A Cvstos e a herança de Voltaire

Como é que uma marca do novo milénio e de inspiração decididamente moderna como a Cvstos apresenta uma associação tão forte a um vulto tão relevante do passado como Voltaire? A ligação é inesperada e uma das menos conhecidas e mais deliciosas histórias da relojoaria. Aqui fica o relato de uma visita especial ao Château de Prévessin e à comuna de Ferney-Voltaire.

Em Ferney-Voltaire e Genebra

O nome François-Marie Arouet não dirá muito a muita gente. Já o pseudónimo Voltaire deixará poucos indiferentes — embora na era da Internet, da dispersão da comunicação e da informação de consumo imediato tenha perdido a enorme relevância que ainda teve até ao final do século XX. Resumidamente, Voltaire foi um escritor, ensaísta e sobretudo um filósofo iluminista francês que muito contribuiu para o estabelecimento das bases do pensamento moderno, lançando as bases das liberdades civis e contribuindo não só para a eclosão da revolução francesa como para a revolução americana que posteriormente daria origem aos Estados Unidos. Mas não só: o seu ecletismo era tal que também se dedicou à relojoaria e aperfeiçoou alguns princípios industriais no século XVIII. Curiosamente, a sua história cruza-se com a da Cvstos — a marca genebrina fundada em 2005 com a intenção de não fazer relógios que recordassem o passado.

Dos dois lados da fronteira

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O Château de Prévessin onde viveu Voltaire e o correspondente anexo © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

A primeira ligação da Cvstos a Voltaire é geográfica e urbana: o quartel-geral da marca (incluindo a parte administrativa, o armazém de peças, a assistência e os ateliers dos relojoeiros vistos a partir da rua) fica localizado precisamente na Rue Voltaire, na zona de Genebra antigamente conhecida por quarteirão dos relojoeiros. Mas se for traçada uma linha direta para cima e para o outro lado da vizinha fronteira com a França vamos dar à comuna de Ferney, apelidada de Ferney-Voltaire a partir de 1878 para homenagear o facto de Voltaire — que se mantém como uma das incontornáveis figuras da história francesa — ali se ter radicado a partir de 1758, aos 64 anos, após ter sido considerado persona non grata em Paris e de o seu pensamento reformista não agradar em Genebra. Foi lá que escreveu o Tratado sobre a Tolerância e o Dicionário Filosófico. A sua influência fez-se sentir imediatamente na região, introduzindo novos métodos agrícolas, mandando secar os pântanos da região, aperfeiçoando a urbanização da vila e fomentando a instalação de novas indústrias como a da seda e a da… relojoaria de luxo.

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A complexidade das caixas da Cvstos © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Na verdade, já se trabalhava a relojoaria na zona — nos longos meses de inverno, os provincianos trabalhavam na produção de furnituras e movimentos básicos para a relojoaria genebrina, contando-se por alturas de 1750 cerca de 100 mestres relojoeiros e um total de quase 2000 operários subcontratados pela relojoaria da vizinha Genebra. Até que Voltaire, já com 76 anos, veio criar uma metodologia e reunir os diversos ofícios; fundou a Manufacture Royale des Montres de Ferney em 1770, começando com 40 relojoeiros, e seis anos depois já produzia 7000 relógios por ano com a contribuição de «duzentos pais de família». Cerca de 250 anos depois, é numa das propriedades onde Voltaire vivia e produzia relógios que a Cvstos tem um importante pólo de produção: a do fabrico das suas notáveis caixas.

O fabrico das caixas

Cvstos Challenge Chronograph | Ref. B00107.4172002 © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Challenge III Chronograph-S e a sua caixa de estrutura modular | Ref. B00107.4172002 © Paulo Pires/Espiral do Tempo

A Cvstos foi fundada em 2005 por Sassoun Sirmakès (o então muito jovem filho do patrão da Frank Muller, Vartan Sirmakès, que decidiu embrenhar-se no mundo empresarial de modo independente) e por Antonio Terranova (engenheiro de formação, designer e diretor artístico com currículo de passagem por marcas importantes). E já aquando da fundação da marca o terreno do Château de Prévessin havia sido adquirido — ou, mais precisamente, alugado através de um acordo especial e centenário porque Sassoun Sirmakès havia assumido os custos do restauro do local.

