Relógios e automóveis: os motores da Grande Maison

Em Le Sentier
 | Há marcas de relógios que são especialmente reconhecidas pela sua ligação ao mundo motorizado. Mas há também casos menos óbvios de relações desta natureza que foram singrando ao longo da história e que, perante a mediática aparição de outras casas, hoje passam mais pelas gotas da chuva.  É o caso da Jaeger-LeCoultre.

Texto originalmente publicado no número 52 da Espiral do Tempo.

Os clichés são óbvios: TAG Heuer e Carrera Panamericana ou Monaco Grand Prix, Breitling ou Breguet e o mundo da aviação, Chopard e Mille Miglia, Rolex e Daytona, Graham e Silverstone — e por aí em diante. E muitas destas associações são mencionadas (porque seria impensável não mencionar) nesta edição da Espiral do Tempo. Falamos, claro, da relação histórica que existe entre o mundo da relojoaria e o mundo motorizado.

Mas fora dos clichés existe mais para descobrir no domínio desta relação. Porque, como em tudo, a história relojoeira não se faz apenas do óbvio nem daquilo que é escolhido para ficar registado. Há momentos que vale a pena evocar, revisitar ou apenas dar a conhecer: curiosidades e histórias que nos marcam pela sua importância ou, simplesmente, porque sim. Recentemente, tivemos a oportunidade de visitar a manufatura Jaeger-LeCoultre, em Le Sentier. Em mente, levávamos a ideia de que talvez desta visita alguma surpresa pudesse surgir. Em mente, levávamos também a temática ‘Motores’, na esperança de que fôssemos descobrir mais do que os velocímetros assinados ‘Jaeger’, que fazem parte da herança da Grande Maison.


Os primeiros passos

Bandeja com movimentos   LeCoultre do séc. XIX © Jaeger-LeCoultre
Bandeja com movimentos LeCoultre do séc. XIX © Jaeger-LeCoultre

A Jaeger-LeCoultre, na sua génese, nasceu LeCoultre, quando Antoine LeCoultre (1803-1881) — um «apaixonado pela mecânica, relojoeiro autodidata, trabalhador incansável, investigador infatigável e inventor prolífico».* —, beneficiando do know-how dos seus ancestrais no domínio da criação de ferramentas e componentes metálicos, e depois de estudar na escola relojoeira de Genebra, aposta na fundação de uma manufatura relojoeira, a primeira da Vallée de Joux, em 1833. Na origem da manufatura esteve o desenvolvimento de um instrumento para produção de pinhões em aço plano, numa resposta às imperfeições associadas à criação manual destes componentes. O instrumento foi muito bem recebido, por possibilitar a produção regular de pinhões, naquele que foi um contributo para a melhoria da qualidade dos mecanismos relojoeiros em geral. Seguiu-se um percurso exaustivo de aposta na criação relojoeira que passou por invenções como o Millionomètre, instrumento que permitiu, pela primeira vez, a medição do mícron, e possibilitar a criação de componentes microscópicos a um tal nível de precisão que ainda hoje surpreende.

Millionomètre © Jaeger-Lecoultre
Millionomètre, porAntoine LeCoultre em 1844. © Jaeger-Lecoultre

Destes primeiros passos inventivos ao atual reconhecimento da marca enquanto referência no domínio da criação relojoeira, há todo um destemido percurso com altos e baixos. Este percurso passou pela produção dos mais ínfimos componentes, pela criação do primeiro sistema simples e fiável de corda sem recurso à tradicional chave (1847), por distinções em diversas exposições mundiais ou pelo desenvolvimento de uma efetiva manufatura que, tal como hoje, integra todas as etapas de conceção de um relógio. A título de curiosidade, «entre 1860 e 1900, foram produzidos mais de 350 calibres diferentes, a maioria dos quais dotados de complicações.»* Mas, depois, surgem as surpresas: na visita à Galeria do Património da marca pudemos registar as inúmeras patentes que hoje a Jaeger-LeCoultre conta na sua história. Entre elas, a patente CH3818bc, de 1891, relativa a um contador de minutos para cronógrafo repetição; a CH3847b, de 1891, relativa a uma báscula de cronógrafo; a CH34029, de 1905, que menciona o contador de cronógrafo. E, seguindo com atenção a infindável lista, os nossos olhos param em 1915, na patente GB100542, relativa a um medidor de velocidade ou na patente GB 102061, relativa a instrumentos de bordo. E eis como a história da Jaeger-LeCoultre começa a revelar a sua ligação ao mundo motorizado: através de patentes, neste caso, indissociáveis da relação que a manufatura — já sob a égide de Jacques-David LeCoultre — estabeleceu com o relojoeiro francês Edmond Jaeger (1858-1922) e que está na base dos manómetros ‘Jaeger’ que mencionámos. Vale a pena revistar a história.


Jaeger e LeCoultre

    Relógio de bolso Lepine, equipado com o calibre mais fino do mundo. © Jaeger-LeCoultre
Relógio de bolso Lepine, equipado com o calibre mais fino do mundo. © Jaeger-LeCoultre

Edmond Jaeger foi, durante os anos 80 do século XX, fornecedor oficial dos cronómetros para os navios da marinha francesa, e, na sequência de uma crise de vendas, opta por reorientar a sua estratégia para a produção de relógios ultraplanos. Mas, não tendo as condições necessárias para levar a cabo o seu objetivo, procura o apoio de manufaturas suíças. É nesta altura que os nomes Jaeger e LeCoultre se lançam em projetos comuns. De 1904 em diante, todos os movimentos acabados e com caixa Jaeger eram produzidos pela então Jaeger & Cie e, em 1907, nasce o surpreendente Calibre LeCoultre 145 de apenas 1,38 mm de espessura… Se quisermos, assim, procurar o lado motorizado da Grande Maison não há mesmo volta a dar. Claro está que os calibres por si só são um ponto comum de associação enquanto motores, e claro que visitar o processo de produção de um relógio na manufatura em muito faz lembrar as linhas de montagem de uma fábrica automóvel — com as devidas singularidades.

