosse à procura de obras de arte. Em causa, está o modo como em alta-relojoaria os tradicionais ofícios artesanais se desdobram em infinitas possibilidades decorativas — interiores e exteriores — que elevam cada instrumento do tempo ao estatuto de objeto digno de contemplação.
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Faz este ano duas décadas que a Jaeger-LeCoultre lançou o modelo inaugural da coleção Reverso/ Arte Portuguesa. Para quem desconhece este projeto, vale a pena uma breve contextualização. Na viragem do século, a empresa distribuidora da marca suíça no nosso país lembrou-se de aproveitar o verso da caixa do Reverso como tela para a representação plástica do tempo por parte de vários artistas nacionais. O projeto estreou em 2000 e foi incluindo, ao longo dos anos, relógios em edição limitada valorizados com a miniatura de uma obra e respetiva assinatura de Júlio Pomar, Manuel Cargaleiro, Paula Rego, José de Guimarães e José Sarmento.
Neste sentido, os modelos Reverso/Arte Portuguesa acabariam por assumir papel de relevo entre as mais belas interpretações do modelo reversível, que nasceu em 1931 com o objetivo de garantir a proteção do mostrador contra impactos para cedo se tornar evidente que a estrutura basculante da caixa era perfeita para ir além da funcionalidade original — com o verso a servir para criações artísticas e personalizações da mais diversa ordem. Mas se o Reverso se revela como a tela perfeita por ter uma superfície plana que parece chamar os artistas e artesãos, ao nível geral da alta-relojoaria de pulso o trabalho decorativo não tem sempre o caminho tão facilitado. Por isso, nem todas as marcas se podem orgulhar de ter na sua coleção relógios com acabamentos de exceção, elaborados à mão por pessoas especializadas. Se tivermos em conta que estes trabalhos são feitos a um nível ínfimo no que respeita a dimensões e se acrescentarmos o facto de, muitas vezes, o trabalho ficar escondido pelo fundo do relógio, correndo o risco de nunca vir a ser sequer apreciado pelo respetivo proprietário, então percebemos que se trata de uma área que vai muito além do expectável.
Gravando memórias
Se a imagem que o leitor tem da criação decorativa artesanal é equivalente à imagem de um artista recatado com ar de outros tempos, então é porque ainda desconhece o nome que está por trás das gravações que encontramos no Oktopus Volcano da Linde Werdelin ou no UR-T8 Skull da Urwerk. Ambos os relógios foram personalizados por Johnny Dowell, conhecido por King Nerd, um artista britânico, especializado na gravação de metais e que, durante muito tempo, esteve ligado à gravação de armas. A entrada de Dowell no universo da relojoaria começou precisamente por uma gravação no verso de um Reverso, a pedido de um cliente da marca, e é o próprio artista que salienta que trabalhar na nova tela não foi fácil porque o relógio era em aço inoxidável: « É muito inconsistente, pela densidade. Um lado é macio, o outro é duro, por isso, representa um desafio único.»*
Depois do primeiro projeto, Dowell descobriu a Linde Werdelin e viu nas caixas da marca um pouco mais de espaço para trabalhar e um desafio. «O contraste entre as formas modernas das caixas e o meu trabalho pareceu-me fazer sentido», refere, e acabou por ser ele próprio a contactar com a marca, sugerindo uma abordagem moderna e um desvio do lado estético associado ao trabalho que desenvolvia até então.
O primeiro Linde Werdelin assinado King Nerd foi lançado numa edição limitada designada Oktopus Reef que obrigou o artista a trocar os seus instrumentos de trabalho por outros feitos com um diferente tipo de aço. Em causa estava a dureza do titânio de que as caixas eram feitas. Os relógios acabaram por ser todos vendidos e a Linde Werdelin voltou a apostar em King Nerd para decorar o Oktopus Crazy Universe e, mais recentemente, o já referido Oktopus Volcano — um relógio cuja gravação simula o momento de erupção e de arrefecimento de um vulcão. Entretanto, Johnny Dowell tem estado associado a outros nomes, sempre com relógios que quebram com a tradição relojoeira em termos estéticos, mas que recorrem a uma técnica ancestral de decoração.
