Por trás de um nome

Os nomes têm algo de mágico e, no jogo da semântica e da etimologia, um relógio bem designado torna-se especial e mais fácil de ser catapultado para a lenda… sobretudo se leva também com uma alcunha carismática em cima. Um nome ou um cognome podem ser a diferença entre o sucesso e a indiferença. Qual é o relógio mais bem batizado de sempre?

Versão atualizada da crónica originalmente publicada no número 40 da Espiral do Tempo.

Talvez tenha lido a peça A Importância de se Chamar Ernesto, de Oscar Wilde, demasiadas vezes — porque sempre atribuí aos nomes e à sua etimologia uma importância mágica. Deve ser o primitivo que há em mim, porque acredito piamente que um nome ou uma designação têm um significado transcendente e estão diretamente associados à pessoa (ou ao objeto) em questão.

Dois novos modelos acabadinhos de sair do forno da Studio Underd0g: o Pepper0ni e o Hawaiian | Foto: Studio Underd0g

Ultimamente, várias micromarcas têm lançado produtos fora da caixa com nomes que anteriormente nunca seriam considerados ‘sérios’ — mas que, com o fator lúdico e a aposta nas cores como reação ao cinzentismo dos tempos da pandemia, ganharam tração e se tornaram muito populares. A Studio Underd0g tem ganho uma legião de aficionados com modelos denominados Watermel0n, Go0fy Panda, Mint Ch0c Chip, Strawberries & Cream e mesmo Pepper0ni ou Hawaiian (sim, inspirados em pizzas!). A Isotope, marca fundada em Londres pelo português José Mendes Miranda, também tem tido muito sucesso com edições especiais denominadas Will Return, Exit, The Judge, Blink, Otopsie ou o recente Be Steel my (Blue) Heart. Sem esquecer o Wall Return!

Isotope HydriumX "Will Return" com o célebre sinal "Will return" que se encontra nas lojas de Nova Iorque e que serviu de inspiração para o seu design.
HydriumX Will Return e o letreiro novaiorquino que o inspirou | Foto: Isotope

A importância do nome de um relógio fez com que, há uns anos, entrasse num animado debate com os meus colegas jornalistas Ian Skellern, Elizabeth Doerr e Carlos Torres relativamente ao modelo designado Experiment ZR012, no âmbito do projeto C3H5N3O9 estabelecido por Max Büsser e Serge Kriknoff (MB&F), Martin Frei, Felix Baumgartner e Cyrano Devanthey (Urwerk) e pelo designer Eric Giroud. C3H5N3O9? WTF!? Sim, C3H5N3O9 é a fórmula que representa três átomos de carbono, cinco de hidrogénio, três de nitrogénio e nove de oxigénio para dinamite, mas não quis acreditar numa tal algaraviada (passe a expressão; acho que nenhum algarvio se lembraria de batizar um relógio assim); pensava que o tempo de se batizarem os automóveis Renault com números já pertencia ao passado e confesso que a minha mente se recusou a fixar tão escaganifobético conjunto de números e letras, de tal modo que até tive de o gravar no iPhone para que ficasse memorizado de alguma maneira. Claro que o relógio — espetacular, não há dúvida alguma — teve se ser ‘popularmente’ batizado a posteriori, e o cognome ‘Nitro’ assenta-lhe que nem uma luva. Mas é uma alcunha, quando devia ser o nome escolhido à partida e mesmo tendo em conta que os cognomes também dão carisma a um relógio.

Max Büsser em direção ao palco e aclamado pela plateia do GPHG: o seu multipremiado conceito MB&F de alta-relojoaria tem somado múltiplos galardões | Foto: GPHG

Já agora, e tratando-se de um projeto de Max Büsser, convém não esquecer que também a designação da sua marca conceptual de alta-relojoaria MB&F — Max Büsser & Friends — causou estranheza e muitos foram os críticos. «Disseram-me que não era nome para um artigo de luxo e que ter ‘Friends’ na designação era mais coisa do Rato Mickey», recorda o próprio Max Büsser. Curiosamente, o fundador quis inicialmente que a marca fosse chamada B&F para não colocar demasiado ênfase no seu nome e manter uma certa simetria, mas o seu advogado fez-lhe ver que poderia haver problemas com a B&R (Bell & Ross, a marca cujo nome é uma adaptação dos apelidos dos fundadores Bruno Belamich e Carlos Rosillo).