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Vista interior do Château de Prévessin; Genebra fica a 13 quilómetros lá em baixo, sempre a direito © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

O Château de Prévessin inclui uma bela mansão, com vista para o parque de Prévessin-Möens (e um caminho que, em linha reta, iria ter à… Rue Voltaire e à sede da Cvstos em Genebra), o respetivo anexo de apoio e ainda um edifício maior onde eram antes o celeiro e a cavalariça; é nesse edifício que a Cvstos estabeleceu o pólo de produção das suas caixas, através de 12 máquinas CNC (cada qual avaliada entre 200 a 300.000 francos suíços).

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A nave principal com as máquinas CNC de ambos os lados do corredor © Miguel Seabra/ Espiral do Tempo

As caixas da Cvstos são de fabrico complexo, cheias de contornos e linhas curvas, sendo depois complementadas por não menos complexos vidros convexos ou mesmo incrustradas de diamantes nas suas versões joalheiras. Existem atualmente três formatos (o tonneau, o quadrado e o redondo), embora um seja particularmente dominante e intrinsecamente associado à imagem da marca: o tonneau, atualmente existente em cinco tamanhos. Várias das caixas são de construção modular, uma caraterística cada vez mais dominante nas coleções da Cvstos e omnipresente na nova geração da sua linha best-seller: o Challenge Chrono, que passou a ser denominado Challenge III Chronograph-S a partir do seu (re)lançamento em 2019. «Esta nova geração foi idealizada com o objetivo de criar um jogo de combinação de cores e materiais que torna possível a personalização consoante o gosto dos diversos mercados ou mesmo o cliente final», disse-nos Antonio Terranova.

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A estrutura monocoque de algumas caixas Cvstos © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

A construção modular de vários modelos da Cvstos é feita à base de uma peça central denominada ‘contentor’ e ladeada pelos chamados ‘brancards’ (flancos modulares) e atualmente surge mesmo no modelo Challenge III Chronograph-S de primeiro preço, contrariamente à construção exclusivamente monocoque do modelos de base da geração anterior, designada Challenge Chrono II Power Reserve. O formato é o mesmo que se tornou na imagem de marca da Cvstos desde o início – a tal caixa tonneau – mas o Challenge III Chronograph-S parece mais largo, graças a uma proeminente base de suporte à coroa e aos botões do lado direito e a uma inserção do lado esquerdo para manter a ideia de simetria.

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O responsável do pólo de produção (à esquerda) e o co-fundador Antonio Terranova (à direita) ladeiam o colega da imprensa checa Jan Lidmansky, que nos acompanhou na visita © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

A complexa estrutura multidimensional do novo Challenge III Chronograph-S é especialmente evocativa dos automóveis de competição GT, reforçada pelo mostrador esqueletizado sob um vidro de safira convexo com tratamento antirreflexo especial. O titânio de grau 5 é o material preferencial, estando presente no ‘contentor’, no fundo da caixa, na coroa de rosca e botões, nos parafusos e nos protetores da coroa e dos botões. Já os ‘brancards’ podem ser feitos em titânio de grau 5, em ouro rosa 5N ou no novo composto de cerâmica iTR2 — «um composto carregado com pós de cerâmica colorida que está disponível na linha a partir deste ano, para celebrarmos em grande o nosso 15º aniversário e preparar o futuro da Cvstos», revela Antonio Terranova. Em qualquer das variantes, a estrutura modular do do Challenge III Chronograph-S garante estanqueidade até aos 100 metros e está disponível nos tamanhos mais habituais no catálogo da Cvstos: o normal (53,70 por 41mm) e o GT (59 por 45mm).