De facto, a gravação artesanal é uma arte que serve a relojoaria há muito e não se encontra apenas nas caixas. Os movimentos são também, muitas vezes, gravados por mãos sábias que tornam cada componente numa peça única. Um dos exemplos mais conhecidos é o galo de balanço gravado dos movimentos da A. Lange & Söhne, cujo padrão permite perceber quem foi o artesão responsável pela sua realização.
Arte mecânica
Sabemos que, em muitos relógios, os mecanismos vivem escondidos da vista e protegidos da humidade e do pó; mas sabemos também que os fundos transparentes começaram a ser usados para revelar a intricada complexidade técnica de um calibre, bem como os meandros do seu funcionamento. Ao mesmo tempo, se um relógio tem decorações e acabamentos de exceção, a sua vida mecânica tende a equivaler em qualidade e beleza ao invólucro que a guarda, pelo que, em alta-relojoaria, cada componente do movimento tende a ser decorado com o mesmo nível de atenção que é dado à parte exterior, numa forma de arte que merece ser contemplada. No movimento, os acabamentos ‘feitos à mão’ – nomeadamente, o polimento, a aplicação de padrões, moldagem ou a chanfragem, entre outros – com recurso a ferramentas próprias podem mesmo ajudar a perceber a diferença de preços entre relógios de diferentes marcas.
De qualquer forma, o tempo despendido com a decoração e os acabamentos não tem um fundamento meramente estético. Há quem refira que os acabamentos mal feitos afetam o desempenho do movimento, e os motivos perlage (pequenos círculos com efeito espiral) e Côtes de Genève (faixas verticais que simulariam as ondas da água do lago Genève) terão sido originalmente criados para evitar que as partículas e restos de óleos não se depositassem nos componentes móveis do movimento. Mas, hoje, tendo em conta o grau de aperfeiçoamento que se atingiu em relojoaria, pensar nos acabamentos pelo seu lado funcional faz menos sentido.
Muitas vezes, os próprios detalhes dos movimentos revelam se os mesmos são feitos à mão, através de pequenas imperfeições ou, pelo contrário, através da perfeição atingida com recurso a instrumentos específicos, como pequenas estacas de madeira que servem para chanfrar as arestas de um componente. A diferença entre um trabalho manual e um trabalho com recurso a máquinas automatizadas também é possível de detetar através do brilho das peças. Neste caso, voltamo-nos para o mostrador e um processo decorativo tão distinto que podemos encontrar em relógios como o Royal Oak da Audemars Piguet ou diversos modelos da Patek Philippe.
Brilho intenso
Há uns anos, visitámos o atelier de guilhoché da Cadrans Fluckiger, a manufatura de mostradores com chancela Patek Philippe, localizada em St-Imier, perto de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. Nesse atelier, o mestre responsável era um português, um dos poucos artesãos responsáveis por fazer este trabalho nos mostradores da marca genebrina. Tendencialmente, o processo de guilloché tradicional é levado a cabo por mestres que absorveram o ofício à moda antiga, numa lógica mestre/ aprendiz. Porém, apesar de transmitir o seu conhecimento, cada mestre vai guardando, ao mesmo tempo, algo para si porque, nestas coisas, há segredos que têm de ficar seguros. Aliás, são esses segredos que fazem de cada mostrador uma peça única, já que os traços da gravação permitem distinguir as mãos que lhe deram vida e descortinar algures uma eventual assinatura do artesão.