O exemplar ultracomplicado Code 11.59 que valeu o prémio principal do GPHG à Audemars Piguet | Foto: Audemars Piguet

Na história da relojoaria, a nomenclatura sempre teve uma importância crucial. Quantas vezes um relógio não perdeu força devido a um nome mal atribuído — e quantas vezes não sucedeu o contrário? Os relógios que se transformaram em ícones são conhecidos pelo nome próprio e até dispensam ser acompanhados pela designação da marca. Por vezes, o nome próprio até se confunde mesmo com a marca junto de um público menos conhecedor, como tantas vezes sucedeu com o Reverso (da Jaeger-LeCoultre, nomeado através da frase latina ‘dou a volta’) e o Royal Oak (da Audemars Piguet, batizado segundo uma árvore e um vaso de guerra britânico); a marca de Le Brassus apresentou há cerca de cinco anos uma nova coleção denominada Code 11.59 by Audemars Piguet que foi inicialmente muito contestada — tanto que o nome Code 11.59, alusivo ao último minuto antes da meia-noite, foi rapidamente transformado em… Code Cinderelo.

Paul Newman, com um Rolex Daytona no pulso
Paul Newman, com um Rolex Daytona ‘Paul Newman’ no pulso | Foto: Douglas Kirkland/Corbis

Depois há os nomes de guerra, as alcunhas diretamente associadas com gente gamosa que usa determinado modelo: o ‘Paul Newman’ é a mais lendária variante do Daytona ( e tantos são os cognomes na história da Rolex); o ‘Jo Siffert’ é a mais famosa versão do Heuer Autavia — e, já agora, Autavia (contração de automobile e aviation) foi um nome que não pegou muito bem em Portugal na década de 70… e nem tinha nada a ver com o treinador Octávio Machado ou com o Skoda Octavia. Simplesmente foi considerado um nome bizarro, mas hoje em dia a resistência à designação já não é a mesma.

Nomes malditos

A marca Vulcain, famosa pelos seus mecanismos com alarme, não teve sucesso no nosso país devido à inevitável comparação com os esquentadores Vulcano — mas esse estigma entretanto desapareceu precisamente com o desaparecimento dos ditos esquentadores. A Tudor conheceu uma situação similar: durante muitos anos ficou associada às baterias Tudor, entretanto saídas de circulação e desconhecidas da nova geração. Pior ainda sucedeu com a Roamer: a torre do relógio da praia da Figueira da Foz recebeu o nome Roamer num acordo com o antigo distribuidor da marca mas, por causa do ar marítimo salgado, a precisão do relógio era severamente afetada e a indicação deixou de ser fiável… logo o povo denominou-o ‘Roamerde’ e a marca não mais teve sucesso em terras lusas, sendo que hoje em dia até está desaparecida do cenário internacional. Outro caso de estudo é a Levrette, marca antepassada da Paul Picot; no calão francês, equivale a uma posição sexual demasiado caraterística para ser esquecida! A Apple evitou o gozo ao designar o seu relógio conectado Apple Watch e não iWatch (como seria natural), para não ser conotada com voyeurismo…

O relógio Zenith Chronometer
O nome ‘El Primero’ foi atribuído ao primeiro cronógrafo automático e mantém-se no catálogo da Zenith | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

A alteração pejorativa de um nome é o pior que pode haver para uma marca. E com tantos nomes registados e patenteados, não deve ser nada fácil inventar novas designações para linhas em geral e para modelos em particular. Mas deve ser um desafio aliciante. Muitos nomes andam à volta de composições a partir dos termos ‘chrono’ e ‘master’. A Zenith, tão feliz com a designação ‘El Primero’ (de origem espanhola e não em esperanto, como chegou a pensar-se) para o primeiro cronógrafo de corda automática, juntou-os no termo Chronomaster que designa certas variantes. Depois há o Chronofighter, o Speedmaster, o Chronosplit e tantos outros. O Navitimer, da Breitling, derivado da expressão navigational timer para pilotos. E há também os nomes que têm a ver com lugares, histórias, lendas, geometrias, parceiros, eventos, datas — como Hampton, Monaco, Nautilus, KonTiki, Squadra, AMVOX, Mille Miglia, 1911. E, claro, há os relógios dotados de grandes complicações que são devidamente refletidas no nome: Audemars Piguet Jules Audemars Calendário Perpétuo com Equação do Tempo e Nascer e Pôr do Sol é um dos casos, entretanto já saído do catálogo.

Mille Miglia 2023: o Classic Chronograph da edição 2023 e a edição de 1997 comemorativa do 70° aniversário da Mille Miglia (1927-1997) | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Os modelos Mille Miglia são os relógios desportivos da Chopard mais conhecidos | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

A Rolex é a mais famosa marca de relógios do planeta e uma das mais conhecidas marcas em todo o mundo — mas foi a primeira companhia relojoeira suíça dotada de um nome inventado e não tradicional, uma autêntica revolução na altura. Reza a lenda que o fundador Hans Wilsdorf, que até era de origem germânica, estava num autocarro de dois andares em Londres quando teve a inspiração para o nome registado em 1908 (e há quem diga que Rolex é uma contração de horlogerie exquise). O nome Oyster da sua caixa estanque patenteada também contribuiu para o sucesso da marca, porque o molusco de onde se extraem as pérolas dava automaticamente a ideia de hermetismo que o conceito preconizava. A designação evoluiu para caraterizar também um tipo de bracelete e também o aço cirúrgico — denominado Oystersteel — utilizado pela Rolex.