Challenge III Chronograph-S © Paulo Pires / Espiral do Tempo
O apelativo visual racing do Challenge III Chronograph-S em versão azul/preta © Paulo Pires/Espiral do Tempo

O Challenge III Chronograph-S foi o lançamento da Cvstos mais relevante nos últimos tempos por se tratar da nova geração do seu modelo mais procurado, mas a coleção não se fica por aí e inclui várias outras linhas ou edições especiais assentes nas complexas caixas fabricadas no Chateau de Prévessin. Por exemplo, a premissa da leveza associada à indústria aeronáutica está presente na linha JetLiner, com a eliminação de qualquer peso supérfluo sem comprometer a rigidez ou a mecânica — e o mesmo princípio é aplicado não só à caixa aerodinâmica como também à bracelete e ao correspondente fecho. O resultado é um sofisticado relógio estilizado de maneira original e com uma estética transbordante de tecnologia e modernismo. O desbastar de tudo o que é peso supérfluo estende-se da caixa ao mecanismo, sendo o mostrador dispensado — com os ponteiros assentes no próprio calibre e, nalguns casos, os algarismos aplicados sob o vidro de safira. Um dos mais mais recentes desenvolvimentos da linha JetLiner coloca em destaque aquela que é considerada a mais antiga complicação relojoeira: os ‘pequenos segundos’, que assumem grande destaque no JetLiner II P-S Automatic.

Cvstos JetLiner II P-S Automatic © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Um dos mais recentes modelos da Cvstos: o JetLiner II P-S Automatic © Paulo Pires / Espiral do Tempo

A linha SeaLiner é o terceiro pilar do catálogo, estando intrinsecamente associada ao universo náutico, às atividades marítimas e ao imaginário prestigioso que rodeia as mais belas embarcações de competição ou de recreio — dos veleiros clássicos aos mega-iates de longo curso. A sua génese remonta ao Tourbillon-S Yachting Club, que já explorava a temática com o recurso à alta-relojoaria através da inclusão de um turbilhão num mostrador aberto com um fundo tipo deque e a atualmente a madeira de teca oferece um fundo de mostrador emblemático e utilizado em vários modelos SeaLiner, como o SeaLiner GMT; a complexidade das respetivas caixas é aumentada através de escotilhas laterais que permitem ver a engenharia mecânica e o fundo transparente desvela um rotor que evoca o leme dos barcos desportivos. Também a linha SeaLiner assenta no formato Challenge —uma espécie de tonneau alongado — tão associado à identidade da Cvstos, mas apresenta uma aura claramente mais náutica com a predominância natural do azul em todas as versões. O SeaLiner QP Marea é a vedeta da coleção e está disponível nos tamanhos normal (53,70 por 41mm) ou GT (59 por 45mm), em aço, aço azulado ou ouro rosa.

Cvstos Sealiner QP Marea
Flanco lateral do Sealiner QP Marea © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

E depois há as especialidades e edições limitadas, destacando-se as versões com brasão nacionalista e os modelos Gustave Eiffel que homenageiam o engenheiro francês que esteve à frente do seu tempo ao criar revolucionárias obras-primas que permanecem incontornáveis ex-libris um pouco por todo o mundo — a começar pela Torre Eiffel e a acabar na Ponte D. Maria Pia, sem esquecer que até o Elevador de Sta Justa foi concebido por um seu discípulo. A sua caixa em formato tonneau (disponível em aço com tratamento PVD em bronze ou em aço 316L) prolonga os padrões evocativos das obras de Gustave Eiffel com uma gravação em relevo e é uma das mais notáveis que saem do pólo de produção da Cvstos em Prévessin.

Challenge Gustave Eiffel
Um dos exemplares dedicados a Gustave Eiffel © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Relojoaria à parte, a zona do Château de Prévessin-Möens é bucólica e com uma bela vista para o parque. Não admira que, para além da relojoaria, tenha inspirado alguns dos escritos mais marcantes do Século das Luzes e que contribuíram para o estabelecimento do pensamento laico moderno — e vale a pena ser visitada, distando somente 13 quilómetros do centro Genebra e apenas 5 do aeroporto.

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No Château de Prévessin com um Cvstos Dani Pedrosa de construção modular © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Visite o site oficial da Cvstos para mais informações.

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