O guilloché consiste na gravação mecanizada em metal de padrões elaborados. No caso da relojoaria, é utilizado na decoração de mostradores, movimentos, caixas e braceletes. As suas origens remontam ao século XVI, repercutindo-se no mundo da relojoaria ao longo do século XIX para depois cair em declínio nos finais desse mesmo século, altura em que esteve em vias de desaparecer na Suíça. Com o surgimento do gravador a laser, o ofício tradicional renasceu, como que uma reação — a Patek Philippe apostou nele em força e os poucos artesãos especializados acabaram por conseguir transmitir o seu conhecimento. Foram assim resgatadas máquinas antigas. E, entre as máquinas que estão em utilização no atelier de guilloché da Cadrans Fluckiger, há um exemplar datado de 1903, que foi restaurado aos poucos e à medida do mestre que o foi utilizando. Precisão e paciência são palavras-chave no uso destes instrumentos.
«Mediante a rotação simultânea de duas manivelas, o princípio é sempre guiar a ferramenta de corte para realizar finas fendas num suporte de metal em padrões repetidos, em linha reta ou de roseta que permite linhas curvas e uma variedade mais ampla de ornamentos».** Com um sistema semelhante ao do pantógrafo, trata-se de replicar em miniatura no mostrador em metal o motivo que se encontra numa placa de maiores dimensões. O mais curioso é constatar a diferença a olho nu entre um trabalho de guilloché feito com a intervenção do artesão e um trabalho totalmente mecanizado. Os reflexos de luz são muito mais intensos nos mostradores que resultaram de trabalho manual.
Um selo de excelência
Fora a gravação manual, os acabamentos do movimento e o guilhoché, existem outras técnicas decorativas que contribuem para elevar um relógio ao estatuto de objeto de arte. Esmaltagem, cravação de pedras preciosas, marchetaria ou aplicação de madrepérola são apenas alguns exemplos. Nomes como Philippe Dufour e Kari Voutilainen (que é precisamente conhecido pelo seu extraordinário trabalho decorativo nos movimentos e guilhoché nos mostradores) destacam-se pelo seu extremo cuidado nos acabamentos efetuados de modo tradicional e, de um modo geral, são os ateliers independentes que tendem a dar atenção redobrada a este campo. Pensemos num Akrivia, num Greubel Forsey, num Gronefeld ou num Antoine Preziuso.
No entanto, como vimos, há também marcas de renome que têm tradição histórica na aplicação aos seus relógios de diversas vertentes de trabalho artesanal. E, entre elas, há casas que criaram ateliers para personalização por encomenda, como acontece com o Ateliers de Cabinotiers da Vacheron Constantin – que cria relógios à medida no que concerne a complicações e intricadas decorações. Há também empresas especializadas em decorações e acabamentos, assim como há artesãos de tal forma reconhecidos que autenticam discretamente o seu trabalho com a própria assinatura. A proveniência influi muito nas soluções decorativas aplicadas, que diferem claramente — como se constata ao comparar calibres oriundos da germânica Glashütte ou da helvética Vallée de Joux.
Há ainda aqueles cuja imagem de marca é o minimalismo e a ausência, deixando leves rastos de acabamentos, como acontece com os movimentos de Roger Smith, num contraste evidente entre a mais austera escola britânica e as exigências preconizadas pelo Poinçon de Genève que passam pela eliminação das marcas derivadas do fabrico e uma decoração irrepreensível dos movimentos. Este selo genebrino considera que cada relógio certificado é uma obra de arte, pelo que, além de ser uma garantia de estética excecional, é igualmente garantia de aquisição de um produto irrepreensível e único. E com esta breve referência se vê que os ofícios decorativos são matéria de elevada importância no que à alta-relojoaria diz respeito e, nos dias que correm, a aplicação destas práticas é, acima de tudo, uma forma requintada de mostrar aquilo que uma manufatura é realmente capaz de fazer e até onde pode ir para fazer dos seus relógios instrumentos do tempo verdadeiramente exclusivos.
* «Interview: Johnny Dowell aka King Nerd» in collectedman.com (maio de 2019)
** Patek.com
Artigo originalmente publicado no número 70 da Espiral do Tempo.
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