ROLEX GMT-MASTER II REF: M126710BLRO-0001 PEPSI em fundo branco ao lado de uma garrafa de Pepsi.
O GMT-Master II, alcunhado ‘Pepsi’ devido às cores da luneta, é um dos mais populares relógios da Rolex | DR

E todos os nomes e cognomes da Rolex fazem parte do léxico atual da relojoaria, desde o Daytona até ao Explorer, passando pelos ‘Pepsi’, ‘Batman’, ‘Freccione’, ‘Hulk’, ‘Root Beer’, ‘Jean-Claude Killy’, o já referenciado ‘Paul Newman’ e todos os demais… embora muitos dos colecionadores prefiram entre si mencionar os números das referências, o mesmo acontecendo com os exemplares da Patek Philippe e alguns Royal Oak da Audemars Piguet. E convém não esquecer de registar os nomes: foi o que aconteceu com Gerd-Rüdiger Lang, o já desaparecido fundador da Chronoswiss, que não patenteou os nomes Opus e Pathos no âmbito relojoeiro, perdendo depois o direito a essas designações de origem grega — o termo Opus é agora exclusivamente usado pela Harry Winston. Mas o nome de origem grega mais interessante dos últimos tempos é sem dúvida Odysseus, da nova linha desportiva de luxo da A. Lange & Söhne — uma outra designação do nome Ulisses bem conhecido da literatura greco-romana e que transmite bem a autêntica odisseia (demorou mais de 10 anos a dar à costa!) que foi o lançamento do relógio.

A. Lange & Söhne Odysseus
Odysseus, o relógio ‘desportivo’ da A. Lange & Söhne | Foto: Paulo Pires/Espiral do Tempo

E depois há os nomes poéticos, mais regularmente associados a marcas joalheiras e a modelos que são demonstrações dos métiers d’art… como o Piaget Protocole XXL Secrets & Lights Venice Micro-Mosaic, o Louis Vuitton Tambour Color Blossom Spin Time, o Boucheron Epure Je Pense à Toi, o Romain Gauthier Logical One Secret Kakau Höfke ou o Pont des Amoureux e o Heure d’Ici Heure d’Ailleurs da Van Cleef & Arpels, exemplos entre muitos que puxam pela imaginação (e pela memória, de tão longos que são!). Noutro patamar, a H. Moser e a De Bethune são especialmente imaginativos na nomenclatura dos seus modelos. Irritante mesmo é quando as marcas dobram o próprio nome, como no Hermès Slim d’Hermès Heure Impaciente ou o Chanel Mounsieur de Chanel…

Nomes contratados

Hoje em dia, várias marcas trabalham com empresas especializadas na atribuição de nomes. Como a Nomen, de Paris, que encontrou as designações Grantour e Pelagos para a Tudor — a primeira um nome que entretanto perdeu destaque na coleção e que saiu da expressão italiana Gran Tourismo que carateriza uma categoria específica do desporto automóvel e a segunda um termo grego que define a parte mais funda dos oceanos e as criaturas que lá vivem. A marca Urwerk tem no início uma alusão à antiga cidade suméria Ur e depois werk (trabalho, em alemão), remetendo para uhrwerk (mecanismo).

Pormenor Urwerk UR-100V T-Rex
Os modelos T-Rex da Urwerk, com acabamento em relevo inspirado nas escamas do dinossauro | Foto: Urwerk

Mas a anedota mais deliciosa relacionada com nomes relojoeiros tem a ver com uma colega minha, a jornalista americana Victoria Gomelsky. A Shinola, fundada pelo ex-CEO da Fossil Tom Kartsotis e cujo nome foi encontrado numa marca de graxa desaparecida em meados do século passado, buscava uma designação para um novo modelo a apresentar em Baselworld e não havia sugestões suficientemente satisfatórias; então decidiram que a primeira pessoa a entrar pela porta daria o nome de batismo ao relógio — felizmente para eles que ficou Gomelsky e não Camataru ou Schweinsteiger, ou mesmo Meireles e Antunes! O nome Gomelsky pegou tão bem que hoje em dia até é uma marca própria dentro do grupo Shinola.

Master Compressor Extreme World Alarm ‘Tides of Time’ Limited Edition, da Jaeger-LeCoultre | Foto: Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Sou muito esquisito em relação a nomes. Muito mesmo. Nunca poderia ter ou oferecer um relógio chamado Kalparisma (googlem para ver a correspondente marca). E posso sempre dizer que tenho um dos relógios com o nome mais comprido: o Jaeger-LeCoultre Master Compressor Extreme World Alarm ‘Tides of Time’ Limited Edition. Devia vir com brasão…

Imagem de abertura: cortesia Julie Kraulis

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