Mas é a associação Jaeger e LeCoultre que deixará efetivas marcas. Por exemplo, na Primeira Guerra Mundial, Edmond Jaeger e a manufatura LeCoultre foram fornecedores de referência de taquímetros, bem como de contadores e de relógios de bordo para aeronaves. Alguns números: «Durante a guerra, 100.000 instrumentos Jaeger, dos quais os movimentos eram fabricados na Vallée de Joux e os acessórios em Paris, equiparam as aviações francesa, inglesa, italiana e americana»*. A partir de 1918, a parceria permite equipar com os seus instrumentos de bordo marcas como a Bamford & Martin, Bugatti, Bentley, Delaunay-Belleville, Rover e Cadillac. Um sucesso crescente que nunca interferiu com a produção de relógios. Aliás, muitos foram os relógios produzidos no âmbito da associação, alguns assinados Jaeger e outros assinados LeCoultre, tendo em conta que juridicamente se tratavam de duas empresas diferentes. Só a partir de 1937 se decide que os relógios resultantes da parceria passariam a ser assinados Jaeger-LeCoultre.

Jaeger-LeCoultre Master Chronograph, sobre um Cadillac Series 75, de 1947, onde se pode observar um manómetro 'Jaeger'. © Espiral do Tempo Studio
Jaeger-LeCoultre Master Chronograph, sobre um Cadillac Series 75, de 1947, onde se pode observar um velocímetro Jaeger. © Espiral do Tempo Studio

A verdade é que, fora as questões burocráticas, ao longo dos tempos, a Jaeger-LeCoultre esteve de uma forma ou de outra ligada a motores: os seus relógios passaram por pulsos como o de Amelia Earhart — aviadora que levou um Reverso na sua travessia entre o México e Nova Iorque, em 1935 — e os dos dos pilotos das aviações americana, inglesa e australiana, já durante a Segunda Guerra. Em simultâneo, a marca continuava a fabricar instrumentos de bordo, nomeadamente o Chronoflite com duplo cronógrafo. Foram também diversos os relógios de pulso aviadores produzidos, numa vertente menos conhecida da marca (já que se tende a dar ênfase a prodígios como o Geophysic ou o Memovox), mas que é muito procurada entre colecionadores. Na Galeria do Património estão expostos três relógios aviador dos anos 40, um deles destinado à Royal Air Force e assinado ‘LeCoultre’. Dos três, destacamos também o robusto Mark II, com luneta rotativa, fecho de segurança, mostrador sem assinatura e bracelete em pele para integração da caixa.

No campo dos automóveis, foi lançada, em 1937, uma edição especial do Reverso personalizada com o logótipo do British Divers Club e, além disso, encontram-se inúmeras publicidades vintage Jaeger ou Jaeger-LeCoultre, em que o mundo das corridas surge como pano de fundo. E o que dizer de um Atmos, datado de 1974, que foi levado a leilão pela Bonhams, em 2007, e que se distingue pela placa com a inscrição ‘Jaeger-LeCoultre Championship Wembley 29.6.1974’, por ter sido o galardão de uma famosa competição de stock cars que decorreu em Wembley, na data registada?


Motores do novo milénio

AMVOX7 Chronograph e desenhos técnicos. © Jaeger-LeCoultre
AMVOX7 Chronograph e desenhos técnicos. © Jaeger-LeCoultre

Em 2004, é anunciada a parceria da Aston Martin com a Jaeger-LeCoultre que, na altura, foi referida como o reavivar de um elo com raízes nos anos 30, altura em que o Aston Martin LM — vencedor, por exemplo, em Le Mans — era equipado com instrumentos de bordo Jaeger. Desta parceria veio a singrar a linha AMVOX, surpreendente pela engenhosa ativação/desativação do cronógrafo por meio de uma pressão no vidro, solução que foi ainda adotada num sistema, muito ‘K.I.T.T e Michael Knight’, que permitia abrir as portas de um Aston Martin precisamente com um AMVOX. Mais tarde, no final de 2006, a manufatura passa a andar a duas rodas, ao apostar em Valentino Rossi como embaixador. Energia, personalidade e espírito positivo foram as caraterísticas do piloto italiano referidas pela marca como mote da parceria. O campeão de MotoGP contribuiu, assim, para uma edição especial Master Compressor Extreme World com o seu nome, repleta de detalhes.

Atualmente, a Jaeger-LeCoultre centra a sua comunicação nas parcerias com o mundo do cinema, das artes e do polo, mas para trás permanece vivo um passado que não deixa de ser aliciante. Se quisermos ser mais ‘papistas do que o Papa’, a associação da marca aos motores tem sido feito, ao longo da sua história, através de prodígios da micromecânica que continuam a fazer-nos arregalar os olhos, como o Calibre 101, o Futurematic, as centenas de complicações acústicas, os diversos calibres de forma, o Gyrotourbillon, o Spherotourbillon ou o Reverso DuoFace. Em última análise, basta contemplar a enorme exposição de movimentos que voam na Galeria do Património para perceber que, como produtora de motores, a história da Jaeger-LeCoultre será dificilmente comparável. ET_simb

* Franco Cologni, Jaeger-LeCoultre La Grande Maison, Flammarion, 2008.

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